27/02/2025

Sangoma - Les damnés de Cape Town

Brutal, literalmente




Não costumo comprar BD pelo desenho - soa como um paradoxo, reconheço - mas, embora empurrado também pelas críticas lidas, foi o lado gráfico que me levou até este Sangoma - Les damnés de Cape Town, desenhado por Corentin Rouge.

Corentin Rouge, esse mesmo, para aqueles a quem soou familiar, o de Rio - uma das mais surpreendentes e desafiadoras colecção da parceria ASA/Público - um dos casos em que o filho suplantou largamente o legado do pai, Michel Rouge, também ele desenhador de BD, na sequela de Comanche ou em Marshal Blueberry, por exemplo.

Se em Rio, uma obra forte gráfica e tematicamente, Rouge já me tinha surpreendido, pela sua capacidade invulgar de retratar emoções e a violência urbana daquele relato, em Sangoma deixou-me boquiaberto pelo crescimento e amadurecimento que o seu traço realista revela, para mais quando existe uma total mudança de cenário, do Brasil das grandes avenidas e das ruas estreitas das favelas, para os campos e herdades de café e os bairros de lata da África do Sul.

Um traço que aguenta perfeitamente o formato generoso do álbum, de escassas margens brancas, e as vinhetas de grande dimensão que abundam nele. Para quem tiver dúvidas, se os houver, a ilustração de dupla página de forte impacto, que abre o livro após as guardas e antes da página de título (que mostro no final deste texto), dá todas as garantias.

A opção por vinhetas bem dimensionadas, com recurso frequente a grandes planos, contribui decisivamente para reforçar o tom humano e dramático de uma história tensa e violenta - mais uma vez, será Rouge talhado para estas temáticas...? - que se desenrola na África do Sul do pós-apartheid, mas ainda (e sempre) sob a sua sombra velada e ameaçadora.

Uma sombra que, uma e outra vez, toma a forma das feridas não saradas e das soluções incompletas encontradas, no momento em que a história arranca, quando o parlamento discute uma forma de compensar os negros pelas terras que os brancos lhes 'roubaram'. Uma perseguição com cães a um escravo - num flashback de contornos que se revelarão fundamentais - e a morte de outro, já no presente, são outros elementos de base com que Caryl Férey nos conduz compulsivamente para o relato.

E se é verdade que Sangoma é apenas uma narrativa de tom policial, a forma como está travestida com crenças ancestrais, ódios que se perpetuam no tempo, velhas recordações, relações impossíveis, SIDA, questões políticas, problemas mentais e histórias que o racismo latente e vivente extrapola e a que dá uma outra dimensão que não se pode ignorar, fazem desta uma banda desenhada, sólida, consistente e rica em conteúdos e questões levantadas, de contornos brutais que se perpetuam bem para lá do fechar do livro.


Sangoma - Les damnés de Cape Town
Caryl Férey (argumento)
Corentin Rouge (desenho)
Glénat
Suiça, 2021
240 x 320 mm, 152 p., cor, capa dura
25,00

(imagens disponibilizadas pela Glénat; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

2 comentários:

  1. Grande artista! adorei o "Rio", estou a ver se ponho as mãos neste: Islander Tome 1 : L'Exil

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    1. Eu achei este melhor que o Rio, em termos de história e arte. Também tenho o Islander, que é o seguinte, debaixo de olho. Tem o senão de ser o primeiro de três; vão ser quase 500 páginas!
      Boas leituras!

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