27/10/2025

Fabcaro: "A Lusitânia era um destino óbvio"





No passado dia 17, antecipando o lançamento de Astérix na Lusitânia, entrevistei os seus autores, o argumentista Fabcaro e o desenhador Didier Conrad, uma conversa que serviu de base para o texto que veio a ser publicado no Jornal de Notícias do dia 23 de Outubro.
Antes do encontro com os autores, que terá lugar esta tarde, no El Corte Inglès, de Lisboa, fica já a seguir a versão integral da conversa, feita online, com um agradecimento sincero aos dois autores, às Éditions Albert-René e às Edições ASA.


As Leituras do Pedro - Finalmente Astérix e Obélix vieram à Lusitânia. Porquê só agora?

Fabcaro - Essa é uma boa pergunta, uma pergunta que também me fiz, porque quando decidi fazer um álbum de viagens, olhei para todos os destinos e percebi que nunca tinham ido a Portugal; então sugeri Portugal à editora, e disseram-me que já tinham a ideia há muito tempo, mas que não tinha acontecido. Não sei porquê, mas sim, acho que podia ter acontecido há muito tempo. Não sei se era complicado de fazer do ponto de vista do argumento, mas para mim era um destino óbvio.


As Leituras do Pedro - Foi ideia sua, a Lusitânia como destino?

Fabcaro - Sim, sim, foi ideia minha. Pareceu-me óbvio. Nunca tinha sido explorado. Fica perto da Gália, por isso podiam chegar lá facilmente de barco. Além disso, já estive várias vezes em Portugal de férias, como turista, e gosto muito de Portugal, por isso sim, foi a minha ideia desde o início.


As Leituras do Pedro - Onde esteve, em Portugal?

Fabcaro - Ah, já não me lembro, foi há muito tempo, mas estive no Porto e em Lisboa, percorri toda a costa. Não me lembro das cidades, mas fui lá fui algumas vezes, três ou quatro vezes, viajei de férias com a minha família, e gostei muito.


As Leituras do Pedro - E agora voltou para preparar o álbum?

Fabcaro - Comecei o guião de uma forma muito teórica, com pesquisa sobre a Lusitânia, e quando estava mais ou menos a meio e já sabia mais ou menos para onde iriam, o editor e eu fomos lá para captar um pouco da alma de Portugal, para ver as pessoas, para ver as paisagens, para tirar fotografias para o Didier, para que ele pudesse desenhar. Viajámos de uma pequena vila piscatória até Lisboa, de carro para ver que paisagens iríamos atravessar, para ver quanto tempo demoraria.


As Leituras do Pedro - A enseada em que Astérix e Obélix desembarcam existe realmente? Onde fica?

Fabcaro - A pequena vila piscatória é Azenhas do Mar. Fomos lá ver um pouco das paisagens, do espírito, da alma portuguesa. E depois retomei o guião e segui em frente com ele, mas inicialmente comecei a escrever apenas com a pesquisa que fiz. Sabia um pouco sobre Portugal e as suas características, mas não conhecia a história da Lusitânia, o Portugal antigo, por isso tive de aprofundar a história da Lusitânia. Descobri Viriato, descobri quem foi o primeiro produtor de garum e foi assim que a história começou.


As Leituras do Pedro - Pensa voltar a Portugal?

Fabcaro - Sim, sim, adoro, vamos voltar na próxima semana, não, daqui a duas semanas [hoje, dia 27 de Outubro], para promover o álbum, e estou muito feliz por voltar; vamos a Lisboa, gosto muito de Lisboa.


As Leituras do Pedro - Conrad, conhece Portugal?

Didier Conrad - Estive lá há seis anos, durante a promoção de um álbum, em Lisboa. Gostei muito, senti a atmosfera calorosa e semi-tropical do país. Mas não conheço mais do que isso, na verdade, não pude ficar mais tempo, mas agora estou a voltar, por isso estou muito feliz.


As Leituras do Pedro - Qual foi a maior dificuldade em ambientar esta história em Portugal?

Fabcaro - Qual foi a maior dificuldade? A maior dificuldade - penso que é a mesma dificuldade que se repete em todos os álbuns de Astérix, imagino que os autores originais também tiveram essa dificuldade; é falar das características de um país, tentar encontrar o ângulo característico da alma do país.

Por exemplo, nos bretões, era a sua fleuma; quando foram a Espanha, era o lado muito orgulhoso dos espanhóis. Aqui, tivemos de encontrar a característica portuguesa, e então pensei em algo que é muito português e que não existe em mais lado nenhum: a saudade, a ligação a esse espírito, o fado, esse lado melancólico, um bocado fatalista. Não estou a dizer que todos os portugueses são assim, mas é sempre preciso encontrar uma característica de um povo, e eu pensei que a saudade poderia ser o que caracterizaria os portugueses. Portanto, o mais complicado é encontrar uma forma de caracterizar o povo, e eu pensei que a saudade poderia ser uma boa forma. Além disso, acho-a muito bonita, adoro esse espírito, a saudade, adoro o fado. Mais uma vez, nem toda a gente ouve fado e nem toda a gente em Portugal tem saudades, mas é preciso encontrar uma característica.


As Leituras do Pedro - Sentiu isso quando esteve em Portugal? A saudade, a melancolia dos portugueses, é algo que sente?

Fancaro - De qualquer forma, sente-se que há algo ali. Depois, é difícil falar de características destas, mas os portugueses são menos extrovertidas do que os espanhóis, por exemplo. É muito mais, não sei, muito mais... Fomos comer a restaurantes de fado, e há uma escuta muito religiosa. Fiquei surpreendido. Enquanto a fadista canta, os guitarristas tocam, ouve-se de uma forma muito religiosa, não há som nenhum. Só aplaudimos no final. É uma atmosfera muito particular. Gosto muito. Depois, claro, é uma característica. Não é algo que se sinta. Mas senti algo. Sente, o aspeto da saudade?

As Leituras do Pedro - Para mim, que sou português, é algo normal, algo habitual, acho que não nos apercebemos.

Fabcaro - Mas sente-se mesmo isso.


As Leituras do Pedro - Mas acho que captou isso muito bem no álbum. Acho que os diálogos estão muito, muito conseguidos, com muito humor. E ao mesmo tempo também transmitem a ideia de melancolia, saudade, a natureza ligeiramente depressiva dos portugueses. Acho que isso está muito conseguido no álbum.

Fancaro - Obrigado, obrigado.

As Leituras do Pedro - É o melhor do álbum, os diálogos estão muito bem conseguidos.

Fabcaro - Obrigado, isso deixa-me feliz porque era importante para nós. Queremos que o álbum agrade a todos, claro, mas também é importante para nós, sobretudo, que agrade aos portugueses. Portanto, se for português e se gostar, é um bónus, é ainda melhor.


As Leituras do Pedro - Porquê caricaturar Ricky Gervais num relato que descorre em Portugal

Fabcaro - Não sei porquê. O editor disse-nos que seria bom incluir Ricky Gervais. Ele queria ver o Ricky Gervais porque gosta do Ricky Gervais. Só isso. Não há nenhuma razão relacionada com Portugal. Depois dissemos a nós próprios, para justificar, que ele também tem um sentido de humor um pouco desesperado. Quando se escolhe a personagem a caricaturar alguém que é realmente popular... não há nenhuma razão relacional com o álbum. É apenas o prazer de escolher alguém de quem se gosta. Geralmente, não, não há motivo. Quando se fazem caricaturas, não há necessariamente um motivo.

Didier Conrad - Para as caricaturas, na verdade, é preciso escolher alguém. Depende de como se vai usar a caricatura. Se for apenas uma participação especial, pode-se simplesmente fazer uma referência e escolher alguém que fique bem de um determinado ângulo. Se for uma personagem recorrente, que vai aparecer ao longo do álbum, é necessário encontrar uma celebridade que todos reconheçam, mas que também fique bem de todos os ângulos. E é mais uma questão gráfica do que outra coisa, percebe?

Fabcaro - Depois, os critérios para as caricaturas são um pouco específicos. Não é o que pareceria óbvio à primeira vista.


As Leituras do Pedro - Muitas pessoas pensavam que haveria um Ronaldês no álbum...

Fabcaro - Outro jornalista disse-nos a mesma coisa. Disse-nos que estávamos sem um Ronaldo. Não é verdade, aparece em dois painéis.

As Leituras do Pedro - Sim, em pequeno e muito pequeno.

Fabcaro - Mostramo-lo em boa forma. Não havia realmente nada que pudéssemos contar sobre ele, porque teríamos de fazer um jogo de futebol. E na verdade, o futebol não existia na época. Teria sido um pouco complicado. Não se encaixava na história. Por isso, tivemos de fazer algo que fosse mais como uma participação especial. E o editor disse: "Ouve, o melhor é pô-lo como uma criança a brincar na rua assim". E é verdade que o futebol deve ter existido assim no início, como brincadeira infantil, com algo que era atirado de um lado para o outro, uma bola de algum tipo. E, portanto, na verdade, a ideia era dizer que Ronaldo estava na origem do futebol. Que o criou lá atrás, na Lusitânia. Ou pelo menos o antepassado dele (risos).


As Leituras do Pedro - E quanto à Amália?

Fabcaro - Era impossível não a referir. Fado é Portugal. O fado tinha de ser incluído a todo o custo, e gostei da ideia de a fadista que aparece no álbum se chamar Amália, como homenagem à grande fadista portuguesa.


As Leituras do Pedro - Há dois anos, quando falámos a propósito de O Lirio Branco, disse-me que tinhas contrato para fazer apenas um álbum, mas que queria fazer um segundo. E agora já tem contrato para o terceiro?

Fabcaro - Não, de cada vez é álbum atrás de álbum. Na verdade, no início, vim porque Jean-Yves Ferry, o argumentista anterior, queria fazer uma pausa. Não faço ideia se ele quer voltar ou não. Portanto, estou a avançar álbum a álbum. Mas se me perguntar se quero, sim, quero fazer um terceiro. Vamos ver.

As Leituras do Pedro - Já tem anotações para o próximo?

Fabcaro - (risos) Comecei a pensar em algumas ideias. Só por precaução, veremos.


As Leituras do Pedro - Será um álbum passado na aldeia gaulesa?

Fabcaro - Sim. Diverti-me muito a viajar, mas quero realmente respeitar a alternância aldeia-viagem. Por isso, se fizer o próximo, gostaria de respeitar essa tradição de voltar à aldeia.

As Leituras do Pedro - Foi mais fácil escrever uma história na aldeia ou em viagem?

Fabcaro - Achei a viagem mais fácil, porque na aldeia tens sempre o mesmo cenário, as mesmas personagens. Tens mesmo de ser criativo para criar histórias diferentes de cada vez. Viajar ajuda. Há uma nova paisagem, uma nova cultura, novas especialidades culinárias, novas personagens. Com tudo isto torna-se muito mais fácil alimentar a história. Temos outros cenários, e isso ajuda. Por isso, assim, achei mais fácil fazer um álbum de viagens.


As Leituras do Pedro - Conrad, prefere fazer álbuns passados ​​na aldeia ou álbuns de viagens?

Didier Conrad - Gosto dos dois, mas desafio não é o mesmo. Criativamente, é mais compensador fazer um álbum de viagens porque há muitos elementos novos, por isso posso introduzir aspectos mais pessoais. E há mais liberdade também, precisamente porque não foi codificado ou criado previamente por Uderzo. Então, por isso, sinto-me mais livre. Mas, ao mesmo tempo, tem de se encaixar bem com o grafismo da série, com o que já existia, com o modelo que existia antes. Portanto, ainda há restrições.

Fora isso, um álbum na aldeia é muito mais sobre expressividade. É um pouco mais complicado de desenhar porque é preciso ser capaz de criar algo verdadeiramente novo com o que já existe. E não se podem fazer tantas variações. A longo prazo, é mais difícil. Mas a parte difícil também é interessante.


As Leituras do Pedro - Fabcaro, penso que se sentiu mais confortável neste álbum do que no primeiro. No primeiro, penso que utilizou algumas ideias, não apenas ideias, mas situações que Goscinny tinha criado nos seus álbuns, em jeito de homenagem mas também para evocar outras aventuras. Neste Astérix na Lusitânia, sente-se mais à vontade.

Fabcaro - Estou muito satisfeito. Sinto que em O Lírio Branco que me estava a encontrar. Foi o primeiro álbum; foi a primeira vez que escrevi uma história tão longa, ainda mais um Astérix. Por isso, neste, fiquei mais à vontade. Se isso transparece, estou satisfeito.

As Leituras do Pedro - Sim, acho que O Lírio Branco tinha oscilações de ritmo, esta é mais equilibrada ao longo de toda a narrativa.

Fabcaro - Obrigado, excelente.


As Leituras do Pedro - Alterou alguma coisa na forma de trabalhar nos dois álbuns?

Fabcaro - Não, procedi da mesma forma, mas o primeiro ajudou-me... adquiri alguns automatismos. O primeiro ajudou a orientar-me. A maneira de escrever foi a mesma. Faço-o quase sempre da mesma forma. Quando tenho uma ideia geral, não estruturo o álbum por completo. Depois de ter a ideia geral, improviso bastante, mesmo que isso implique voltar páginas atrás, remover páginas, adicionar páginas. Mas mantive o mesmo método de O Lírio Branco. O primeiro álbum que escrevi talvez tenha ajudado um pouco a orientar-me, a colocar os cursores certos no cerne da narrativa.


As Leituras do Pedro - Se a decisão fosse sua, onde gostaria de enviar Astérix e Obélix, qual seria o destino deles, se o pudesse escolher do ponto de vista gráfico?

Didier Conrad - Essa é uma boa questão. Se tivesse de escolher um país pelo grafismo, qual escolheria? É difícil dizer. Como tudo se passa na Antiguidade, gravitamos automaticamente para as grandes civilizações que são muito conhecidas, temos Roma, o Egito, a Abissínia... Talvez gostasse de ir diretamente para a Ásia, porque lá, de facto a diferença é muito pronunciada. Se pudéssemos criar uma história com os Jardins da Babilónia, por exemplo, graficamente, seria interessante. Porque não temos representações deles. Teria de imaginar jardins suspensos.

Que mais poderia ser interessante? A Torre de Babel, por exemplo, era que gostaria de representar. Mas se tivesse de o fazer, sofreria muito.

As Leituras do Pedro - Fabricaro, são ideias para o seu quarto álbum?

Fabcaro - Estou a anotar. Estou a anotar tudo o que ele está a dizer. (risos)

Didier Conrad - Os Jardins da Babilónia e a Torre de Babel.

As Leituras do Pedro - E se colocasse lá a Falbala? Há dois anos disse-me em entrevista que lamentava nunca ter desenhado a Falbala.

Didier Conrad - Gostava de desenhar uma Falbala. E também gostava de desenhar a abordagem de uma galé, uma batalha naval.

Outra coisa que me daria prazer, seria desenhar uma cena nos esgotos de Roma. A cidade inteira. Roma inteira, mas debaixo da terra. Ou seja, no subsolo. Porque havia muitos túneis, muitas ramificações... Mas isto seria demasiado sombrio. Acho que não funcionaria muito bem.


As Leituras do Pedro - É possível Astérix regressar a um país que já visitou? Ou existe uma 'lei interna' que diz que ele não pode regressar a destinos onde já esteve?

Fabcaro - Curiosamente, ontem falámos sobre. Estávamos a conversar achámos que era perfeitamente possível. Dissemos que, por exemplo, quando foi feito Astérix entre os Godos, a Alemanha não era a mesma. Isso foi na década de 1960. Seria perfeitamente possível fazer Astérix regressar lá Alemanha. Hoje, seria uma Alemanha completamente diferente. Por isso, acho que não devemos descartar revisitar locais que já foram abordados.


As Leituras do Pedro - Desta vez, houve uma grande diferença entre a capa provisória e a final. Porquê?

Didier Conrad - Na altura, o Fabcaro pediu-me para fazer vários projetos de capa. Fiz duas, e ambas foram utilizadas de forma diferente. Uma era mais gráfica. E, de facto, era muito boa como gancho, para intrigar o leitor. Era essa a que eu preferia. Era mais gráfica, mas não combinava muito bem com Astérix. Estava mais próxima das capas de álbuns que fazia para a minha própria série.

A segunda, surgiu de uma sugestão do Fabrice [Fabcaro], que me disse que seria giro ver isto, isto e aquilo, diversos elementos de Lisboa. Então, simplesmente formatei-os e funcionou imediatamente.

As Leituras do Pedro - Eu gosto mais da primeira, acho que é mais portuguesa, a segunda é mais genérica.

Diider Conrad - O Fabrice prefere a segunda, a que foi escolhida. A outra é mais gráfica, mas não transmite grande coisa.


As Leituras do Pedro - Muito obrigado, foi um prazer.

(imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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