Se há poucas semanas o anúncio da morte do Homem-Aranha mereceu grandes atenções mediáticas, um pouco por todo o mundo, a sua substituição por um negro de origem hispânica não lhe ficou atrás.
Antes de avançar mais, convém esclarecer que esta mudança, no entanto, não diz respeito ao super-herói original, mas sim ao da versão Ultimate, que transpunha a sua origem para os nossos dias. Nela, depois da morte de Peter Parker, desde a passada quarta-feira e do número #4 da revista Ultimate Fallout, o protagonismo está entregue a Miles Morales, descendente de africanos e de latinos.
A sua origem será contada já em Setembro, em Ultimate Comics Spider-Man #1, onde, segundo o argumentista Brian Bendis, surgirá “como um Homem-Aranha do século XXI, um reflexo da cultura e diversidade norte-americanas”. A desenhadora Sara Pichelli foi mais longe, afirmando que “mais cedo ou mais tarde um herói negro ou gay (ou ambos) vai ser algo perfeitamente normal”, mas a Marvel apressou-se a negar aquela opção sexual para Morales, acrescentando que esta ideia estava em cima da mesa desde que Obama foi eleito para a Casa Branca.
Sendo verdade que esta opção permite uma nova e diferente abordagem em termos narrativos – desde logo mostrando o novo Homem-Aranha como vítima de racismo – possivelmente por detrás desta mudança tão radical estarão apenas objectivos de marketing. Que resultaram quando o Homem-Aranha morreu às mãos do Duende Verde, com as vendas da revista a triplicarem, fruto também da mediatização do facto, tal como acontece agora.
Para já, resta aguardar pela reacção dos fãs, sendo certo que Miles Morales poderá conquistar novos leitores junto das comunidades negra e hispânica, uma vez que os quadradinhos norte-americanos (e não só) não têm sido pródigos na entrega de papéis de primeira grandeza a representantes de minorias.
Na verdade, presentes desde os clássicos da BD até ao presente, negros, latinos e outros raramente ultrapassaram papéis secundários, como ajudantes ou contraponto cómico do herói branco, bem parecido e com capacidade de decisão, como no caso de Mandrake, o mágico, que tinha como auxiliar, Lotário, o hercúleo e musculado negro, que até era monarca de uma nação africana!
No campo dos super-heróis, durante anos o companheiro de aventuras do Capitão América (possivelmente o mais americano de todos os super-heróis) foi outro negro, conhecido como Falcão. Blade, o caçador de vampiros, Pantera Negra e Luke Cage também são negros, sendo que a Cat Woman, o Lanterna Verde, Nick Fury, a X-Woman Tempestade e mesmo o Capitão América, o Super-Homem e a Super-Girl, estes num universo paralelo, já tiveram versões negras.
O western é um género em que os exemplos abundam: dois cowboys galantes, Cisco Kid e Jerry Spring, geralmente faziam-se acom-panhar por mexi-canos de nome Pancho, grande perímetro abdominal e o jeito para o disparate, tal como o seu compatriota Chico, ajudante regular de Zagor.
Numa outra criação Bonelli, Tex, o mais antigo western em publicação, em muitas histórias o ranger não dispensa a sombra de Jack Tigre, pele-vermelha como Tonto, o amigo do Lone Ranger, e Comanche, a patroa de Red Dust, menos protagonista do que este apesar da série ter o seu nome.
A um outro nível, o retrato pater-nalista que Hergé traçou dos negros congoleses em “Tintin no Congo”, em 1930, valeu-lhe diversas acusações de racismo e, aos detentores dos direitos das suas obras, o processo que actualmente corre nos tribunais belgas.
Essa imagem seria contrariada quase três décadas mais tarde, em 1958, quando o repórter e o capitão Haddock combatem um grupo responsável pelo tráfico de negros, em “Carvão no Porão”.
Apesar disso, ao longo dos anos, nos sucessivos melhora-mentos que Hergé introduziu nos álbuns de Tintin, ao nível do desenho ou da cor, nalguns casos pontuais negros, índios ou árabes, foram substituídos por brancos, para atenuar o impacto das imagens originais, como é possível verificar comparando as duas versões disponíveis no mercado português de “Tintin na América”, a normal e o fac-simile da edição de 1945, recentemente lançado pela ASA.
Já no que diz respeito às tiras diárias de imprensa, talvez porque a exposição ao público é bem maior, torna-se difícil encontrar personagens provenientes de minorias étnicas. Franklin um dos amigos de Charlie Brown, em Peanuts, e Hector, em Zits, são dois dos exemplos mais marcantes, embora em ambos os casos, a sua origem não seja especialmente significativa na forma como reagem às diversas situações que enfrentam, prova de que esta é uma área sensível com a qual (também) a banda desenhada não deseja envolver-se demasiado.
(Texto publicado originalmente no Jornal de Notícias de 9 de Agosto de 2011)
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