02/10/2023

Uma metamorfose iraniana

Por causa de uma inocente barata


Não foi Franz Kafka (1883 - 1924) quem escreveu Uma metamorfose iraniana - mas podia ter sido.
Aliás, neste livro, as alusões a obras - A Metamorfose, O Processo - do escritor checoslovaco são evidentes e tornam-se até extremamente incómodas pelo paralelismo evidente entre a ficção de há século e meio e a autobiografia contemporânea do autor.

Passo a contextualizar. Uma metamorfose iraniana narra, na primeira pessoa, meia dúzia de anos do verdadeiro pesadelo que o cartoonista iraniano Mana Neystani viveu devido a uma BD curta inocente, publicado num suplemento juvenil de um jornal. Tudo, porque uma expressão corrente na sua língua - algo equivalente ao ‘coisa’ que empregamos quando não encontramos a palavra a utilizar - em azeri designa (a) barata (que surgia na BD) e foi interpretado por alguém como uma alusão racista aquela etnia, uma das várias existentes no Irão. Daí ao despertar de sentimentos há muito reprimidos, expressos em manifestações e actos subversivos, foi suficiente para que o autor fosse acusado de incitar ao ódio, preso preventivamente e responsabilizado pelos prejuízos que esses actos causaram.

Não vou citar a forma rocambolesca e absurda como o suposto ‘processo’ se desenrolou, as angústias, dúvidas, temores, inseguranças e incertezas que Neystani viveu na prisão, primeiro, e nos países onde tentou exilar-se ou usar como plataforma para fugir para o Ocidente, porque isso iria destruir o prazer da leitura, já que o autor o faz de forma extremamente credível, realista e conseguida, no seu traço semi-caricatural, muito expressivo.

Aliás, é esse traço, num preto e branco, com muitos sombreados e/ou manchas negras, que lhe permite aqui e ali fugir à realidade estrita para nos ilustrar de forma metafórica e hiperbolizada o que sentiu - mesmo sem viver literalmente - em muitos momentos, na cela, nos interrogatórios, nas tentativas de o usarem como delator, na omnipresência do insecto causador (?) de tudo...

...infelizmente, de metamorfose - no sentido directo de transformação em algo mais belo - a situação iraniana não teve nada e, quase duas décadas depois do início dos acontecimentos narrados neste livro, tudo continua na mesma - senão pior.

O que só dá mais força a um relato - que merece ser lido e que dificilmente nos chegaria fora de uma colecção como a Novela Gráfica - e lhe confere uma actualidade renovada.


Uma metamorfose iraniana
Colecção Novela Gráfica VII / 2023 #5
Mana Neystani
Prefácio de Fernando Camacho
Levoir/Público
Portugal, 28 de Setembro de 2023
180 x 245 mm, 200 p., pb, capa dura
13,90 €

(imagens disponibilizadas pela Levoir; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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