Carta muda de uma escrava analfabeta
Apesar de pequeno, na prática à dimensão da população de um país sem hábitos de leitura, o mercado nacional de banda desenhada apresenta-se mais diversificado do que seria expectável. Ao leitor interessado, basta pesquisar um pouco para ser surpreendido.
Um dos exemplos é a colecção Romance Gráfico Brasileiro, da editora Polvo que, com mais de três dezenas de volumes já publicados, tem dado a conhecer alguma da enorme variedade, gráfica e temática, da produção de "histórias em quadrinhos" proveniente do outro lado do Atlântico.
Mukanda Tiodora, de Marcelo D'Salete, é o tomo mais recente, cujo título pode ser traduzido como "Carta de Tiodora". Nesta ficção em torno de acontecimentos reais, bem documentados no generoso dossier que encerra o livro, D'Salete leva o leitor até meados do século XIX, a um país em que brancos e negros e, entre estes, escravos ou libertos, conviviam, raramente de forma saudável ou pacífica, num país em que as zonas urbanas cresciam e as terras eram exploradas em busca da riqueza proporcionada pelo café.
A Tiodora do título e uma das protagonistas deste romance desenhado, era escrava de um cónego, e sonhava com a sua alforria. Analfabeta e iletrada, solicitava a quem sabia que escrevesse cartas ao marido e ao filho de quem tinha perdido o rasto, pedindo auxílio para a sua libertação. A narrativa de D'Salete acompanha o percurso de uma dessas cartas, levada por um adolescente solícito, narrando os perigos da viagem, os contrastes entre as realidades urbanas e campestres e descobre aos poucos um drama de contornos inimagináveis ao início, que deixa um sabor amargo quando a leitura termina.
Entre o retrato social histórico, a tragédia que viveram tantos negros, escravos ou não, num país recém-saído da colonização mais ainda dominado por brancos, Mukanda Tiodora é traçado num branco e negro expressivo e muito legível, mesmo que nem sempre atraente para quem se habituou à cor de outros relatos desenhados, e vive da contínua alteração do ponto de vista, com o leitor a ter a sensação que as cenas se desenrolam alternadamente entre o olhar do narrador, das personagens e de si próprio, o que reforça o impacto da quase total ausência de texto escrito, que serve apenas para situar e contextualizar os diferentes momentos.
Mukanda
Tiodora
Marcelo
D'Salete
Polvo
Portugal,
Outubro de 2024
195
x 264 mm, 224
p., pb,
capa mole com badanas
16,90
€
(versão revista do texto publicado na página online do Jornal de Notícias a 28 de Fevereiro de 2025 e na versão em papel no dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Polvo; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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