Evocar a morte para celebrar a vida
‘Talvez, no final da história, baste recordar o milagre que foi ter-se simplesmente vivido.
In As muitas mortes de Laila Starr
Nomeado em diversas categorias para alguns dos mais relevantes prémios norte-americanos e francófonos, As muitas mortes de Laila Starr tem já a devida edição portuguesa, antecipadamente anunciada pela G. Floy e lançada na primeira edição do Maia BD.
Na sua origem, está uma premissa, aparente mas erroneamente divertida, mas muito desafiadora: o nascimento de um bebé que irá descobrir a imortalidade, provoca o despedimento da Morte. Sem a sua tarefa milenar, é enviada para a Terra que tantas vezes visitou em trabalho, para assumir uma vida mortal, em Bombaim, na Índia, onde o futuro inventor da imortalidade irá nascer.
O primeiro impulso de Laila, é naturalmente tirar a vida àquele bebé, para garantir o seu posto de trabalho, no entanto, na vida como na morte, os planos que fazemos nem sempre se podem concretizar.
Como escrevi acima, esta era uma edição devida, desde logo, pela qualidade intrínseca da obra, que consegue abordar de forma muito natural a morte, muito do que ela envolve, rituais e hábitos que ao longo de gerações foram inscritas no mais íntimos dos nossos seres de acordo com a nossa origem geográfica.
E essa abordagem é feita de uma forma tão envolvente quanto natural, mas ao mesmo tempo tão incómoda que é capaz de nos fazer sentir as nossas limitações como ser humano. Por isso, se o tempo que temos para viver está contado, o que fazemos com cada pedacinho dessa curta eternidade é da nossa responsabilidade e “...a única coisa que marca uma vida é as memórias deixadas para trás por esta.”
Um outro aspeto que tornava relevante a edição portuguesa desta obra, é o facto do texto incisivo, profundo e muito bem escrito do indiano Ram V, ter sido ilustrado pelo português Filipe Andrade. Desenhador com carreira feita nos Estados Unidos, na Marvel e fora dela, Andrade utiliza o seu traço personalizado, assumidamente deformado e muito fluído, para nos conduzir de forma irresistível por uma narrativa que evoca a morte para celebrar a vida.
Para além disso, em parceria com a também portuguesa Inês Amaro, Andrade aplica ao seu desenho tons quentes que, nas suas palavras nas páginas finais, onde o escritor, o desenhador e o legendador original falam sobre a forma como trabalharam nesta obra, reflectem “a paleta de cores dessa região do nosso planeta [a Índia], incrível e tão intensa, ao ponto de ser avassaladora”, como avassaladora é a experiência de leitura de As muitas mortes de Laila Starr.
As
muitas mortes de Laila Starr
Ram
V. (argumento)
Filipe Andrade (desenho)
G.
Floy
Portugal, Junho de 2023
180 x 275 mm, 144
p., cor, capa dura
22,00 €
(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias online a 30 de Junho de 2023 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela G. Floy; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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