Já
o disse e escrevi muitas vezes e - escudado pela releitura ‘integral’
das aventuras de Pitanga - reitero: Arlindo Fagundes é uma das
pessoas que
em
Portugal melhor narra em banda desenhada, apesar do percurso
atribulado que perseguiu (quase) cada uma das edições do seu herói
invulgar.
Pitanga,
de seu nome de guerra, (curioso) barbeiro a domicílio, apresentou-se
aos leitores no (então surpreendente) La
Chavalita
(Caminho, 1985). Regressaria, de forma recorrente e irregular ao
longo dos anos, décadas seguintes. Em histórias curtas, primeiro em
Pitanga
e os Animais
(Futura, Mosquito #11 - 5.ª série, 1985), depois com Quem
vem e atravessa o rio…
(ASIBDP - Quadrado #3 - 2.ª série, 1991), seguindo-se Parabéns
a você
(ASIBDP - Quadradinho #1, 1996) e fechando com Pitanga
e o Paradoxo do barbeiro (Jornal
Mundo Universitário, 2007). Antes desta última, protagonizaria
um
segundo álbum, A
rapariga do poço da morte
(Caminho, 2003), ensaiando agora nova ‘ressurreição’ neste O
Colega de Sevilha
(arcádia, 2019).
Mas,
se o percurso espaçado já o pode indiciar, poucos conhecem as
tribulações que (quase) cada edição sofreu.
Quem
vem e atravessa o rio…
, escrita por Arlindo Fagundes e desenhada por Pedro Sousa Dias, numa
tentativa de multiplicar as
aparições do
herói sob diversos traços unificados pela escrita do seu criador,
esteve anos na gaveta devido a desentendimento entre os autores.
Em
Parabéns
a você,
Fagundes teve que duplicar o número de pranchas,
praticamente de um dia para o outro, devido a um lapso.
A
rapariga do poço da morte,
cujas primeiras páginas
foram mostradas no Salão Internacional
de
BD do Porto em 1987, só veria a luz do dia 16 (!) anos depois.
E
o
actual O
Colega de Sevilha em
2009 já tinha ‘33 pranchas prontas’,
seria
mesmo anunciado em 2014 por outra editora
e, antes desta edição da arcádia, foi projecto de outra ainda,
integrado
num ‘integral
Pitanga’ que pessoalmente lamento não se ter concretizado.
Mas,
para além de tantas tribulações, de aparições recorrentes - algo
raro na BD lusa - e
até de uma curiosa profissão que lhe garante a mobilidade que um
bom heróis de aventuras necessita, o que faz de Pitanga um caso à
parte na banda desenhada portuguesa?
Quem
folheia qualquer um daqueles trabalhos, duvidará do que já escrevi.
O desenho só por si não é atraente, o
traço não cativa, mas
a
leitura mostrará rapidamente as suas qualidades: uma planificação
bem ritmada, uma montagem das pranchas quase cinematográfica, com os
planos e as tomadas de posição a multiplicarem-se em nome da
legibilidade e do dinamismo, e diálogos vivos, credíveis e bem
humorados que cativam o leitor e fazem as
histórias
- consistentes
e bem estruturadas - avançar
sem saltos nem tropeções. Para além disso, os locais da acção
são próximos,
reais
e reconhecíveis, sejam eles Ourense ou Vila Verde, o cemitério de
Amares onde jaz António Variações - figurante inesperado de La
Chavalita
- Sevilha ou Tânger.
Mais,
tendo as aventuras de Pitanga na sua base enredos policiais
bem resolvidos, com
o mistério e a acção a avançarem de mãos dadas, privilegiando um
ou outra conforme as necessidades, elas estão também ancoradas na
actualidade, com temáticas que o tempo - infelizmente - não tornou
obsoletas: La
Chavalita
girava em torno das redes de prostituição no Norte de Portugal e na
Galiza; Pitanga
e os animais
questionava os preconceitos contra os ciganos; Quem
vem e atravessa o rio…
expunha a dualidade retornados/racismo; agora,
O
Colega de Sevilha
aborda a questão das travessias clandestinas de África para a
Europa, já
em voga há quase duas décadas quando esta
BD arrancou e ainda tema recorrente nos noticiários com as
consequências trágicas que se conhecem.
Por
tudo isto, Pitanga está
longe de ser coisa pouca, menos ainda no contexto da BD portuguesa. E
mais merece encómios, se atendermos a que estamos a considerar uma
banda desenhada comercial - no bom sentido do termo - aquilo a que os
franceses chamam de ‘grande público’, acessível (e
compreensível par)a todos, de
leitura ligeira mas não vazia.
Na
sombra de Pitanga, há uma contida galeria de personagens, bem
definidos, mesmo que aqui e ali mais caricaturalmente: o cego
Armando, a bela Myriam, o sem-abrigo Penalti, o aluado Ligeiro, com
protagonismos repartidos e actuações sóbrias.
Todos
eles - e tudo o atrás descrito - estão de volta em O
Colega de Sevilha que
apresenta como
principal particularidade a utilização da cor pela primeira vez -
porque não considero cor o assassinato rosa/violáceo que o Jornal
da BD
fez em tempos idos a La
Chavalita.
Nascida
numa tentativa (?) de chegar a um público mais alargado, é da
responsabilidade de José Pedro Costa, que faz um bom trabalho, com
uma paleta alargada, com
os tons em Tânger mais
próximos dos
ocres arenosos e em Sevilha ostentando
uma maior claridade. Mas é especialmente nas cenas noturnas,
sombrias e carregadas de névoa na travessia do estreito que separa
África e Europa, mas suficientemente iluminadas para manterem toda a
legibilidade, que o trabalho de Pedro Costa se destaca mais.
Pessoalmente,
acho que os contornos das vinhetas fazem falta e que a cor - de que
gosto, volto a dizer - que até compôs alguns fundos que por vezes
se apresentavam incomodamente vazios, roubou alguma espontaneidade e
dinamismo ao traço de Fagundes, a que falta também o esvoaçar do
longo cachecol do protagonista. Pode ser uma leitura errada da minha
parte, poder ser apenas uma questão de evolução do autor mas...
A
história que arranca com Pitanga já
em
Tânger, perseguido
pela polícia local, transporta
uma forte componente trágica a par dos negócios escuros em torno
das travessias que levam anualmente milhares de iludidos das suas
terras natais onde impera a pobreza e, muitas vezes, as perseguições,
para a miragem de uma vida fácil e riqueza ao alcance de todos na
ostentatória
Europa que quase sempre não é mais que o cemitério onde vão ser
enterrados sonhos e ilusões, ambições e anseios - e
muitas vezes aqueles que os tinham.
Com
o seu humor peculiar, que pontua os diálogos, tornando-os
vivos e naturais, Arlindo Fagundes, sem falsos moralismos, mais na
óptica de
construção da
história
que deseja contar do que fazendo dela um panfleto acusador - embora o
dedo não deixe de estar apontado… - leva-nos mais uma vez, com o
ritmo à desfilada, numa sucessão de percalços, encontros,
desencontros e confrontos até ao desfecho que escolheu - um pouco
mais optimista, talvez, do que a realidade de todos os dias - que no
entanto não resolve nem encerra nada, para além de mais um capítulo
da saga aventurosa de Pitanga.
...cujo
regresso, dirá facilmente qualquer aplicação matemática, deverá
voltar a ocorrer lá para 2035. Já reservei lugar para ele na
prateleira.
O
Colega de Sevilha
Arlindo
Fagundes (argumento
e desenho)
José
Pedro Costa (cor)
Arcádia
Portugal,
Maio de 2019
215
x 285
mm, 60
p., cor, capa dura
16,99
€
Sendo Arcádia, espero que apareça nas prateleiras da Federação Nacional dos Alérgicos ao Trabalho, ou Fabrica Nacional de Ares Condicionados.
ResponderEliminarDei um salto a uma delas hoje e tirando as edições Manga (muito bem representadas), não havia grande coisa nova.
Vai aparecer na FNAC, com certeza, como noutras cadeias de livrarias como a Bertrand, que até já o tem anunciado como disponível...
EliminarEu é que desta vez me antecipei ao lançamento físico da obra, contrariando o que tem sido habitual aqui no blog, onde as obras só costumam ser analisadas depois de serem distribuídas... Nem sempre, nem nunca!
Boas leituras!