Mergulho no inferno
Depois
de Caim e Abel, Jason Aaron e r. m. Guéra voltam à história
bíblica, para nos falar de “...quando os filhos de Deus se
uniram às filhas dos homens e delas tiveram filhos…”
A
espera foi longa - demasiada, até - mas valeu indubitavelmente a
pena, como tento explicar já a seguir.
Foi longa, para abordar já esta questão, porque o volume anterior - Os malditos - Livro Um: Antes do Dilúvio - data já de há mais de cinco anos (!). A necessidade de esperar que os autores terminassem o segundo tomo e negociações difíceis pelos direitos em português explicam o hiato entre estes dois primeiros livros - mas o leitor genérico (e os outros também…) não querem saber disto; querem ter os livros na mão para poderem ler.
E desfrutar. Desfrutar, mais uma vez, neste caso, de uma “história dura, violenta, bem tratada graficamente pelo traço agreste e sujo de r.m. Guéra, centrada no pior do ser humano - então como agora mais preocupado consigo do que com os outros - ou com estes quando se trata de os oprimir, submeter, chacinar…” como já escrevi a propósito do Livro Um.
Porque, prosseguindo a sua interpretação abusiva e profana (?) da Bíblia - palavra de Deus para tantos - Aaron e Guéra falam agora do encontro de anjos com virgens, tendo por base uma comunidade formada apenas no feminino, que entrega as suas virgens ao seu senhor após a primeira menstruação. Como honra suprema mas para originar aberrações indescritíveis…
Narrativa sobre fanatismo e cegueira religiosos (não são sinónimos?), surge aos olhos de quem já leu o primeiro volume, inevitavelmente sem surpresas, como mais um relato violento, chocante e incómodo - diabólico, imagino que dirão alguns.
Contra o estado de coisas estabelecido, duas jovenzinhas tentam escapar - da comunidade, do seu mundo isolado e fechado sobre si mesmo, do fanatismo e do seu inevitável destino. Nesta saga de Charlie e Jael (os seus nomes) alguns verão apenas - e tão rico é este ‘apenas’ - mais uma luta pelo direito à autodeterminação e pela escolha da sua forma de vida, mas só beneficiarão os que - até pelos seus mais alargados conhecimentos bíblicos - consigam ver em Os Malditos - Livro Dois: As noivas virgens, bem mais do que isso.
Porque, se ambas as interpretações, a da visão distorcida e provocadora da palavra de Deus e a luta no feminino pelo direito às suas próprias escolhas, são válidas, a primeira se revela mais rica e capaz de ‘mexer com as tripas’ (desculpem a expressão), mas a verdade é que numa ou noutra somos obrigados a atravessar - chocados mas numa autêntica atracção pelo abismo - mais umas quantas páginas de violência extrema, física por vezes, geralmente ao nível dos sentimentos e da razão (irracional), expressa tanto na submissão chocante quanto na prepotência inominável que seres humanos assumem para darem resposta aos desejos e às vontades - enunciadas ou subentendidas… - daquele ou daqueles a quem chamam deus - ou até diabo…
Nota final
É inevitável referi-lo, não como crítica a quem edita mas como expressão inequívoca de uma realidade incontornável - se bem que alguns a tentem ignorar olhando para o lado.
Entre estes dois volumes passaram-se cinco anos, um pouco mais. E também uma pandemia e uma guerra na Europa (ainda em curso), aspectos que nem conhecíamos ou julgávamos impossíveis. O seus reflexos são evidentes e este segundo tomo custa mais 9€ que o primeiro - mais 65%…
Sinal dos tempos (e da passagem deste) que exemplificam como se tornou (tão mais) difícil editar… e ler.
Os
Malditos
Livro
Dois: As noivas virgens
Jason
Aaron (argumento)
r.m.
Guéra (desenho)
G.
Floy
Portugal,
Junho de 2023
190
x 280 mm, 152 p., cor, capa dura
23,00
€
(imagens disponibilizadas pela G. Floy; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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