Acalmado o rebuliço mediático que o seu lançamento causou, a distribuição, hoje, do álbum Astérix entre os Pictos, com o jornal Público, integrado na
colecção Astérix à Volta do Mundo,
é o pretexto (desnecessário) para uma (re)leitura de um álbum que, se não tem a
marca de génio (e a originalidade) que era apanágio de René Goscinny, está
também longe de ser tão mau como (alguns) o pintaram.
Saiba porquê, já a seguir.
Os autores de um novo álbum de Astérix enfrentavam um
desafio grande: fazer esquecer as criações recentes de Uderzo a solo mas, mais
do que isso, aproximar-se do legado de Goscinny. Pelo menos era isto que lhes
era exigido pelos fãs do gaulês, esquecendo que, para o bem e para o mal,
Astérix contava até à data com 34 álbuns e é nesse conjunto que é necessário
encontrar a sua identidade. Ou, desde há cerca de dois meses, nos 35 álbuns
existentes (onde a viagem à terra dos Pictos já está incluída) pois é esse o
grande perigo da retoma de grandes séries: expandir o seu universo até ao ponto
de não se distinguir entre o original e as tentativas de aproximação.
Ferri, de forma inteligente, tentou regressar à época
dourada das aventuras dos gauleses, retomando a temática das viagens, assente
na necessária base histórica, sem excessos. A par disso, criou uma série de
momentos que fazem a ponte com outros álbuns e permitem uma maior identificação
do leitor com a nova história: a neve das primeiras pranchas (como acontecia em
Astérix e Cleópatra), a ida à praia (Astérix e os Normandos), etc. Não
esqueceu, igualmente, as cenas incontornáveis, sejam elas confrontos com
romanos, os problemas do chefe com o escudo ou o banquete final.
Quanto à trama global em si, ela está bem explanada, sem
grandes surpresas, é verdade, mas com alguns bons momentos de humor,
trocadilhos e jogos de palavras conseguidos e um retrato consistente (e
identificável) dos pictos (e dos seus descendentes escoceses).
No entanto, para além da ausência de Ideaifix – que até poderia
ter uma interacção interessante com Atroik - Ferri comete, a meu ver, dois
erros graves.
O primeiro, é o monstro do Loch Ness, algo que Goscinny não
utilizaria (pelo menos de forma tão óbvia, acredito eu), mas que faz sentido no
seguimento das ‘inovações’ que Uderzo introduziu em álbuns recentes.
O segundo, mais grave, é a presença do censor romano na
aldeia, tolerado pelos gauleses, algo inacreditável pois a sua aceitação é o
reconhecimento implícito da pertença ao império romano, pondo de lado a sua irredutibilidade.
Não que ele não seja fonte de uma série de gags sequenciais bem conseguidos que
são mesmo do melhor a nível de humor que o álbum apresenta; a personagem só não
faz sentido integrada no espírito da série e face ao carácter dos seus
protagonistas.
Em termos de desenho, Conrad conseguiu mimetizar bem o traço
de Uderzo nos anos 70/80, embora os seus fundos sejam (bem) mais despidos, por
vezes as personagens pareçam suspensas sobre os cenários (à moda de uma certa
animação…) e, surpreendentemente, revele algumas insuficiências nas
representações femininas, o que é de espantar olhando a algumas das suas obras…
Uma nota final para o infeliz baptismo em português do
protagonista picto, MacBrasa – graficamente próximo de Umpá-pá, numa
interessante homenagem a Goscinny e Uderzo - pela colagem excessiva – porquê? -
a um dos protagonistas da série televisiva Anatomia
de Grey e por datar demasiado a opção, que daqui a alguns (poucos?) anos
será incompreensível, em especial quando muitos dos outros pictos receberam
nomes portugueses bem conseguidos. A título de curiosidade, fica a referência
que no original francês o seu nome – MacOlloch – era uma corruptela de ‘colloc’
(camarada, amigo…).
Jean-Yves Ferri (argumento)
Didier Conrad (desenho)
Edição Público + ASA
(capa no topo do texto)
(capa no topo do texto)
225 x 295 mm, 48 p., cor,
brochado com badanas
6,95 €
Edição ASA
(capa ao lado)
(capa ao lado)
225 x 295 mm, 48 p., cor, cartonado
12,90 €
Álbum que tirou um pouco a série do grande fosso em que tinha caído, nos últimos álbuns. Bem melhor que os anteriores (não era difícil), mas longe dos tempos áureos de (um génio chamado) Goscinny.
ResponderEliminarPara primeiro álbum da dupla está bastante aceitável, havendo a limar algumas arestas, bem apontadas no artigo: o Ideiafix podia ter sido incluído na viagem (como é que o Obélix aceita a separação?), o visionamento do monstro podia ter sido mais subtil (com nevoeiro), e o censor romano podia ser o fulano que rondava a aldeia e ia tentando fazer o seu trabalho. Do lado de fora. A sua presença é de facto, e verdadeiramente, contra natura o espírito da série.
Olá Jorge!
ResponderEliminarDiria mesmo mais, pôs fim (ou apenas um intervalo?) ao pesadelo dos leitores...!
Quanto ao resto, estamos em sintonia.
(Continuação de) boas leituras!