27/09/2022

Palestina

Reportagem aos quadradinhos


Na década final do século passado, a banda desenhada de reportagem ganhou notoriedade e mediatismo e Joe Sacco foi um dos seus principais cultores.
Maltês, radicado nos Estados Unidos e com formação na área do jornalismo, Joe Sacco - convidado de um dos Salões Internacionais de BD do Porto - teve em Palestina (1993) um dos seus principais sucessos, pela presença constante então daquele território nos espaços noticiosos devido ao crescer das tensões entre os habitantes locais e o ocupante israelita.

Na origem desta reportagem com quase três centenas de páginas, esteve uma pesquisa sólida e profunda sobre a situação social, política e económica do território visível no relato, e uma estadia de cerca de dois meses no local, durante os quais Sacco, como qualquer repórter ‘tradicional’ visitou os territórios disputados, viveu e falou com os habitantes locais, reuniu com moderados e radicais, participou em manifestações, tomou conhecimento das represálias do exército israelita: cargas, prisões injustificadas, tortura, demolição de casas. Depois, de regresso a casa transformou essa experiência numa banda desenhada, em que o seu traço semi-caricatural contrasta com a crueza do relato e a violência - física e/ou psicológica - das situações relatadas de forma pungente e chocante, realçando como o ódio entre seres humanos os pode levar a limites inimagináveis. O facto de o autor aparecer como um dos protagonistas, acrescenta ao relato uma autenticidade extra e potencia um maior impacto junto dos leitores.

Assumidamente adepto da causa palestiniana, Sacco não se esconde atrás de uma falsa objectividade, mas consegue manter a distância em relação ao tema, umas vezes céptico, outras entediado ou cínico, na posição do repórter que quase deseja acção e sangue. Embora trema humanamente quando aquela se aproxima demasiado dele, humanizando um relato que é real e não ficção.


Edições em Portugal

Palestina, que teve uma primeira edição portuguesa, em 2004, numa parceria Mais Fantasma/Devir, em dois volumes - cujas capas, juntas formavam uma imagem maior, a primeira mostrada neste texto - um dos quais com prefácio do dr. Mário Soares escrito expressamente para aquela edição.

Agora, está de regresso às livrarias nacionais, numa Edição especial, que reúne a integralidade da banda desenhada, complementada com textos de Edward Said, um apoiante da causa palestiniana, e Sandra Monteiro, directora de Le Monde Diplomatique, que ajudam a contextualizar o relato, e 24 páginas de extras (fotos, mapas, desenhos preparatórios) comentados por Joe Sacco.

Em relação à presente edição, de saudar por trazer de regresso às livrarias nacionais, uma obra fundamental que deveria estar sempre disponível, há que apontar - e lamentar - o amadorismo da capa, do índice e dos títulos - feitos a marcador… - nada consentâneo com a importância do relato de Sacco.

O formato um pouco maior do que a anterior edição permite apreciar melhor o desenho, mas em termos de balonagem, a escolha da fonte dos diálogos, 'muito fina' (se posso escrever assim), foi infeliz, embora reconheça que não era fácil a aproximação que se justificava à escrita do autor [a título de curiosidade deixo abaixo a mesma página na edição original, na edição MF/Devir e na actual edição.]


Palestina
Joe Sacco
Tigre de Papel
Portugal, Setembro de 2022
180 x 275 mm, 320 p., pb, capa dura
25,95

(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 17 de Setembro de 2022; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)

12 comentários:

  1. Pedro, a aproximação à escrita de um autor, em termos de BD é relativamente simples.
    O que é necessário é criar uma fonte com digitalizações do texto. Neste caso a obra tem 3 estilos que o Joe Sacco usa e então seriam criadas 3 fontes.
    Claro que teriam de ser criadas as letras especiais do nosso alfabeto. Mais díficil mas penso que nada que não deva existir num tutorial na internet.

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    1. Isso eu também sei... assim como sei que dá trabalho
      ...mas reconheço que a forma como coloquei a questão acima possa não ter sido a mais feliz.
      Boas leituras!

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  2. Boa tarde Pedro, não poderia concordar mais consigo. Como já comentei aqui (e noutros fórúns) a balonagem e tipografia continuam a ser (salvo raras excepções) o parente pobre da edição de BD em Portugal. Continuam-se a repetir erros de edição crassos e a desculpa de custos acrescidos á edição não pegam. Este é um péssimo serviço prestado pela Tigre de Papel, somado á desastrada adaptação da capa original da Fantagraphics que tinha acabamentos gráficos á altura (estampagem metálica em capa inteira, lombada em teçido, etc...). Uma oportunidade perdida...

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  3. Concordo com aquilo que foi dito sobre a balonagem e fontes mas a qualidade do papel também tem muito que se lhe diga, as pranchas são tão saturadas de texto que é vital que o papel seja mais claro para maior legibilidade, pois que por comparação com o original, as edições portuguesas parecem feitas em papel de jornal, ou é um problema de iluminação nas fotos?

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    1. A edição da Mundo Fantasma/Devir tem papel mais escuro; a da Tigre de Papel tem papel branco.
      Boas leituras!

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  4. Era interessante ver outras edições do autor, como Footnotes in Gaza (mesmo tema genérico) ou Paying the Land (numa vertente mais ecologista), por exemplo. Palestine é excelente, mas por vezes parece que é o único livro de Joe Sacco que vale a pena.

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    1. Não é o único, com certeza, mas é possivelmente o mais famoso. E possivelmente o ideal, pare (re)começar a editar o Joe Sacco por cá, depois da passagem dele pela colecção Novela Gráfica, com o Gorazde.
      Esperemos que tenha sido o primeiro de vários...
      Boas leituras!

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    2. Infelizmente Joe Sacco ainda não foi decentemente publicado por cá. Como o Pedro Cleto refere mesmo a edição de Goradze (na Coleção Novela Gráfica) foi mal feita em papel de pouca gramagem, cortes muito dentro das margens e impressão de má qualidade onde as manchas e linhas de preto surgem "entupidas" anulando o belíssimo traço do autor.

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  5. Só um desfasamento da realidade leva alguns a escrever algo que na teoria é muito bonito, mas, na prática não é assim. Muitas das vezes os originais chegam ao editor já com atrasos consideráveis, por questões burocráticas, questões de logística, mau funcionamento de quem gere o backup dessas edições, etc. Já referi, que qualquer tipo de letra, tem de ser aprovado pelo detentor dos direitos. Criar uma fonte, sujeitaria ainda mais a edição a atrasos consideráveis e as máquinas quando não entra o trabalho a tempo e horas, fazem-se pagar. Há um planeamento entre a gráfica e a editora, que são para cumprir. Dos autores e editores de BD que conheço, maior parte trabalham com escassos conhecimentos de pré-press. Funcionam bem, aqueles que têm gabinetes de produção e isso contam-se pelos dedos de uma mão. E, a partir de Janeiro do ano que vem, a parafernália de tipos de letra vai diminiur, por imposições lógicas da Adobe. Claro, que isto passa tudo ao lado dos tudólogos.

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    1. Bom, o que está aqui em causa, sem prejuízo para as dificuldades de quem prepara as edições nacionais é que temos o direito de dizer de nossa justiça, afinal estamos a pagar o produto, certo? ou em alternativa devemos encolher os ombros, aceitar e seguir em frente sem dizer nada de maneira a evitar ferir susceptibilidades?
      Pessoalmente, não me importo de esperar até haverem condições para ter uma edição mais fiel ao original porque se não gostar do que fizeram no produto nacional então vou comprar a obra de origem. Simples.

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    2. Cada um é livre de se expressar como entende, desde que mínimamente conhecedor e não se coloque em causa competências, só por achar que sim. São tantas as condicionantes, desde a origem dos originais, imposições editoriais, disponibilidade, timings, aprovações e circuito de provas. Grande parte dos originais em BD, o texto está em bitmap, logo não editável pois foi manuscrito. Há noção por sinal, do tempo que demoraria uma legendagem à mão, com respectivas emendas? Talvez seja por aí, que a maioria deixou essa prática, pois além de dispendiosa, é demorada. O resultado final é melhor? Talvez. Justifica o gasto e o tempo demorado? Não. Há 20 anos, existiam provavelmente equipas numerosas para esse fim, hoje a realidade é diferente, ou seja, equipas reduzidas e recursos diferentes. Que isto que transmito não seja visto como desculpa, pois há efectivamente trabalhos sofríveis, mas como um revelar de uma realidade diária, onde se luta constantemente contra o tempo.

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    3. O facto de vir para estas caixas de comentários repetir uma resposta formatada apenas revela que foi tocado um nervo. De igual forma o facto de não se identificar revela a pouca ombridade em ouvir e aceitar outras opiniões. Ao assumir a postura de dono da verdade presta um mau serviço á comunidade e fãs de BD. Um pouco mais de humildade, precisa-se...

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