Paul Karasik (argumento)
David Mazzucchelli (desenho)
ASA
Portugal, Março de 2013 (2ª edição)
140 x 210 mm, 138 p., pb, brochada com badanas
15,50 €
A transposição de uma obra de um género para outro - a vulgar adaptação - para
ser bem-sucedida tem que conseguir cumprir dois quesitos principais. Primeiro:
manter o espírito e a essência da obra original - o espírito, friso bem.
Segundo: que a "adaptação" funcione autonomamente no género que a
acolhe, sem que haja necessidade do conhecimento da obra original para a fruir
plenamente.
O melhor exemplo de más adaptações de literatura para banda
desenhada, são aquelas que mantêm a versão escrita original, funcionando o todo
apenas como texto (quantas vezes mal) ilustrado e não como uma verdadeira BD - ou
seja, uma obra composta por imagens sequenciais em que, quando existente, o
texto não é independente dos desenhos, nem vice-versa.
Ora, isto não acontece em "Cidade de vidro" que funciona
perfeitamente na adaptação aos quadradinhos feita por Paul Karasik e David
Mazzucchelli, pese embora o carácter quase abstracto do texto original de Paul
Auster.
Relembro que na base deste relato está Quinn, um escritor de
segunda categoria que, após receber diversos misteriosos telefonemas nocturnos
que procuravam um detective de nome Paul Auster, decide assumir essa
identidade, sendo encarregado de seguir um certo Peter Stilman, e evitar que
este se aproxime do filho para o matar. Quinn transforma-se então na sombra de Stilman, até este
desaparecer, altura em que o pretenso investigador decide sentar-se 24 horas
por dia em frente à sua porta, acabando por se fundir com as paredes, o beco
onde está, os caixotes de lixo que o "enfeitam" - com aquela cidade,
uma cidade de vidro que tudo mostra mas onde nos tornamos assustadoramente
vazios, ocos, partes inúteis de um todo que funciona sem nós/apesar de nós.
Só que no resumo deste policial sem acção, a intriga parece enganadoramente
linear, já que Auster, como noutras ocasiões, optou por um enredo complexo,
muito baseado nas ideias - em ideias - em conceitos e no valor variável das
palavras, nas ilusões que provocam, conforme são ditas e ouvidas…
Isto, na verdade, só torna mais notável a forma como Karasik
e Mazzucchelli conseguiram transpor o romance para BD. Se a história era
opressiva, obsessiva, sufocante, quase um delírio, é isto que o traço de
Mazzucchelli - quase só esboço, por vezes próximo da absoluta depuração -
recria e acentua, tornando o todo incómodo para o leitor.
Veja-se como um discurso se pode tornar estranho - e como
muda o seu significado, o seu impacto - pelo tão simples pormenor de o balão
que o contém não apontar para quem o profere, como é normal, mas sair de dentro
da personagem, do seu íntimo - das suas entranhas… E veja-se também como Karasik e Mazzucchelli, conseguem
reproduzir em BD a predominância das palavras - e o espírito intrinsecamente
abstracto do relato - ao utilizarem imagens que parecem filmadas por uma câmara
rotativa, que tanto vai mostrando cenários como intervenientes, enquanto roda
pelo espaço, se aproxima e se afasta em efeitos de zoom, que acompanham o fluir
das palavras, envolvendo, mergulhando, perdendo o leitor nos seus densos e
diversificados sentidos.
Um bom exemplo, é a sequência em que Peter Stilton
("que não é Peter Stilton") se apresenta, em que parece graficamente
"aprisionado" numa planificação fixa e inalterável de 9 vinhetas
iguais por página, ao longo de várias pranchas, que muito naturalmente se
acabam por fundir numa prancha única, falsamente composta pelas tais 9 vinhetas
e mas que o leitor também pode visualizar como a porta de uma cela, onde a
"imagem branca entre as vinhetas" - esse notável conceito da BD, um
pedacinho de espaço/tempo em que o leitor vê/imagina o que acontece entre duas
vinhetas sucessivas - tem o papel das grades dessa porta.
(Texto publicado no Jornal de Notícias de 1 de Outubro de
2006, com o título “O desenho das palavras da Cidade de Vidro”)
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