16/02/2010

Os Passageiros do Vento #6 –A Menina de Bois-Caïman

Livros 1 e 2
François Bourgeon (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Outubro de 2009 + Janeiro de 2010)
238 x 320 mm, cor, 88 + 72 p., cor

Os Passageiros do Vento foram uma das mais marcantes sagas em banda desenhada dos anos 1980, que ao longo de cinco tomos, traçaram um notável fresco da vida na Europa e nas colónias na segunda metade do século XVIII, mais do que narrar as aventuras (e desventuras) de Isa, uma jovem mulher emancipada e libertária, muito à frente do seu tempo. Saga essa que terminava de forma completamente aberta, deixando Isa nas Caraíbas.
Um quarto de século depois, François Bourgeon, o seu artesão, decidiu voltar às personagens com que nos fez felizes. E se esta sequela surge dividida em dois tomos, por motivos mediáticos e comerciais – não por acaso, ambos as edições indicam o numeral #6 e em algumas edições, como na espanhola, a numeração das páginas do segundo livro começa onde terminou o primeiro – ela constitui um todo indivisível. Mesmo que uma outra Isa, bisneta da primeira, protagonize as primeiras 50 pranchas, desvendando as outras noventa o destino da sua bisavó, no Luisiana, nas margens do Mississipi, território que haveria de ser norte-americano e de sonho, mas que então era um inferno autêntico, assombrado pela Guerra da Secessão e pelas lutas pela emancipação dos negros.
Porque mais uma vez, Bourgeon, cronista de eleição, aproveita o pretexto para nos pintar de forma crua e realista, com a mestria que lhe é reconhecida, o quotidiano desses tempos conturbados.
Porque se Isa é agora quase centenária e se por Bourgeon passaram vinte e cinco anos, ambos continuam iguais a si próprios. Ela, rebelde, decidida, amante da vida e da liberdade. E contraponto de uma sociedade hesitante, presa a leis obsoletas, derrotada pelos ideais que tentou agrilhoar. Ele, um narrador consistente e eficaz e um desenhador rigoroso na reconstituição histórica, hábil na composição das pranchas e inconfundível na representação de belas mulheres, pese embora o facto de o seu traço estar menos espontâneo, mais preso ao registo fotográfico que lhe serve de base.
Voltada a última página, cerrados os livros, resta a pergunta: precisávamos de saber o que tinha acontecido a Isa depois da última vez que a encontráramos, tantos anos atrás? Francamente, não. Mas ainda bem que Bourgeon nos quis contar o seu destino!


A reter
- Já ficaram explanadas atrás as principais qualidades deste diptíco, mas para que não restem dúvidas, este relato é/será sem dúvida um dos grandes lançamentos editoriais aos quadradinhos em 2010.

Menos conseguido
- São aspectos menores e formais, a que a editora portuguesa é alheia, mas a verdade é que o facto da tradução das frases em crioulo vir agrupada ns páginas finais de cada volume rouba ritmo e atrapalha a leitura bem mais do que se viessem em rodapé nas respectivas pranchas…

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 13 de Fevereiro de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

15/02/2010

Liberty

Warnauts & Raives (argumento e desenho)
Casterman (França, Janeiro de 2010)
240 x 320 mm, 64 p., cor, cartonado


Resumo

Zaire, 1974. Nas vésperas do combate de boxe “do século” entre Mouhamed Ali e George Foreman, Acabada de completar 16 anos, Tshiland, ainda uma jovenzinha, já uma bela mulher, deixa-se seduzir pelo manager do grupo de James Brown, de passagem pelo evento, e acaba grávida.
Para evitar que o escândalo se abata sobre o seu pai, chefe de segurança de um dos principais hotéis locais, tem que sair do seu país, o que consegue com o auxílio de Edouard, um diplomata francês, e de Mike, um dos músicos de Brown - ambos sensíveis aos encantos da jovem - que lhe conseguem um cartão de residência para os Estados Unidos, onde acabará por dar à luz uma menina, a quem põe o nome de Liberty.

Desenvolvimento
E é Liberty e a sua mãe – ou Tshiland e a sua filha? – ou, melhor ainda, Tshiland e Liberty, mulheres de corpo inteiro e de personalidade forte, vamos acompanhar, vivendo por seu intermédio alguns dos grandes momentos da luta dos negros pelo reconhecimento dos seus direitos nos EUA, dos Black Panters até à eleição de Barack Obama, passando pela guerra do Vietname ou pelo atentado contra as Torres Gémeas, o que faz deste relato um curioso álbum que, de certa forma, se pode apodar de relato histórico.
Porque é a História – parte substancial dela, vista pelos olhar (diferente…) dos negros – que serve de fundo a um relato, onde o desejo de emancipação e de afirmação e a busca de um rumo, primeiro por parte de Tshiland, depois por Liberty, prendem e cativam o leitor. Até porque o tom escolhido, está longe da lamúria ou do panfletário, optando antes por realçar a força (interior) e a vontade (própria) de cada uma, apesar de alguns (muitos) percalços e até retrocessos. Até que o destino cumpra o seu papel. Porque se é histórico (na acepção indicada), este relato é também – antes disso, sem dúvida – sobre pessoas e sentimentos.
Em paralelo com as histórias das duas mulheres, desvendadas aos poucos, com recurso a alguns flashbacks, descobrimos também um pouco mais sobre Edouard e o seu amor (platónico) por Tshiland, e sobre Mike, ex-combatente do Vietname, de onde trouxe a dependência da droga, que mina a sua relação com a bela negra. São eles, com elas, que em off vão fazendo avançar a narrativa, por vezes de forma algo lenta dada a extensão de alguns dos pensamentos que, no entanto, são fundamentais para a boa definição das personagens perante o leitor.
Do traço da dupla Warnauts e Raives, salientam-se os retratos das protagonistas, mais duas belas e sensuais criações para a sua já longa galeria, e a excelente aplicação das cores no tratamento de cenários e paisagens.

A reter
- A forma como Warnauts e Raives continuam a tratar as mulheres nas suas bandas desenhadas - e já agora nos soberbos esboços disponíveis aqui.
- O trabalho de cor de Raives.
- A forma como esta dupla traça a “história negra” dos EUA, através de uns quantos momentos, ilusoriamente soltos, mas elos de uma mesma cadeia comum.

Menos conseguido
- A lentidão do relato nalguns momentos.

Curiosidades
- Como desde há 20 anos, Warnauts e Raives têm uma forma de trabalhar diferente do habitual: depois de longas discussões, o primeiro escreve o argumento; de seguida, ambos trabalham no desenho, para no final Raives aplicar a cor.

12/02/2010

Peanuts, obra completa – 1959-1960


Charles M. Scuhlz (argu-mento e desenho)
Introdução de Whoopi Goldberg
Afron-tamento (Portugal, Novembro de 2009)
220 x 174 mm, 324 p., pb, cartonado com sobrecapa com badanas

Em 2004, a editora norte-americana Fantagraphics Books lançava o primeiro tomo de um ambicioso projecto: a edição integral dos "Peanuts" de Charles M. Schulz, anunciando-o como "o mais aguardado e ambicioso projecto editorial da história das tiras diárias americanas".
Dos 25 volumes previstos, lançados a uma média de dois por ano, estão já editados 12, devendo a edição ficar concluída em 2016. Cada volume, com mais de 300 páginas, reúne por ordem cronológica, recuperadas e restauradas, todas as tiras diárias e pranchas dominicais publicadas nos jornais ao longo de dois anos, com excepção do primeiro que abarca o período 1950-1952.
O notável arranjo gráfico da colecção é da responsabilidade de Seth, também ele autor de BD, sendo cada volume prefaciado por personalidades de diferentes áreas que de alguma forma foram influenciadas pela obra de Schulz, como Matt Groening, criador dos Simpsons, a cantora Diana Krall, a actriz Whopi Goldberg ou a ex-tenista Billie Jean King.
Em 2006, a Afronta-mento, a exemplo do que têm feito outras editoras um pouco por todo o mundo, lançou os dois primeiros tomos, em versão portuguesa “Peanuts – Obra completa”, tendo até ao momento editado cinco volumes, o último dos quais em Dezembro último, correspondente ao período 1959-1960. Este volume, dedicado a um período em que os alicerces da série já estavam lançados e Schulz já tinha encontrado o seu caminho, inclui, entre muitas outras, as tiras dedicadas ao nascimento de Sally, a irmã de Charlie Brown (aqui bebé mas que em pouco tempo atingirá a idade dos outros Peanuts), a aparição inaugural da Grande Abóbora, a primeira consulta da “psiquiatra” Lucy e, claro, a página que Schulz sempre referiu como a sua favorita, a prancha dominical de 14 de Abril de 1960, aqui reproduzida.
Para este ano, a Afronta-mento prevê lançar em Maio o sexto tomo, referente a 1961-1962, com a caixa arquivadora para os volumes #5 e #6, e em Outubro os volumes 7 e 8 com a respectiva caixa.

(Versão revista e aumentada do texto publicado a 6 de Fevereiro de 2010 na revista NS, distribuídas aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

Schulz e os Peanuts, uma cronologia

1922
26 de Novembro – Charles Monroe Schulz nasce em Minneapolis, no Minnesota, EUA

1943
É incorporado no exército norte-americano, participando na libertação da França e na ocupação da Alemanha

1946
Professor no Art Instruction, Inc.

1947
Publica as primeiras ilustrações humorísticas no Saturday Evening Post e Li’l Folks no Saint Paul Pionner Press

1950
Assina com o United Features Syndicate
2 de Outubro – Publicação da primeira tira diária de Peanuts, em 8 jornais norte-americanos
1951
Casa com Joyce Halverson

1952
6 de Janeiro – Publicação da primeira prancha dominical de Peanuts
Lançada a primeira colectânea
A tira chega a mais de 40 jornais norte-americanos

1955
Recebe o Reuben Award da National Cartoonists Society para melhor cartoonista do ano
Uma câmara da Kodak é o primeiro produto comercial a utilizar a marca Peanuts

1958
É comercializado o primeiro artigo de merchandising dos Peanuts: bonecos de Charlie Brown, Snoopy, Linus e Lucy
A tira diária é publicada em 355 jornais norte-americanos e 40 estrangeiros

1962
Os Peanuts são considerados A Melhor Tira de Humor do Ano pela National Cartoonists Society

1964
É o primeiro autor a receber um segundo Reuben Award

1965
Os Peanuts fazem a capa da revista Times
Exibição da primeira animação “A Charlie Brown Christmas”; distinguida com um Emmy e um Peabody

1967
Musical na Brodway: You’re a Good Man, Charlie Brown
Ronald Reagan, governador da Califórnia, institui 24 de Maio como o dia “Charles Schulz”

1972
Divorcia-se de Joyce Halverson Schulz

1973
Casa com Jean Forsyth Clyde
Recebe novo Emmy por A Charlie Brown Thanksgiving, décima animação dos Peanuts

1975
A tira diária é publicada em 1480 jornais norte-americanos e 175 estrangeiros, chegando a 90 milhões de pessoas
Novo Emmy, por You’re a Good Sport, Charlie Brown

1980
Life Is a Circus, Charlie Brown conquista mais um Emmy

1983
Novo Peabody, por What Have We Learned, Charlie Brown?
Os Peanuts surgem no Guinness Book of World Records como a primeira tira vendida a mais de 2 000 jornais

1990
Recebe a Ordem das Artes e das Letras do ministro francês da Cultura, Jack Lang, durante uma exposição da sua obra no Museu do Louvre
1992
Condecorado com a Ordem de Mérito pelo governo italiano

1996
Inaugura a sua estrela no Passeio da Fama, em Hollywood

1999
A tira diária é publicada em 2600 jornais de todo o mundo e lida por 300 milhões de pessoas
14 de Dezembro - Anuncia o fim dos Peanuts, por sofrer de um cancro do cólon

2000
3 de Janeiro – Publicação da última tira diária dos Peanuts
2002
Inauguração do The Charles Schulz Museum and Research Center em Santa Rosa, Califórnia

2004
A Fantagraphics inicia a publicação de “Peanuts – Obra integral”

2007
A prancha de 10 de Abril de 1955, assinada por Charles Schulz, mostrando Charlie Brown sozinho no campo de basebol, debaixo de um dilúvio, é arrematada num leilão por cerca de 76.500 €

(Texto publicado originalmente na revista NS, distribuída aos s´bados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

10 Anos sem Charles Schulz

Há dez anos, a 12 de Fevereiro de 2000, falecia Charles Schulz, o criador dos Peanuts, possivelmente a banda desenhada que mais autores (e não só) influenciou. No dia seguinte, era publicada nos jornais a última prancha dominical desenhada por si. Em Outubro próximo, passam 60 anos sobre a estreia da sua criação.

“Quem te disse que sabias jogar basebol? És o pior do mundo! És uma nulidade! És uma desgraça!”, afirma alto e bom som Lucy, dirigindo-se a Charlie Brown, na tira de 7 de Setembro de 1959. Logo de seguida, Patty reitera: “Não prestas para nada! És abaixo de zero! És pior do que mau! És…”
Era Charlie Bown, em todo o seu (total desprovimento de) esplendor, ou não seja ele, possivelmente, o (anti)-herói mais nulo da história, sem quase nenhum êxito ao longo de 50 anos de quadradinhos. Mas foi com ele – em torno dele, mais exactamente – que Charles Monroe Schulz desenvolveu uma das mais notáveis galerias de personagens e um dos mais espantosos universos das histórias em quadradinhos, um autêntico “microcosmos”, como os classificou o insuspeito Umberto Eco, “uma pequena comédia humana, tanto para o leitor inocente como para o leitor sofisticado”.
E estes dois níveis de leitura (pelo menos…) são um dos segredos do sucesso dos pequenos “amendoins” (tradução literal de “peanuts”, nome imposto pelo United Features Syndicate, que Schulz sempre abominou) que ao longo de quase cinco décadas e das 17.897 tiras diárias e pranchas dominicais integralmente escritas e desenhadas por ele mantiveram um assinalável nível de qualidade, chegando, no seu apogeu, a mais de 2.500 jornais de todo o mundo, estando traduzidos em 25 línguas (incluindo o latim!) e em 75 países, tendo os seus livros vendido mais de 300 milhões de exemplares.
Neles, aquele leitor simples citado por Eco, diverte-se com os sucessivos fracassos de Charlie Brown – a lançar um papagaio, junto dos amigos, a jogar basebol, a chutar uma bola de futebol americano ou a conseguir chegar à fala com a rapariguinha de cabelo ruivo – repetidos à exaustão, sempre com desfechos diferentes, sempre com resultados iguais: o falhanço. E também com a maldade de Lucy, a sua indiferença como psiquiatra, o sempre surpreendente Snoopy, tão capaz de se portar como um cão tanto quanto como um ser humano, dormindo no tecto da casota, escrevendo à máquina romances de sucesso, assumindo a identidade de um ás da aviação da I Guerra Mundial em luta contra o terrível Barão Vermelho, o piano de Schroeder, o cobertor de Linus, o nonsense de muitas situações...
Quanto ao leitor sofisticado – embora se divertisse igualmente com as situações atrás descritas – apreciaria igualmente como com um grupo de crianças – a série esteve para se chamar “Li’l folks” (“gente pequena”) – e um cão, Snoopy, que progressivamente ocupa o lugar de consciência crítica do conjunto, Schulz foi capaz de criar um retrato tão próximo quer do seu mundo, quer do mundo adulto. Porque dotou cada um com características do ser humano, inspirando-se para isso em familiares e amigos e vertendo muito da sua própria vida para as situações retratadas nos quadradinhos. Ele próprio o afirmou: “desenhei os Peanuts pela mesma razão que Beethoven compôs as suas sinfonias, porque era a minha vida”. Para o pior e para o melhor pois Schulz era propenso a crises de depressão e de amarga solidão que frequentemente influenciaram a tira. Por isso, se os Peanuts podem ser ternos, meigos, engraçados, amigos, interessados, disponíveis ou altruístas, também conseguem ser maus, egocêntricos, cruéis, amargos, egoístas, ressentidos ou injustos.
Esta dualidade, está também presente ao nível das temáticas. Se por um lado são os pequenos nadas quotidianos que ocupam Charlie Brown e os seus companheiros, por outro, são recorrentes na série – tratados de forma enganadoramente leve e divertida - temas como o crescimento, a velhice, a morte, o futuro (assustador), os sonhos, as relações, as ambições… Para além disso, ao longo dos anos, Schulz foi capaz de actualizar a série, introduzindo nela os avanços e as invenções que o homem foi criando, como a televisão, o microondas ou a chegada à Lua, em que Snoopy precedeu os astronautas da Apolo XI e mesmo… o gato do vizinho!
Graficamente, se se pode classificar de minimalista o traço de Schulz, já que “os seus desenhos não passavam de rabiscos, meia dúzia de traços pouco mais elaborados do que as figuras de pauzinhos das crianças”, como escreve Walter Cronkite na introdução do segundo tomo de “Peanuts – Obra Completa”, e se muitas vezes os fundos das vinhetas se encontram vazios ou quase, a verdade é que o seu desenho é extremamente legível e expressivo, funcionado com toda a auto-suficiência nas muitas tiras sem qualquer palavra.
Finalmente, Schulz deixou que os seus heróis se libertassem do papel, saltando para o cinema de animação em mais de quatro dezenas de bem conseguidas longas-metragens, um musical da Brodway ou um espectáculo no gelo, transformando-os em apetecíveis marcas que serviram para publicitar tudo o que se possa imaginar e também para apoiar as causas que julgou meritórias. Por isso dificilmente algum de nós se pode gabar de nunca ter tido em sua casa um ou outro artigo com Snoopy ou Charlie Brown estampados, mesmo que nunca tenha lido qualquer das suas tiras.
O que só se pode lamentar porque, pondo tudo o mais de lado, lembra Matt Groening, o criador dos Simpsons, fica “o que interessa: cinquenta anos de Peanuts propriamente ditos, a brilhante, atormentada e genuinamente divertida obra-prima de Schulz, impregnada de alegria e mágoa”. E na qual nos podemos reconhecer, seja nos fracassos de Charlie Brown, na irritabilidade de Lucy (que nunca tem dúvidas e raramente se engana…), na insegurança do intelectual Linus, no virtuosismo de Schroeder, na dificuldade comunicacional de Woodstock e, pontualmente – felizes de nós – na multiplicidade de Snoopy porque, ainda segundo Cronkite, “o maior dos truques mágicos de Schulz foi dar vida a todas aquelas criaturas maravilhosas com as quais povoou o nosso mundo e alegrou os nossos dias”.
Foi desse mundo, no qual teve “a felicidade de desenhar Charlie Brown e os seus amigos durante quase 50 anos”, realizando completamente os seus “sonhos de criança”, que Schulz se despediu, no último quadradinho que desenhou.

E sem dificuldade podemos fazer nossas as suas palavras: “Charlie Brown, Snoopy, Linus, Lucy… nunca os poderei esquecer…”



(Texto publicado originalmente na revista NS, distribuída aos s´bados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

11/02/2010

Tarzan
















Pranchas Dominicais de Russ Manning
Vol. 1 – 1968-1970
Vol. 2 – 1970-1972
Bonecos Rebeldes (Portugal, Setembro de 2007 e Fevereiro de 2008)
240 x 340, 136 p., pb, brochada com badanas

Entre muitas leituras, incluindo algumas grandes obras que tenho compartilhado com os que se dão ao trabalho de me lerem, confesso que a que me deu maior prazer nos últimos tempos foi este Tarzan de Russ Manning.
Não por se tratar de uma excelente edição da Bonecos, em formato italiano, com excelente reprodução da arte de Manning.
Não pelo traço vigoroso, dinâmico e bem proporcionado do autor, que produziu o "mais limpo" Tarzan de sempre, rigoroso na reprodução de veículos, fantástico no tratamento dado a homens (e belíssimas mulheres) e animais, capaz de (quase) nos fazer sentir a humidade das verdejantes selvas africanas, o calor abrasador dos desertos, o nevoeiro denso dos mundos misteriosos que Tarzan descobre, os cheiros intensos de homens e animais, capaz de transmitir dor, raiva, fúria, alegria ou surpresa pela simples expressão dos rostos.
Não foi, ainda, pelas histórias, bem ritmadas e planificadas, que combinam episódios quase ecológicos com aventura pura, o estranho fascínio da selva com os mundos fantásticos que Burroughs imaginou, o confronto desigual entre as civilizações branca e negra.
Foi, apenas (?!), tão só (?!) porque nele reencontrei um dos meus heróis de juventude, o seu universo forte e sedutor, os brados arrepiantes de Tarzan, como "Kreegah!" ou "Bundolo", que preencheram muitas das minhas brincadeiras; porque nele relembrei imagens ou sequências completas, fortes e marcantes, que a minha memória guardou, como os combates com os homens-formiga, os homens primitivos de Opar, a sua sedutora rainha La debruçada sobre o homem-macaco deitado na pedra do sacrifício, Tarzan entrando em combate à frente dos seus animais, a sua selvagem celebração de vitória com os grandes macacos… Porque (re)descobri um encantamento que o tempo não foi capaz de apagar.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 21 de Outubro de 2007)

Na pista de Tarzan: Akim, Zembla e os outros

Há 60 anos, nascia Akim, herói de quadradinhos populares imaginado em Itália que, como muitos outros, antes e depois de si, bebia muita da sua inspiração no Tarzan imaginado por Edgar Rice Burroughs no início do século XX.
No caso de Akim, a colagem ao primeiro homem-macaco branco, era feita quase ao pormenor: os pais naufragaram na costa africana e foram mortos por feras, sendo o bebé adoptado por uma gorila. Cresceu entre os macacos, aprendeu a sua linguagem, desenvolveu uma assinalável musculatura e desenvolveu amizade com os animais. Tornou-se um justiceiro da floresta, temido pelos nativos, inimigo de traficantes e bandidos, mas também combateu sábios loucos e explorou civilizações perdidas, na senda da literatura popular de aventuras. E não hesitava em colocar temporariamente de lado a sua tanga feita de pele de leopardo para vestir roupas comuns e aventurar-se na selva urbana para combater delinquentes ou polícias corruptos. Durante as suas aventuras, partilhadas com um babuíno (Zig), um gorila (Kar), um elefante (Baroi) e um leão (Rag), descobriu ser herdeiro de uma grande fortuna, conheceu a bela Rita – com quem viveu “escandalosamente” durante anos sem se casarem (!) - e adoptou o pequeno Jim.
A sua estreia, a 10 de Fevereiro de 1950 foi na revista “Albo Gioello”, num formato semelhante ao dos cheques, criado pelo argumentista Roberto Renzi e o desenhador Augusto Pedrazza, que com ele granjearam grande popularidade, não só em Itália, mas igualmente na França e no Brasil. Com o novo alento que lhe deu a Sérgio Bonelli Editore, em 1976, a sua revista prolongou-se por 41 anos e mais de 750 números. Durante anos distribuído em Portugal em edições brasileiras, Akim teve uma edição nacional de curta duração, nos anos 70, da responsabilidade da Palirex.
Na senda do seu sucesso, numa óptica de concorrência, mas num tom mais paródico, em 1963, em França, nas páginas da “Special Kiwi”, nasceria Zembla, criado por Marcel Navarro e desenhado por diversos artistas italianos, entre os quais Pedrazza, o mesmo de Akim. Criado por leões, como traços distintivos tinha o cabelo negro e longo e uma tira de pele que lhe cruzava o tronco, e era acompanhado por um leão, um gato-selvagem, um canguru, um pigmeu e um mágico! O sucesso repetiu-se e Zembla – que gozou de enorme popularidade na… Turquia (!) - sobreviveu até 1994. Em Portugal foi publicado na colecção Tigre e teve tamb´m direito a revista nacional própria de algum sucesso, pois durou cerca de meia centena de números.
Mas as imitações do mito do selvagem branco, popularizado no cinema, especialmente nos filmes interpretados por Johnny Weissmuller, e na banda desenhada, com as inexcedíveis versões de Harold Foster, Burne Hogarth e Russ Manning, não se ficariam por aqui e teriam mesmo as mais díspares origens e desenvolvimentos. Entre elas, conta-se também “Korak”, o filho (legítimo, com Jane) de Tarzan, também criação de Burroughs, que nos quadradinhos viveu aventuras a solo ou em conjunto com o(s) seu(s) progenitor(es), a partir dos anos 60, muitas delas publicadas em português, inclusive em revista própria, por onde também passou o talento de Manning.
Nalguns casos com variantes, como “Fishboy: Denizen of the Deep”, um comic inglês publicado entre 1968 e 1975, escrito por Scott Goodall, cujo protagonista, abandonado numa ilha deserta, foi adoptado por tubarões, conseguindo comunicar com eles e respirar debaixo de água.

Diferente também era Yataca, criação francófona do mesmo período mas de maior longevidade, que nos primeiros episódios narrava as aventuras de uma criança selvagem na Amazónia. Ao fim de uma vintena de números, sem qualquer explicação, tornou-se adulto e mudou-se para África. Entre os seus desenhadores conta-se o português Vítor Péon, tendo alguns episódios da sua autoria sido publicados pela Portugal Press, numa publicação com o nome do herói. No mesmo registo, Péon criaria também Zama, cuja existência foi no entanto bastante curta.
A Marvel tem também o seu bom selvagem, Ka-Zar, “clone” de Tarzan criado em 1936 por Bob Byrd; três décadas mais tarde, foi remodelado por Stan Lee e Jack Kirby, que o transportaram para a Terra Selvagem, uma zona de clima tropical em plena Antártida onde ainda existem dinossauros, dando-lhe por companhia Zabu, um tigre dentes-de-sabre. A sua integração no universo Marvel proporcionou-lhe
aventuras com o Homem-Aranha ou o Demolidor.
Entre as versões de Tarzan mais curiosas conta-se "Jungle no Ouja Ta-chan", um manga (bd japonesa) criado por Tokuhiro Masaya que originaria uma versão animada de tom humorístico em que o “herói”, trapalhão e casado com uma obesa e mandona Jane, podia ser visto a lavar e estender roupa. Animada, também, e bem mais ligeira foi a versão da Disney, cujo filme, datado de 1999, originaria uma série televisiva com a sua infância e uma versão aos quadradinhos.
A um outro nível, refira-se Karzan, uma versão pornográfica do senhor da selva de origem franco-belga, que teve direito a edição nacional logo a seguir ao 25 de Abril com capas do pintor Carlos Alberto Santos.
No campo das curiosidades, refira-se que nos anos 90, na febre dos “crossovers”, Tarzan, ele próprio, o original, viveria nos quadradinhos incongruentes (pelo menos...) parcerias com Batman, Superman ou Fantasma e defrontaria mesmo o cinematográfico Predator…
Mas não se pense que apenas os homens emularam Tarzan, pois as suas versões femininas também abundam nas histórias aos quadradinhos.
Rima, a primeira “mulher selvagem”, aliás, é até anterior à criação de Burroughs, uma vez que protagonizou “Green Mansions: A Romance of the tropical forest”, um romance de William Henry Hudson datado de 1904, ou seja oito anos antes de “Tarzan of the Apes”. Seria no entanto preciso esperar quase mais sete décadas para ver esta heroína nos quadradinhos, por onde entretanto já tinham passado muitas congéneres suas como Shanna the she devil (uma heroína da Marvel), Judy, Tygra, Jann, Tiger Girl, Rulah ou Kara, todas elas “senhoras da selva”, que associavam ao exotismo natural do tema uma sensualidade inevitável face à sua reduzida indumentária.
Entre todas, no entanto, a mais famosa é sem dúvida Sheena, queen of the jungle, ou não tivessem sido os seus criadores Will Eisner (o mesmo do incontornável Spirit) e Jerry Iger. Sheena, aliás, foi a primeira heroína anglo-saxónica da banda desenhada a ter uma revista com o seu nome, logo em 1937, ano da sua criação, tendo tido diversas reedições e novas versões até à actualidade, entre as quais se destacam as assinadas por Dave Stevens e Frank Cho.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 10 de Fevereiro de 2010)

10/02/2010

Séraphin et les animaux de la forêt + Humphrey Dumbar le croquemitaine

Praticamente ignorada por cá (quando não vilipendiada ou exorcizada – vade retro quadradinhos!) a banda desenhada infantil é fundamental, não só como complemento na iniciação à leitura, mas também para a criação de novos públicos para a 9ª arte.
Banda desenhada infantil, escrevi atrás, no sentido de adequada – em termos de escrita, de temática, de desenho… - não infantilóide, como se escrita a pensar em seres com dificuldades de compreensão, para não dizer mais…
Atento a isto, o mercado francófono recebe regularmente títulos para este segmento, até para combater a influência crescente dos manga junto dos mais novos.
Eis dois exemplos que mostram na prática duas formas de o concretizar.

Séraphin et les animaux de la forêt
David Chauvel (argumento)
Jérôme Lereculey (desenho)
Louise (cor)
Delcourt (França, Março de 2008)
320 x 240 mm, 62 p., cor, cartonado

O primeiro, “Séraphin et les animaux de la forêt”, tem carácter lúdico/didáctico, sem que isso signifique ser maçudo ou aborrecido. Pelo contrário.
Espécie de pequena enciclopédia animal, traça em histórias breves de 6 páginas, ao longo das quais somos guiados por um pequeno gomo da floresta, cuja altura serve de escala para os animais retratados, entre os quais a raposa, o cervo, o esquilo, a cobra ou o mocho, fornecendo sobre eles um sem número de informações, do tamanho ao tempo de vida, da alimentação ao habitat, mas sem cansar dada a forma leve e mesmo divertida como Chauvel, um dos argumentistas mais profícuos e heterogéneos da Delcourt, consegue dilui-la. Para isso contribui em muito a planificação dinâmica e extremamente movimentada da obra, que alterna entre grandes plano, planos de conjunto, close-ups aos animais ou cortes dos terrenos onde eles vivem, tudo associado ao traço realista e muito agradável de Lereculey, servido por belas cores.

Humphrey Dumbar le croquemitaine
Emmanuel Civiello (argumento e desenho)
Delcourt (França, Março de 2008)
300 x 230 mm, 32 p., cor, cartonado


De comum com este título, para além da editora e do público-alvo, “Humphrey Dumbar le croquemitaine“, tem também um autor consagrado, o belga Emmanuel Civiello, de quem a Vitamina BD tem no catálogo “Korrigans” e “Sementes de loucura”.
Esta é a história de um papão, que passa as noites a assustar meninos para se alimentar os seus gritos e choro. Até que uma noite, um miúdo mais corajoso se esconde no seu saco, acabando por ir parar ao mundo mágico dos contos onde ele vive, cujas leis e equilíbrios vai alterar, numa narrativa leve e divertida, ritmada e dinâmica, com um final inesperado.
O traço de Civiello, ao mesmo tempo evocador de monstros e temores, quanto de seres ternos, como Jimmy, o rapazinho corajoso, e do mais mágico que o imaginário infantil pode conter, é o ideal para dar corpo a uma história que nos faz sonhar com mundos em que um dia vivemos.

(Versão revista e actualizada do texto publicado originalmente no BDJornal #23 – Verão de 2008)

09/02/2010

Caminhando com Samuel

Tomi Musturi (argumento e desenho)
Mmmnnnrrrg (Portugal, Outubro de 2009)
205 x 205 mm, 140p., cor, cartonado


Durante anos considerada como literatura menor ou para crianças, também pela menor presença de texto (escrito…) a banda desenhada tem neste livro (mais) um exemplo de como aquele pressuposto era profundamente errado. Porque a ausência – total - de texto está longe de o aconselhar a crianças, mesmo tendo em conta os seus chamativos desenhos…
Belo objecto, disponível apenas nalgumas livrarias especializadas ou na Chili com Carne (www.chilicomcarne.com), fruto de uma (improvável) co-edição luso-sueca-belga-finlandesa (!) é falsamente apresentado como “um livro universal porque é mudo (sem palavras)”, uma vez que para o ler é necessário possuir o saber que permite descodificar a linguagem própria dos quadradinhos e porque a interpretação dessa leitura é tudo menos pacífica. Isto porque de Samuel, o protagonista, não sabemos nada. Quem é? De onde vem? Para onde vai? Quando e onde viveu? O que faz nas páginas deste livro? Tudo depende da interpretação (permitida pela bagagem sócio-cultural) de cada leitor, pois se o podemos associar à criação divina, também está patente na narrativa o princípio do big-bang, se nele há algo de sobrenatural, também o identificamos como afirmação do individualismo e do experimentalismo humanos, em diferentes épocas e contextos, em situações umas vezes lineares, outras completamente anacrónicas.
Jogando com as cores, formas, movimento e expressão corporal de Samuel, para narrar, definir tempo e espaço e transmitir sentimentos e emoções, Musturi cria pranchas visualmente atraentes, graças às cores quentes e fortes, apesar de uma planificação bastante rígida, que oscila entre quatro vinhetas (iguais) por prancha e pranchas duplas, mas que obrigam a sucessivas (re)leituras. E que, uma vez voltada a última página, deixam a dúvida (a angústia…?) se o que nós lemos/interpretamos era o que o autor pretendia transmitir.

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 6 de Fevereiro de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

05/02/2010

Asteroid Fighters, Tomo 1 - O Início

Rui Lacas (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Outubro de 2009)
205 x 293, 77 p., cor, cartonado

Depois de várias obras neo-realistas de temática humana e social, entre os quais o muito interessante “Obrigada, patrão”, Rui Lacas, um dos valores seguros da moderna banda desenhada portuguesa, surpreende com este relato misto de antecipação cientifica e de super-heróis, de que este álbum é apenas o inicio, de uma (prevista) trilogia. Da história e do projecto, que prevê uma eventual edição em formato comic-book nos EUA e num eventual álbum integral em França…
Mantendo o seu estilo gráfico, apoiado num traço grosso linha clara, de cores quase sempre vivas, uma planificação dinâmica e multifacetada, com a utilização de múltiplos enquadramentos, aqui apoiados por uma utilização da cor e das sombras mais cuidada, Lacas, que mantém uma grande originalidade nas (eficazes) onomatopeias, leva-nos até 2112. Nesse futuro (im)possível(?), a Terra tem à sua frente um governo mundial de unidade, no seguimento de um cataclismo provocado pela queda de um asteróide um século antes e que, se causou muitas mortes e destruiu as cidades costeiras, teve o condão de unir a humanidade na luta pelos interesses comuns.
Para evitar a repetição da catástrofe, foram desenvolvidos estudos que levaram à criação de uma raça de super-seres, os Asteroid Fighters que dão título à obra. E cuja missão urge mais do que nunca, quando um misterioso ser começa a bombardear o nosso planeta com asteróides artificiais. Recheada de citações (em especial a registos de comics e manga) e homenagens – aos amigos que trabalham com ele no estúdio e aos “verdadeiros” super-heróis -, a história, ritmada, divertida e recheada de momentos de tensão e suspense, desenvolve-se a bom ritmo, com a informação necessária para a sua compreensão bem diluída nos diálogos, um dos aspectos em que Lacas, mais uma vez, brilha, cumprindo com distinção o seu objectivo: divertir e entreter.
O que não é pouco, nos dias que correm, ficando o voto que os restantes tomos chegues depressa, porque este, fazendo muitas perguntas e dando poucas respostas, deixa água na boca.

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 30 de Janeiro de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)
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