20/09/2022

Primordial

Ficcionar a partir da realidade



Uma das formas de credibilizar a ficção, é baseá-la em factos reais para, a partir deles construir a ficção. Por mais incrível - ou ousada - que ela possa ser, aparecerá aos olhos dos leitores com uma aura de realidade, que os empurrará a embarcarem melhor na proposta dos autores.
É isso que acontece com Primordial, a mais recente proposta em português de Jeff Lemire, autor cuja importância no catálogo da G. Floy continua a crescer.

Datada originalmente de há um ano atrás, a obra ganha alguns contornos de dupla actualidade, devido à actual conjuntura mundial, uma vez que a sua acção decorre em plena Guerra Fria, com a corrida espacial no cerne do relato.

Como seu esteio, estão os envios para o espaço da cadela Laika, pelos soviéticos, em 1957, e de dois macacos, Abie e Baker, em 1959.

Se os livros de História afirmam que todos morreram quando os respectivos transportes espaciais explodiram ao sair da órbita terrestre, Lemire afirma que os três animais sobreviveram, levados por alguém ou alguma entidade, e que no momento presente do relato, em 1961, estão de regresso à Terra. Mais ainda, os acontecimentos espoletados por essas falsas mortes, levaram os governos da URSS e dos EUA a abafar o que se passara e a desistir da conquista do espaço.

Agora, atentos a esses regressos, estão dois seres humanos: Yelena, a soviética que cuidava de Laika, e Donald, o americano que foi encarregado de apagar todos os registos do lançamento dos dois símios.

Com laivos de narrativa de espionagem numa base de ficção-científica, Primordial faz um bom uso da realidade histórica e das especificidades da época em que decorre, para levantar algumas questões que, perpassando pelos regimes vigentes, a sua forma de actuação ou o racismo latente nos Estados Unidos, assenta fundamentalmente na pergunta se estamos sós ou não no universo.

Estas premissas - e o tratamento que Jeff Lemire lhes apõe - demonstram porque razão ele é um dos mais interessantes argumentistas da BD norte-americana. A sua gestão dos tempos narrativos, a combinação entre factos históricos, realidade de época e pura ficção ou mesmo a capacidade de levantar questões que ficam sem resposta, mas que desafiam e estimulam o leitor a conjecturar as suas próprias conclusões, transformam esta obra num livro que alguns poderão considerar desinteressante pela falta de uma explicação cabal, que seria sempre redutora e limitativa, do que provocou a sobrevivência e o regresso dos animais, mas será para muitos desafiante pelo final em aberto proposto.

Ao lado de Lemire, encontramos mais uma vez Andrea Sorrentino, ilustrador talentoso e com uma invulgar capacidade de gerir o ritmo de leitura pela multiplicidade de soluções que coloca na sua planificação, que vão da simples vinheta de página inteira para destacar momentos fulcrais, à fragmentação ad unfinitum das imagens, que obrigam a leitura atenta e minuciosa.


Primordial
Jeff Lemire (argumento)
Andrea Sorrentino (desenho)
G. Floy
Portugal, Agosto de 2022
180 x 275 mm, 176 p., cor, capa dura
25,00

(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online de 9 de Setembro de 2022 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela G. Floy; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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