Jonas
Crow é o melhor no seu ofício. É cangalheiro e o seu brio em
tornar apresentável quem foi morto com uns quantos tiros, só tem
comparação com a desrespeitosa falta de tacto com que trata quem
lhe paga para isso.
Por
isso, por ser um cangalheiro com um invulgar evangelho de criação
pessoal e por ter um abutre como animal de estimação, é normal que
“Undertaker”, o western que
protagoniza, descaia recorrentemente para um humor negro que, em
lugar de atenuar, reforça o seu lado violento e amoral.
No novo díptico, O monstro de Sutter Camp/A sombra de Hipócrates, que a Ala dos Livros [conforme pedido] completou este mês, Jonas tem a companhia da recatada preceptora inglesa Rose Prairie e da prática e venal chinesa Lin, como herança de um serviço funerário de um cadáver repleto de ouro, que não correu muito bem.
Agora, pressionado por elas, quando está habituado à solidão e a gerir tudo a seu bel-prazer, Jonas ignora que os seus problemas estão apenas a começar quando o passado vem ao seu encontro através de antigos companheiros de armas do exército durante a Guerra da Secessão, um deles Jeronimus Quint, um cirurgião brilhante que gostava de fazer experiências nos feridos que devia tratar. A procura do filho de um e o desejo de se vingar do outro, vão levar Jonas numa longa perseguição, em que ele e Rose terão de testar os próprios limites e questionar a sua relação.
Com um desenho grandioso, muito dinâmico, de um realismo extremo e uma planificação variada que sequencia, ritma e pontua a narrativa, “Undertaker” apresenta-se justamente como herdeiro dos grandes westerns dos quadradinhos e a sua leitura trará certamente à lembrança de muitos “Bluberry”, de Charlier e Giraud.
Mas, para lá do lado gráfico, esta obra brilha também pela escrita inteligente que a suporta, cínica, retorcida e maquiavélica até à exaustão, que permite a Xavier Dorison expor uma dupla camada de violência, aquela que surge à luz do dia ou no negrume da noite, nos tiroteios, nas experiências do cirurgião e nos confrontos físicos e verbais frequentes, e a outra, bem mais incómoda, que simplesmente sentimos sem ver, e que passa pela chantagem psicológica levada ao extremo em que Quint se revela magistral.
Undertaker
#3: O Monstro de Sutter Camp
Undertaker
#4: A sombra de Hipócrates
Xavier
Dorison e Ralph Meyer (argumento)
Ralph
Meyer (desenho)
Ralph
Meyer e Caroline Delabie (cor)
Ala
dos Livros
Portugal,
Julho/Outubro
de
2022
235
x 310 mm, 64/56
p., cor, capa dura
17,90
€
(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online de 21 de Outubro de 2022 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação e também nesta para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Uma BD que nos empolga. A não perder numa livraria perto de si
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