Uma boa escolha
Quando soube que Os Túnicas Azuis iam ser a colecção
seguinte da parceria ASA/Público, questionei (intimamente) a decisão. Agora, uma dezena de volumes depois, venho dar a mão à
palmatória e reconhecer que esta foi uma boa escolha. Pelo menos no que diz
respeito ao interesse/qualidade da série.
Mas já lá vou.
À partida, esta colecção de Os Túnicas Azuis tinha contra si o desconhecimento da série pel(a
maioria d)os leitores portugueses.
A favor - sei agora - a sua qualidade intrínseca e a quebra que ela
representava em relação às colecções recentes do Público que há já alguns anos não contemplavam a BD de humor,
género que se pode afirmar como ‘popular por excelência’.
Comprei o primeiro volume por curiosidade, o segundo como confirmação.
Atrás dele o terceiro e neste momento já tenho na estante o sargento
Cheterfield e (meio) cabo Blutch revelados no conjunto das lombadas dos 10
tomos iniciais.
Escrevi na altura que não tinha grande memória da série e
penalizo-me por isso porque, para além de divertida, numa primeira impressão, Os Túnicas Azuis, num segundo nível de
leitura, apresentam também uma crítica feroz ao militarismo e aos seus defensores,
com base no contexto histórico da Guerra da Secessão norte-americana (com os
desenvolvimentos bélicos que acarretou) que opôs confederados e nortistas e nas
consequências dos violentos confrontos nela travados.
Aliás, mais do que o choque constante entre o Chesterfield,
o subordinado convicto, e Blutch, cobarde e egoísta por natureza, mais do que o
laxismo das altas patentes e do aproveitamento que fazem dos pobres soldados
como sacrifício e carne para canhão dos pobres soldados, o que primeiro brilha
no texto de Cauvin, é a forma satírica como ele narra as consequências da
guerra. Mortos, feridos, estropiados, cidades arrasadas, casas destruídas,
campos devastados, pilhagens… tudo é exposto cruamente, embora sob a capa
diáfana de um humor que diverte mas incomoda.
Neste contexto, O Ouro
do Quebeque surge quase como oásis de puro divertimento, com a busca de uma
fortuna em ouro a levar os protagonistas (e os seus opositores, iguais a eles
na condição de carne para canhão - tão próximos mas tão distantes) até ao
Canadá, onde encontrarão caçadores de peles cujo retrato traçado por Cauvin e
Lambil demole completamente a imagem agradável, romântica e até heróica que, o
cinema e a BD (quase) sempre transmitiram.
Já em Black Face, ao vasto lastro da série, é acrescentado
um outro tópico sensível e incontornavelmente polémico: a escravidão (leia-se
racismo), supostamente na origem da guerra civil em que esta série decorre.
Cauvin, mordaz, implacável, mas sempre com um sorriso nos lábios, que tenta – e
geralmente consegue - passar para nós, revela como afinal, as posições entre
nortistas e sulistas não eram assim tão díspares neste capítulo e como dezenas,
centenas anos de preconceitos demoram tanto (ou mais?) a apagar.
Álbum de desfecho incómodo, que obriga a repensar a
tolerância e os valores que dizemos defender, Black Face é mais um dos títulos fortes desta colecção.
Volto ao início. Se reitero que “esta [série] foi uma boa escolha”
e a ASA fez uma boa opção editorial - 'pescada' no riquíssimo mas pouco explorado, em Portugal, catálogo da Spirou belga - espero que ela tenha correspondência nas
(necessárias) vendas, porque é mais um exemplo (útil) da diversidade editorial
que tem marcado a edição de BD em Portugal neste último par de anos e a
possibilidade de recuperar alguns dos leitores que, apesar de tudo, não se
revêem nas outras (muitas) propostas que têm sido feitas.
Os Túnicas Azuis
Volume #9 - Black Face
Volume #10 - O ouro do Quebeque
Raoul Cauvin (argumento)
Willy Lambil (desenho)
ASA/Público
Portugal, 4 e 11 de Janeiro de 2017
215 x 297 mm, 48 p., cor, capa dura
6,95 €
(pranchas da edição francesa de Blakface recolhidas no site oficial da série;
clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Esta foi a BD da minha infancia. Guardei com estima os 5 livros que me ofereceram nos anos 80.
ResponderEliminarNos ultimos anos expandi a coleccao com a edicao em ingles da cinebook que ja conta com v'arias traducoes!
Continuacao de bom trabalho!
Eu estou a descobri-la agora e já fui desenterrar algumas das edições da Edinter por aí...
EliminarBoas leituras!
Olá Pedro,
ResponderEliminarParece-me muito certeiro o reconhecimento que fazes a este lançamento. Na primeira metade do século XIX, o historiador e político francês Alexis Tocqueville andou pela América a estudar a originalidade da democracia dos norte-americanos. Salvaguardado o exagero que alguém encontre na comparação, é muito interessante ver reproduzidos nos álbuns dos "Túnicas" muito desse pensamento, nomeadamente no justamente destacado "Black Face", que é tremendo na sua crueza, isto se pensarmos que se dirige, em primeira ordem, a um público mais juvenil.
Ainda tenho comigo os 10 álbuns da "Edinter" publicados na década de 80 e lembro-me de os comparar também a outra obra enorme da literatura mundial, o "D. Quixote", curiosamente também editado em BD pela mesma editora uns anos antes. O idealismo romântico e ingénuo do "Quixote" e o contraponto materialista do "Sancho Pança" foram novamente reaproveitados no "Chesterfield" e no "Blutch" sem qualquer dissimulação por parte dos seus autores, desde logo até na escolha óbvia de situar as personagens num contexto de "Cavalaria".
Obrigado pelo artigo e pelo blogue.
Aquele Abraço
José Sá