O outro lado da História
Durante
um determinado período, no seu início, em busca de afirmação e de
importância, a banda desenhada habituou-nos a invocar os feitos dos
reis, dos imperadores, dos ditadores, mas há todo um outro lado da
História por recontar, quase sempre com cidadãos anónimos, como
motores ou protagonistas de momentos que também marcaram a evolução
dos povos.
Bobigny
1972,
obra premiada no Festival de Angoulême deste ano, que a ASA acabou
de disponibilizar
em português, evoca algo assim, um célebre processo que... poucos
leitores destas linhas possivelmente serão capazes de identificar e
contextualizar.
Na sua origem, esteve Maria-Claire Chevalier, uma jovem que fez um aborto clandestino na sequência de uma violação, tendo sido denunciada pelo próprio violador. Ela própria, a sua mãe e a parteira foram assim parar ao banco dos réus, num processo orquestrado por homens num mundo de homens, que no entanto contribuiria decisivamente para a mudança da legislação francesa sobre o aborto, poucos anos volvidos.
Ponto fundamental neste relatar da História, maioritariamente baseado nos acontecimentos reais, mas com a necessária dose ficcional e a inevitável subjectividade, assumida pelas autoras, Marie Vardiaux-Vaïente e Carole Maurel, para tornar a leitura mais desafiante e sedutora, é a forma fluída como todo o relato avança, saltitando entre a sala de audiências e os acontecimentos anteriores que levaram lá as acusadas. Desta forma, factos que até podiam ser entediantes, ganham nova contextualização e revestem as protagonistas de consistência e profundidade, a humanizarem-se na verdade, criando proximidade com os leitores.
Num verdadeiro romance, desenhado com um assinalável dinamismo e num estilo retro que aproxima o leitor da época, e por onde passam figuras populares ou marcantes da França dos anos 1970, como Simone de Beauvoir, a actriz Delphine Seyrig ou a então ministra Simone Veil, há ainda a particularidade de muitos dos leitores desconhecerem o desfecho, ao contrário do que acontece com outros relatos de tom histórico que a banda desenhada tem disponibilizado.
Bobigny
1972
Marie
Bardiaux-Vaïente (argumento)
Carole
Maurel
(desenho)
ASA
Portugal,
Fevereiro de 2025
207
x 276 mm, 192
p., cor,
capa dura
26,90
€
(versão revista do texto publicado na edição online do Jornal de Notícias a 21 de Março de 2025 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nesta ligação para ver mais ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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