21/11/2023

Blake e Mortimer: A arte da guerra

Abrir hostilidades





Para aqueles que têm lamentado o mimetismo imposto aos sucessores de Edgar P. Jacobs, este livro assinado por Jean-Luc Fromental, José-Louis Bouquet e Floc'h poderá representar uma lufada de ar fresco mas, cuidado com o que desejam…

A Arte da Guerra é o segundo volume de Um outro olhar sobre Blake e Mortimer, chancela estreada com O último faraó (2020), um relato de tom ecologista, soberbamente desenhado por François Schuiten.

Na verdade, enquanto as sucessivas retomas canónicas têm clonado o pior do autor original, ou seja, os excessos de texto descritivo e o modo como repisam o que as imagens mostram, perdendo ao mesmo tempo o tom de antecipação científica e de actualidade que as histórias de Jacobs ostentavam, este apresenta-se como uma história de espionagem pura e dura, praticamente despojada de qualquer referência científica, ambientada em plena Guerra Fria, em que todos seguem todos, todos desconfiam de todos e em que atrás de cada árvore ou ao virar de cada esquina há um espião à espreita.

Situado após O Mistério da Grande Pirâmide e a II Guerra Mundial, o argumento assinado por Fromental e Boucquet, cujo estreia em Blake e Mortimer com Oito horas em Berlim já tinha sido bem acolhida, leva os protagonistas até Nova Iorque, onde o capitão Blake deverá fazer um discurso em defesa da paz na Assembleia Geral das Nações Unidas, apelando à compreensão e união entre os povos para evitar conflitos como os narrados em O segredo do Espadão ou o que opôs os Aliados aos apoiantes do III Reich, ainda frescos na memória de todos.

Curiosamente, uma história que de certa forma tem a paz como tema de base, assenta num dos mais famosos tratados bélicos, A arte da guerra de Sun Tzu, que até empresta o título ao presente volume, em que é profusamente citado, juntando-se às outras referências culturais propostas pelos autores, com saliência para a pintura.

Graficamente, as diferenças em relação ao original e às sucessivas retomas são também evidentes, com Floc'h, um dos expoentes da linha clara, conhecido pelas suas bandas desenhadas de recorte britânico, a apresentar um traço extremamente depurado, servido por cores vivas e planas, completamente despido do culto dos pormenores que era a marca de Jacobs, e optando por uma planificação ampla e muito livre, que frequentemente se limita a três ou quatro vinhetas de grande dimensão por página, o que também contribui para que o álbum tenha o dobro das páginas habituais. Com o desenho assim solto e mais arejado, inovando respeitosamente em relação a Jacobs, a narrativa ganha em dinamismo e em ritmo, sem prejuízo da sua consistência, não sendo estranho a este último aspecto o recurso frequente a grandes espaços abertos como cenários de diferentes momentos. Acreditando que muitos vão torcer o nariz, a verdade é que este desenho, pontuado pela expressividade dos rostos, funciona em termos narrativos, embora lhe falte, possivelmente, o uso de sombras em determinadas cenas, para transmitir um clima mais tenso ou acentuar o suspense da intriga.

Inevitavelmente Olrik faz parte da galeria de participantes, em lugar de destaque, sendo a mais evidente das diversas referências que Fromental e Bouquet fazem aos fundamentos da própria banda desenhada original de Jacobs, algumas delas francamente bem-humoradas e mordazes, como quando o vilão afirma “Mas se já não há Olrik, para que servem Blake e Mortimer?”

Possivelmente, A Arte da Guerra é o álbum mais polémico de todos os que já foram editados retomando os heróis de Jacobs. Os puristas da série dificilmente o aceitarão, mas abordá-lo de espírito aberto será o primeiro passo para poder fruir uma leitura a um tempo reverente - tudo o que Jacobs prezava está lá - mas também renovada - porque o afastamento do modelo original, sem nunca o renegar, é por demais evidente - de um dos monumentos da banda desenhada franco-belga.

Em resumo, este é um bom exemplo do que deviam ser todas as retomas dos heróis de culto da BD: respeitar a sua essência e o seu espírito, sem se deixar agrilhoar pela sua forma e o seu estilo. E, possivelmente, é a melhor forma de manter Blake e Mortimer - e a herança de Jacobs - vivos quase 80 anos depois da sua criação.


Blake e Mortimer: A Arte da Guerra
Jean-Luc Fromental e José-Louis Bouquet (argumento)
Floc'h (desenho)
ASA
Portugal, 21 de Novembro de 2023
238 x 309 mm, 128 p., cor, capa dura
20,90

(versão completamente revista e muito aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias online de 20 de Novembro de 2023; imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as desfrutar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

5 comentários:

  1. Ou este livro foi um enorme sucesso, ou a edição foi minúscula, porque hoje, dia 19 de dezembro, recebi através da wook a informação de que o livro já não está disponível no fornecedor, após encomenda que diz a 13 de dezembro. Parece-me que alguém não quer vender o livro, pois parece-me imposs´vel que esteja esgotado.
    Mistérios da edição em Portugal.

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    1. Era bom, sem dúvida, mas também me parece difícil que tenha esgotado tão depressa...
      Boas leituras

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    2. Contactei Luís Saraiva, editor da ASA para a área da banda desenhada, que pediu para transmitir o seguinte esclarecimento:

      "Enquanto editor do livro não posso ficar mais contente pelo seu interesse, porém muito chateado por não poder ajudá-lo como deveria.
      Acredite que tiragem do livro foi grande, e ainda maior se tivermos em linha de conta o tipo de livro e suas características.
      Sugiro que procure num outro “Livreiro” (Ex.Fnac ou mesmo nas Livrarias LeYa), pois sei que as quantidades encomendadas nunca são as mesmas de cadeia para cadeia."

      Boas leituras!

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  2. Ola! Nunca tinha vindo ao blog mas queria sabe se alguem partilhava das minhas duvidas e ainda bem q o encontrei.
    Nao fiquei de todo fa do traço, cores, mas especialmente da dimensao/escala que conferem poucas vinhetas por pagina. Em minja opinião, o traço nao tem detalhe nem qualidade suficiente para ficar em tao larga escala. Alem de q torna o livro infantilizado, dificil de manusear e com pouco conteudo por pagina.
    Alguma razao para esta escolha grafica? É so portuguesa ou foram todas assim?
    Cumprimentos

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    1. Bem-vindo a As Leituras do Pedro!
      A opção gráfica, é dos autores, mas não é o primeiro a dizer que preferia um livro menor.
      Em termos de dimensão, a edição portuguesa é igual à original francófona e penso que dificilmente poderia ser de outra forma.
      Boas leituras!

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