Humedecer,
alisar, mergulhar, pintar
O crescimento da banda desenhada, das narrativas iniciais de humor e de aventura, para uma forma narrativa plena e diversificada tematicamente, contribuiu também para a assunção da sua consciência cívica. Da reportagem em zonas de guerra às abordagens ecologistas, da denúncia de situações sociais à recuperação de temáticas históricas fundamentais para o mundo de hoje, a banda desenhada tem-se afirmado, conseguindo chegar a outros leitores.
E leitoras, como pode ser o caso de Radium Girls, a mais recente proposta da Arte de Autor em português. Recuando até aos esfuziantes anos 1920, apresenta-nos uma meia dúzia de jovens mulheres - Edna, Katherine, Mollie, Albina, Quinta... dar-lhes nomes torna-as mais reais - com uma profissão curiosa: pintar com tinta fluorescente ponteiros de relógios, para eles brilharem no escuro. A sua forma de trabalhar era simples, o ritmo intenso e a exigência muita: diariamente tinham de pintar 250 unidades, necessitando para isso de uma rotina metódica e repetitiva: humedecer a ponta do pincel nos lábios, para a alisar, mergulhá-la na tinta e pintar os ponteiros. Principal senão: a tinta que era utilizada era a base de rádio.
E se hoje, mesmo que com conhecimento vago e limitado, sabemos o perigo daquele elemento radioativo, e imaginamos facilmente as suas consequências na saúde daquelas jovens na força da vida, entre a descoberta do mundo e o desejo de cumprir sonhos naturais como casar e ter filhos, ao longo do relato vamos acompanhando-as enquanto ignoram a sombra que paira sobre as suas vidas. Partilham experiências e anseios, momentos intensos, conversas sobre namorados, as rotinas do dia-a-dia e as noites loucas de bebidas e danças em bares ilegais, nas quais utilizam em si próprias a tinta para obterem efeitos espectaculares ou assustadores. Acima de tudo, mesmo com divergências e choques pontuais, partilham amizades intensas enquanto caminham para o abismo.
O conhecimento prévio que o leitor tem, acaba por contrastar com a forma alegre e descontraída como elas vão vivendo as suas vidas, aumentando a carga dramática de um relato, traçado com um traço simples e dinâmico e pintado com uma reduzida paleta de tons centrada no violeta e no verde-rádio, que evoca um dos caminhos seguido na luta por melhores e mais seguras condições de trabalho, embora o relato pudesse ter sido enriquecido se esta questão fulcral - e a sua discussão em tribunal - tivesse sido abordada de uma forma mais consistente.
Uma nota final para o efeito fosforescente da capa e contracapa do livro, que evoca o que as protagonistas faziam nas suas saídas nocturnas.
Radium
Girls
Cy
Arte
de Autor
Portugal,
Março de 2025
170
x 240 mm, 136
p., cor,
capa dura fosforescente
21,90
€
(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias a 22 de Março de 2025; imagens disponibilizadas pela Arte de Autor; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Excelente texto sobre um excelente livro com uma excelente edição
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