03/06/2019

Le dernier pharaon

Regresso às Cidades Obscuras





Era uma dos álbuns mais aguardados do ano e será, certamente, um dos mais vendidos, graças ao nome do seu autor - François Schuiten, que tem no argumento a parceria do romancista Thomas Gunzig e do cineasta Jaco Van Dormael - e por se tratar de uma abordagem muito original ao universo de Blake e Mortimer. E por se tratar de uma belíssima obra.
No entanto, nem todas as expectativas serão cumpridas, como explico mais à frente, num texto que poderá revelar mais do que os leitores querem saber, por isso, prossigam por vossa conta e risco.
O livro abre com uma citação do próprio Schuiten: “Porque razão as histórias de E. P. Jacobs se enraizaram de forma tão forte em nós?”, que pessoalmente partilho. Mais a mais quando Le Dernier Pharaon tem como ponto de partida o final de O Mistério da Grande Pirâmide - que pela sua temática me marcou especialmente. E também a Mortimer, desde então vítima de pesadelos constantes e de alguma forma desacreditado perante a opinião pública e os seus pares devido a eles, como descobrimos nas primeiras pranchas desta obra, cuja acção decorre alguns anos mais tarde.
No início, a investigação de alguns hieróglifos, escondidos no interior do Palácio de Justiça de Bruxelas, acaba por provocar uma situação limite para Mortimer, no decurso da qual se manifesta um potente campo magnético, localizado no interior do edifício, que acaba por obrigar à evacuação da cidade e ao seu confinamento para tentar evitar o espalhamento do fenómeno e dos seus efeitos - auroras boreais, paragem dos circuitos eléctricos e alucinações naqueles que lhe são expostos...
Algum tempo depois, perante a ameaça de um bombardeamento iminente para tentar eliminar o fenómeno mas cujas consequências poderão ser globalmente desastrosas, Blake solicita nova intervenção de Mortimer - ambos envelhecidos em relação à imagem (perene) que temos deles - que avança para a cidade (agora) interdita e fantasma, para investigar a origem do pulso magnético e tentar contê-lo.
Pelo caminho, surgirão aliados inesperados e se a temática de ficção-científica que predomina na maioria dos títulos de Jacobs tem presença determinada, a obra tem igualmente outros níveis de leitura que nos transportam para a nossa realidade actual e nos obrigam - deveriam obrigar, pelo menos - a questionar o que estamos a fazer deste planeta e qual o legado que vamos deixar (já) aos nossos descendentes directos, perante a cada vez maior dependência da tecnologia, os problemas da imigração ou o crescimento do individualismo e da sociedade consumista, em detrimento da solidariedade e da vida em conjunto.
Com um arranque de ritmo propositadamente moderado, para permitir absorver a informação fornecida - e também contemplar a beleza do traço de Schuiten! - Le dernier pharaon - como era apanágio da obra de Jacobs - assume uma actualidade que está ausente da maioria das retomas deste universo. E, contrariamente ao habitual, não abusa demasiado dos textos de apoio longos e redundantes, o que permite a aceleração crescente do ritmo na segunda parte do álbum, com as descobertas e as revelações a sucederem-se até ao final que, certamente, surpreenderá um bom número de leitores.
Se o ponto de partida, como revelou Schuiten, foram algumas anotações de Jacobs que vieram ao encontro da vontade do desenhador de centrar a história num edifício que já apreciava, uma leitura atenta evocará no leitor, obviamente, diversos momentos de O Mistério da Grande Pirâmide, mas também lhe permitirá descobrir uma série de referências, mais ou menos evidentes, embora a diversos níveis, a outras obras do criador original da dupla britânica: os engenhos de O Segredo do Espadão, os animais pré-históricos de O Enigma da Atlântida, as alterações climáticas de S.O.S. Meteoros
Mas existem igualmente referências mais pessoais do próprio Schuiten, como a participação do seu cão como companhia de Mortimer, uma breve (mas marcante) utilização de A Doce no relato ou a utilização de uma brecha na parede como passagem para a área desconhecida do Palácio da Justiça, tal como acontecia em Le Musée des Ombres, a exposição que Angoulême lhe dedicou em 1999. E, sobretudo, neste álbum, gráfica e tematicamente tudo direcciona para o magnífico universo das Cidades Obscuras, idealizadas por Schuiten e Peeters, a que este álbum poderia perfeitamente pertencer, pelo grafismo, pelo protagonismo da cidade de Bruxelas, pelas preocupações levantadas...
Referi no arranque deste texto que Le Dernier Pharaon, no entanto, não cumprirá todas as expectativas geradas em seu redor, pois estou convencido que muitos puristas da série de Jacobs não vão gostar da enorme volta que Schuiten deu aos seus heróis de eleição, mas isto não coloca de forma nenhuma em causa a excelência da abordagem feita - numa óptica de qualidade intrínseca da obra, de homenagem ao original e de transposição dos seus princípios básicos para um relato plenamente actual apesar das décadas que separam o tempo da acção dos nossos dias - e que ela fará - sem excepção, atrevo-me a escrever… - as delícias dos admiradores de As Cidades Obscuras, que facilmente o identificarão como (mais) um título da série.

Nota 1
Última obra de François Schuiten em BD - segundo revelação do próprio em entrevista - Le Dernier Pharaon funciona como um belíssimo encerramento de uma carreira notável e seria difícil ter deixado melhor testemunho do que a BD significou para ele e do nível a que elevou esta arte.

Nota 2
Em francês, este álbum está igualmente disponível em formato italiano, com meia prancha por página. Na prática, significa a reprodução dos desenhos de Schuiten cerca de 30 % maiores do que na versão tradicional...

Nota 3
Como já escrevi por aqui, Le Dernier Pharaon foi ‘disputado’ por três editoras portuguesas. A ASA, que acabou por comprar os direitos - possivelmente por editar já a série principal - anunciou a sua edição para… Março de 2020?!
Num mercado pequeno como o nosso, quase um ano de atraso na publicação da edição em português em relação à original, para mais num livro que desperta tantas expectativas, representará a perda de umas centenas de exemplares de vendas em proveito da edição francófona. Se existe alguma lógica nisto, francamente não a consigo perceber...

Adenda 1
Considero justificado o comentário do pampam mais abaixo, por isso, para além da inclusão do colorista na ficha técnica, aqui ficam as minhas impressões sobre as cores deste livro.
François Schuiten, para além de um excelente ilustrador, foi sempre também um bom colorista, mas a escolha de Laurent Durieux para este álbum, (re)conhecido pelo seu trabalho como ilustrador, especialmente em cartazes, foi completamente acertada.
A sua contribuição - para alguns o aspecto mais saliente deste álbum - é magnífica pela forma como consegue criar ambientes e sensações através da uma utilização de uma paleta de tons maioritariamente sombrios e frios e com eles dotar o livro de uma grande legibilidade e de uma verdadeira alma, ao mesmo tempo que reforça as texturas e os volumes criados por Schuiten.
Para isso contribui, também, o tipo de papel e de impressão que o ilustrador belga 'exigiu' para o seu último álbum - respectivamente impressão UV e papel Munken - que realçam o trabalho gráfico e de cor dos dois autores. Este tipo de impressão, que teve de ser feito numa pequena tipografia tradicional italiana, é muito mais demorada, o que levou a que a preparação dos álbuns 240 mil álbuns da primeira edição francófona tivesse levado três semanas.
Será que a edição portuguesa terá de seguir o mesmo sistema e isso é (mais?) uma razão para o atraso? Não sei, mas parece-me que este é um daqueles casos em que os leitores mereciam uma explicação. Prévia, de preferência.

Le Dernier Pharaon
Colecção Autour de Blake & Mortimer, tome 11
François Schuiten, Thomas Gunzig e Jaco Van Dormael (argumento)
François Schuiten (desenho)
Laurent Durieux (cor)
Blake et Mortimer
França, 29 de Maio de 2019
237 x 310 mm, 92 p., cor, capa dura
EAN 9782870972809
17,95 €

Le Dernier Pharaon - version demi-format
307 x 243 mm, 176 p., cor, capa dura
EAN 9782870972830
29,95 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

8 comentários:

  1. De facto, a decisão da ASA de só publicar o livro um ano depois não tem qualificação! Obviamente vai vender menos do que o que devia e depois virá a justificação ah e tal, temos de repensar se continuamos ou não a publicar este álbuns novos...enfim!

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  2. Na verdade, e como editor, tenho de concordar completamente com a decisão da ASA. Sendo uma editora que se rege por métodos de comercialização diferentes dos nossos - G.Floy - e que tem um tipo de comercialização com mais exigências do que as nossas, seria difícil à ASA lançar em simultâneo DOIS álbuns do Blake e Mortimer. Na prática, eles são suficientemente distintos (e possivelmente mesmo controversos juntos dos fãs normais) para exigirem um marketing e uma comercialização diferentes. As tiragens e as vendas do B&M também serão provavelmente de molde a não causar preocupações específicas sobre a perda de vendas para a edição francesa. Mas são livros que a ASA não pode lançar ao mesmo tempo, e a segunda metade do Vale dos Imortais tem data de lançamento em França já marcada, e a ASA quer lançar ao mesmo tempo (Novembro).

    De acrescentar que o Último Faraó não foi editado em simultâneo em lado nenhum e que os ficheiros de edição ainda não estavam prontos para tradução. Ou seja, a ASA não pode adiantar o Livro 2 dos Imortais, quer lançá-lo ao mesmo tempo, e não se pode dar ao luxo de lançar o Faraó simultaneamente. A única solução era portanto adiar para inícios de 2019.

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  3. Estranho!
    Não referes o Laurent Durieux, nem no texto nem na ficha técnica final.
    Ele que até tem o nome na capa, coisa rara (ou nunca vista) num colorista.
    Além de ser também autor (da cor!), leva o desenho do Schuiten e da série para sítios nunca visitados.
    Pelas imagens vistas parece-me um trabalho notável e que deve ser destacado.

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    Respostas
    1. Acho o comentário justo, por isso fiz uma adenda ao meu texto. Caso raro aqui no blog.
      Boas leituras!

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  4. Para isso contribui, também, o tipo de papel e de impressão que o ilustrador belga 'exigiu' para o seu último álbum - respectivamente impressão UV e papel Munken - que realçam o trabalho gráfico e de cor dos dois autores. Este tipo de impressão, que teve de ser feito numa pequena tipografia tradicional italiana, é muito mais demorada, o que levou a que a preparação dos álbuns 240 mil álbuns da primeira edição francófona tivesse levado três semanas.
    Será que a edição portuguesa terá de seguir o mesmo sistema e isso é (mais?) uma razão para o atraso? Não sei, mas parece-me que este é um daqueles casos em que os leitores mereciam uma explicação. Prévia, de preferência.
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    Já se sabe se é assim? se tem papel especial na edição da ASA? senão vou considerar a edição francófona.

    cumps

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