02/05/2025

Fojo

Quando os homens são piores que as feras


Trás-os-Montes, algures, num ano da (des)graça indefinido, na primeira metade do século passado. Numa pequena aldeia, isolada pela neve, os cadáveres começam a multiplicar-se.
É este o ponto de partida de Fojo, uma co-edição a três entre a Kingpin Books, a Comic Heart e A Seita, que vem confirmar o português Osvaldo Medina como um grande autor completo, depois do seu díptico Kong, the King.

Ao contrário deste último, Fojo inclui diálogos mas, mais uma vez, é com longas sequências mudas mas extremamente expressivas que Medina explora de forma poderosa e original o conceito de policial em local fechado. Um local fechado pela situação geográfica, a intempérie que leva os lobos a descer à aldeia e assombrado pelos fantasmas que a participação de alguns na Primeira Grande Guerra provocou e por memórias dolorosas, ainda mais antigas, do passado de alguns.

Protagonizado por gente rude, que balança entre a religião e as crendices, com a 'bruxa' local equiparada ao novo padre, Fojo, pontuado aqui e ali de referências culturais e sociais que contribuem para dar consistência à ficção que assim se aproxima do real, vai-se desenrolando a um ritmo propositadamente lento, para que o leitor sinta toda a violência que o relato exala. A que salta aos olhos, a cada novo assassinato; a que resulta de um quotidiano difícil e exigente; acima de tudo, a que está latente, que se expressa em olhares, palavras dúbias, atitudes de crueza extrema, que transformam os pequenos gestos e as rotinas quotidianas em actos de prepotência e pura humilhação.

Num retrato realista e duro de uma sociedade machista, de enormes diferenças sociais, apesar da aparente pobreza igualitária, em que alguns homens põem e dispõem dos restantes e das mulheres, Fojo, de modo surpreendente, apresenta-se também como uma narrativa marcada por aquilo que se pode designar como emancipação feminina, com as atitudes de algumas mulheres a negarem a submissão total em que os homens crêem.

Do final, inevitavelmente trágico, fica a sensação de que as feras são menos selvagens do que alguns homens e de que, afinal, entre estes os piores não são aqueles cujas acções inqualificáveis se vêem à luz do dia.


Fojo
Osvaldo Medina
Kingpin Books/Comic Heart/A Seita
Portugal, 2024
200 x 280 mm, 144 p., preto, branco e vermelho, capa dura
23,99 €

(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias online a 18 de Abril de 2025 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pelas editoras; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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