Abrir hostilidades
Para aqueles que têm lamentado o mimetismo imposto aos sucessores de Edgar P. Jacobs, este livro assinado por Jean-Luc Fromental, José-Louis Bouquet e Floc'h poderá representar uma lufada de ar fresco mas, cuidado com o que desejam…
A Arte da Guerra é o segundo volume de Um outro olhar sobre Blake e Mortimer, chancela estreada com O último faraó (2020), um relato de tom ecologista, soberbamente desenhado por François Schuiten.
Na verdade, enquanto as sucessivas retomas canónicas têm clonado o pior do autor original, ou seja, os excessos de texto descritivo e o modo como repisam o que as imagens mostram, perdendo ao mesmo tempo o tom de antecipação científica e de actualidade que as histórias de Jacobs ostentavam, este apresenta-se como uma história de espionagem pura e dura, praticamente despojada de qualquer referência científica, ambientada em plena Guerra Fria, em que todos seguem todos, todos desconfiam de todos e em que atrás de cada árvore ou ao virar de cada esquina há um espião à espreita.
Situado após O Mistério da Grande Pirâmide e a II Guerra Mundial, o argumento assinado por Fromental e Boucquet, cujo estreia em Blake e Mortimer com Oito horas em Berlim já tinha sido bem acolhida, leva os protagonistas até Nova Iorque, onde o capitão Blake deverá fazer um discurso em defesa da paz na Assembleia Geral das Nações Unidas, apelando à compreensão e união entre os povos para evitar conflitos como os narrados em O segredo do Espadão ou o que opôs os Aliados aos apoiantes do III Reich, ainda frescos na memória de todos.
Curiosamente, uma história que de certa forma tem a paz como tema de base, assenta num dos mais famosos tratados bélicos, A arte da guerra de Sun Tzu, que até empresta o título ao presente volume, em que é profusamente citado, juntando-se às outras referências culturais propostas pelos autores, com saliência para a pintura.
Graficamente, as diferenças em relação ao original e às sucessivas retomas são também evidentes, com Floc'h, um dos expoentes da linha clara, conhecido pelas suas bandas desenhadas de recorte britânico, a apresentar um traço extremamente depurado, servido por cores vivas e planas, completamente despido do culto dos pormenores que era a marca de Jacobs, e optando por uma planificação ampla e muito livre, que frequentemente se limita a três ou quatro vinhetas de grande dimensão por página, o que também contribui para que o álbum tenha o dobro das páginas habituais. Com o desenho assim solto e mais arejado, inovando respeitosamente em relação a Jacobs, a narrativa ganha em dinamismo e em ritmo, sem prejuízo da sua consistência, não sendo estranho a este último aspecto o recurso frequente a grandes espaços abertos como cenários de diferentes momentos. Acreditando que muitos vão torcer o nariz, a verdade é que este desenho, pontuado pela expressividade dos rostos, funciona em termos narrativos, embora lhe falte, possivelmente, o uso de sombras em determinadas cenas, para transmitir um clima mais tenso ou acentuar o suspense da intriga.
Inevitavelmente Olrik faz parte da galeria de participantes, em lugar de destaque, sendo a mais evidente das diversas referências que Fromental e Bouquet fazem aos fundamentos da própria banda desenhada original de Jacobs, algumas delas francamente bem-humoradas e mordazes, como quando o vilão afirma “Mas se já não há Olrik, para que servem Blake e Mortimer?”
Possivelmente, A Arte da Guerra é o álbum mais polémico de todos os que já foram editados retomando os heróis de Jacobs. Os puristas da série dificilmente o aceitarão, mas abordá-lo de espírito aberto será o primeiro passo para poder fruir uma leitura a um tempo reverente - tudo o que Jacobs prezava está lá - mas também renovada - porque o afastamento do modelo original, sem nunca o renegar, é por demais evidente - de um dos monumentos da banda desenhada franco-belga.
Em resumo, este é um bom exemplo do que deviam ser todas as retomas dos heróis de culto da BD: respeitar a sua essência e o seu espírito, sem se deixar agrilhoar pela sua forma e o seu estilo. E, possivelmente, é a melhor forma de manter Blake e Mortimer - e a herança de Jacobs - vivos quase 80 anos depois da sua criação.
Blake
e Mortimer: A Arte da Guerra
Jean-Luc
Fromental e José-Louis Bouquet (argumento)
Floc'h
(desenho)
ASA
Portugal,
21 de Novembro de 2023
238
x 309 mm, 128 p., cor, capa dura
20,90
€
(versão completamente revista e muito aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias online de 20 de Novembro de 2023; imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as desfrutar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Ou este livro foi um enorme sucesso, ou a edição foi minúscula, porque hoje, dia 19 de dezembro, recebi através da wook a informação de que o livro já não está disponível no fornecedor, após encomenda que diz a 13 de dezembro. Parece-me que alguém não quer vender o livro, pois parece-me imposs´vel que esteja esgotado.
ResponderEliminarMistérios da edição em Portugal.
Era bom, sem dúvida, mas também me parece difícil que tenha esgotado tão depressa...
EliminarBoas leituras
Contactei Luís Saraiva, editor da ASA para a área da banda desenhada, que pediu para transmitir o seguinte esclarecimento:
Eliminar"Enquanto editor do livro não posso ficar mais contente pelo seu interesse, porém muito chateado por não poder ajudá-lo como deveria.
Acredite que tiragem do livro foi grande, e ainda maior se tivermos em linha de conta o tipo de livro e suas características.
Sugiro que procure num outro “Livreiro” (Ex.Fnac ou mesmo nas Livrarias LeYa), pois sei que as quantidades encomendadas nunca são as mesmas de cadeia para cadeia."
Boas leituras!
Ola! Nunca tinha vindo ao blog mas queria sabe se alguem partilhava das minhas duvidas e ainda bem q o encontrei.
ResponderEliminarNao fiquei de todo fa do traço, cores, mas especialmente da dimensao/escala que conferem poucas vinhetas por pagina. Em minja opinião, o traço nao tem detalhe nem qualidade suficiente para ficar em tao larga escala. Alem de q torna o livro infantilizado, dificil de manusear e com pouco conteudo por pagina.
Alguma razao para esta escolha grafica? É so portuguesa ou foram todas assim?
Cumprimentos
Bem-vindo a As Leituras do Pedro!
EliminarA opção gráfica, é dos autores, mas não é o primeiro a dizer que preferia um livro menor.
Em termos de dimensão, a edição portuguesa é igual à original francófona e penso que dificilmente poderia ser de outra forma.
Boas leituras!