22/05/2019

Pitanga: O colega de Sevilha

Aventuras e tribulações de um barbeiro a domicílio






Já o disse e escrevi muitas vezes e - escudado pela releitura ‘integral’ das aventuras de Pitanga - reitero: Arlindo Fagundes é uma das pessoas que em Portugal melhor narra em banda desenhada, apesar do percurso atribulado que perseguiu (quase) cada uma das edições do seu herói invulgar.
Pitanga, de seu nome de guerra, (curioso) barbeiro a domicílio, apresentou-se aos leitores no (então surpreendente) La Chavalita (Caminho, 1985). Regressaria, de forma recorrente e irregular ao longo dos anos, décadas seguintes. Em histórias curtas, primeiro em Pitanga e os Animais (Futura, Mosquito #11 - 5.ª série, 1985), depois com Quem vem e atravessa o rio… (ASIBDP - Quadrado #3 - 2.ª série, 1991), seguindo-se Parabéns a você (ASIBDP - Quadradinho #1, 1996) e fechando com Pitanga e o Paradoxo do barbeiro (Jornal Mundo Universitário, 2007). Antes desta última, protagonizaria um segundo álbum, A rapariga do poço da morte (Caminho, 2003), ensaiando agora nova ‘ressurreição’ neste O Colega de Sevilha (arcádia, 2019).

Mas, se o percurso espaçado já o pode indiciar, poucos conhecem as tribulações que (quase) cada edição sofreu.
Quem vem e atravessa o rio… , escrita por Arlindo Fagundes e desenhada por Pedro Sousa Dias, numa tentativa de multiplicar as aparições do herói sob diversos traços unificados pela escrita do seu criador, esteve anos na gaveta devido a desentendimento entre os autores.
Em Parabéns a você, Fagundes teve que duplicar o número de pranchas, praticamente de um dia para o outro, devido a um lapso.
A rapariga do poço da morte, cujas primeiras páginas foram mostradas no Salão Internacional de BD do Porto em 1987, só veria a luz do dia 16 (!) anos depois.
E o actual O Colega de Sevilha em 2009 já tinha ‘33 pranchas prontas’, seria mesmo anunciado em 2014 por outra editora e, antes desta edição da arcádia, foi projecto de outra ainda, integrado num ‘integral Pitanga’ que pessoalmente lamento não se ter concretizado.

Mas, para além de tantas tribulações, de aparições recorrentes - algo raro na BD lusa - e até de uma curiosa profissão que lhe garante a mobilidade que um bom heróis de aventuras necessita, o que faz de Pitanga um caso à parte na banda desenhada portuguesa?
Quem folheia qualquer um daqueles trabalhos, duvidará do que já escrevi. O desenho só por si não é atraente, o traço não cativa, mas a leitura mostrará rapidamente as suas qualidades: uma planificação bem ritmada, uma montagem das pranchas quase cinematográfica, com os planos e as tomadas de posição a multiplicarem-se em nome da legibilidade e do dinamismo, e diálogos vivos, credíveis e bem humorados que cativam o leitor e fazem as histórias - consistentes e bem estruturadas - avançar sem saltos nem tropeções. Para além disso, os locais da acção são próximos, reais e reconhecíveis, sejam eles Ourense ou Vila Verde, o cemitério de Amares onde jaz António Variações - figurante inesperado de La Chavalita - Sevilha ou Tânger.
Mais, tendo as aventuras de Pitanga na sua base enredos policiais bem resolvidos, com o mistério e a acção a avançarem de mãos dadas, privilegiando um ou outra conforme as necessidades, elas estão também ancoradas na actualidade, com temáticas que o tempo - infelizmente - não tornou obsoletas: La Chavalita girava em torno das redes de prostituição no Norte de Portugal e na Galiza; Pitanga e os animais questionava os preconceitos contra os ciganos; Quem vem e atravessa o rio… expunha a dualidade retornados/racismo; agora, O Colega de Sevilha aborda a questão das travessias clandestinas de África para a Europa, já em voga há quase duas décadas quando esta BD arrancou e ainda tema recorrente nos noticiários com as consequências trágicas que se conhecem.
Por tudo isto, Pitanga está longe de ser coisa pouca, menos ainda no contexto da BD portuguesa. E mais merece encómios, se atendermos a que estamos a considerar uma banda desenhada comercial - no bom sentido do termo - aquilo a que os franceses chamam de ‘grande público’, acessível (e compreensível par)a todos, de leitura ligeira mas não vazia.
Na sombra de Pitanga, há uma contida galeria de personagens, bem definidos, mesmo que aqui e ali mais caricaturalmente: o cego Armando, a bela Myriam, o sem-abrigo Penalti, o aluado Ligeiro, com protagonismos repartidos e actuações sóbrias.

Todos eles - e tudo o atrás descrito - estão de volta em O Colega de Sevilha que apresenta como principal particularidade a utilização da cor pela primeira vez - porque não considero cor o assassinato rosa/violáceo que o Jornal da BD fez em tempos idos a La Chavalita.
Nascida numa tentativa (?) de chegar a um público mais alargado, é da responsabilidade de José Pedro Costa, que faz um bom trabalho, com uma paleta alargada, com os tons em Tânger mais próximos dos ocres arenosos e em Sevilha ostentando uma maior claridade. Mas é especialmente nas cenas noturnas, sombrias e carregadas de névoa na travessia do estreito que separa África e Europa, mas suficientemente iluminadas para manterem toda a legibilidade, que o trabalho de Pedro Costa se destaca mais.
Pessoalmente, acho que os contornos das vinhetas fazem falta e que a cor - de que gosto, volto a dizer - que até compôs alguns fundos que por vezes se apresentavam incomodamente vazios, roubou alguma espontaneidade e dinamismo ao traço de Fagundes, a que falta também o esvoaçar do longo cachecol do protagonista. Pode ser uma leitura errada da minha parte, poder ser apenas uma questão de evolução do autor mas...
A história que arranca com Pitanga em Tânger, perseguido pela polícia local, transporta uma forte componente trágica a par dos negócios escuros em torno das travessias que levam anualmente milhares de iludidos das suas terras natais onde impera a pobreza e, muitas vezes, as perseguições, para a miragem de uma vida fácil e riqueza ao alcance de todos na ostentatória Europa que quase sempre não é mais que o cemitério onde vão ser enterrados sonhos e ilusões, ambições e anseios - e muitas vezes aqueles que os tinham.
Com o seu humor peculiar, que pontua os diálogos, tornando-os vivos e naturais, Arlindo Fagundes, sem falsos moralismos, mais na óptica de construção da história que deseja contar do que fazendo dela um panfleto acusador - embora o dedo não deixe de estar apontado… - leva-nos mais uma vez, com o ritmo à desfilada, numa sucessão de percalços, encontros, desencontros e confrontos até ao desfecho que escolheu - um pouco mais optimista, talvez, do que a realidade de todos os dias - que no entanto não resolve nem encerra nada, para além de mais um capítulo da saga aventurosa de Pitanga.
...cujo regresso, dirá facilmente qualquer aplicação matemática, deverá voltar a ocorrer lá para 2035. Já reservei lugar para ele na prateleira.

O Colega de Sevilha
Arlindo Fagundes (argumento e desenho)
José Pedro Costa (cor)
Arcádia
Portugal, Maio de 2019
215 x 285 mm, 60 p., cor, capa dura
16,99

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Sendo Arcádia, espero que apareça nas prateleiras da Federação Nacional dos Alérgicos ao Trabalho, ou Fabrica Nacional de Ares Condicionados.
    Dei um salto a uma delas hoje e tirando as edições Manga (muito bem representadas), não havia grande coisa nova.

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    Respostas
    1. Vai aparecer na FNAC, com certeza, como noutras cadeias de livrarias como a Bertrand, que até já o tem anunciado como disponível...
      Eu é que desta vez me antecipei ao lançamento físico da obra, contrariando o que tem sido habitual aqui no blog, onde as obras só costumam ser analisadas depois de serem distribuídas... Nem sempre, nem nunca!
      Boas leituras!

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