14/05/2020

André Diniz: "Histórias partem de desafios, de medos, de conflitos"





Aproveitando o lançamento da 2.ª edição de Morro da Favela  e a respectiva exposição, com a colaboração da editora Polvo, As Leituras do Pedro colocaram algumas perguntas aos autores, via correio electrónico.
Por razões diversas que não vêm ao caso, entre o envio do questionário, a recepção das respostas e a sua publicação, já passaram mais de três meses, mas isso não invalida nem desactualiza o seu interesse e serve como uma nova chamada de atenção para um livro que merece ser lido - como já foi feito aqui.

As Leituras do Pedro: Para começar, qual a diferença entre a edição original de Morro da Favela e a actual?
André Diniz: Esta nova edição traz 12 páginas inéditas de BD, feitas anos depois da edição original. Curiosamente, estas páginas só haviam sido publicadas antes na edição polaca. Há também novas fotos do Maurício Hora, sobre quem a BD conta a trajectória, e um acabamento mais de coleccionador, em capa dura.

As Leituras do Pedro: A história curta que complementa a edição, mostra a favela de Morro da Providência no pós-publicação do livro. Por que razão foi criada esta BD?
André Diniz: As entrevistas com Maurício deram-se entre 2009 e 2010. O meu retorno à Providência foi em 2017. Não parece tanto, mas nesse espaço de tempo, as mudanças na região da favela e nos arredores, sempre com consequências negativas aos moradores foram enormes. É bom lembrar que foi o período no qual se deram a Copa do Mundo e as Olimpíadas e o Rio de Janeiro foi o centro das duas. A região portuária, onde a favela se insere, foi toda remodelada e um teleférico foi construído para facilitar o acesso à favela (funcionou por poucos meses e hoje está parado e apodrecendo). A carreira de Maurício também teve muitas novidades: novos desafios como fotógrafo e a criação da Casa Amarela, um centro cultural no alto do morro.

As Leituras do Pedro: E tu, já voltaste lá? Se não, porquê? Se sim, o que sentiste, o que mudou?
André Diniz: Retornei em 2017. Fora as mudanças na cidade, o teleférico, a Casa Amarela, nada mudou de facto. O apartheid social no Rio e no Brasil como um todo continua com toda a força. A violência nas favelas mata mais que muitas guerras e o resto da população aplaude. Se houve mudança nisso, foi para pior (é só lembrarmos quem está no poder hoje).

As Leituras do Pedro: Qual a importância do livro Morro da Favela em termos pessoais e para a favela de Morro da Providência?
André Diniz: A importância enquanto autor é mais fácil de descrever: foi meu primeiro livro publicado fora do Brasil - no Reino Unido, em França, Polónia e, claro, Portugal. Pessoalmente, além do grande amigo que eu ganhei (refiro-me, claro, a Maurício Hora), foi muito rico romper a barreira classe média / favela. Como brasileiro e como indivíduo, cresci muito com essa experiência.
Sobre a Providência, é maravilhoso trazer as diversas realidades de quem lá vive para os demais brasileiros e para os leitores de outros países. O frustrante é que os verdadeiros personagens - os moradores da favela - não tiveram acesso ao livro, pelo preço ser caro para eles.

As Leituras do Pedro: Quando Morro da Favela foi editado em Portugal, quase não chegavam cá as obras dos autores brasileiros. Hoje, 7 anos depois, a situação é muito diferente. Achas que o teu livro contribuiu para isso de alguma forma?
André Diniz: Foi o primeiro da colecção de BD brasileira da Polvo e teve uma óptima recepção pelos leitores portugueses, então eu realmente acredito que o Morro da Favela ajudou bastante nesse processo. Mas, claro, se o panorama da BD brasileiras não fosse tão rico, nada adiantaria criar essa ponte.

As Leituras do Pedro: Entretanto, mudaste para Portugal, onde vives já há uns anos, mas os teus livros continuam a ser sobre o Brasil. Porquê?
André Diniz: As cidades onde se passam as minhas histórias têm um papel de grande relevância. Foram períodos bem complicados para mim os anos em que vivi no Rio de Janeiro (onde nasci) e em São Paulo. Minha saúde emocional ficou em cacos. Por outro lado, histórias partem de desafios, de medos, de conflitos, sejam cómicos ou dramáticos. Nenhuma história começa com tudo tranquilo sem que essa tranquilidade não se abale em algum momento. Então, as cidades das quais eu ainda tenho muito o que exorcizar são essas duas metrópoles brasileiras. Pela minha intimidade com elas, sei mostrá-las sem precisar recorrer a cartões postais, posso dar uma visão muito mais rica a elas através de suas nuances. Já Lisboa ou qualquer outra cidade em Portugal não me desafiam. Portugal me traz paz. Daí, paz não rende uma BD. Eu também ainda conservo, mesmo depois de quatro anos, um olhar de turista, ainda deslumbrado com o país. Nunca eu poderia falar de Portugal ao leitor português, seria uma visão muito rasa.

As Leituras do Pedro: A distância física permite-te ver a realidade brasileira doutra forma?
André Diniz: Hoje, o mundo é tão pequeno que quase não faz diferença. Acompanho tudo o que está acontecendo no país ao vivo, conversando com os amigos pelas redes sociais. Vou lá uma vez por ano e fico sempre umas três semanas. Já recebi na minha casa vários amigos brasileiros. Aí juntando esse momento tão medonho que o Brasil atravessa, coincidindo justamente com um período mais estável de Portugal, então acaba que a minha cabeça está mais no que acontece lá do que aqui.

As Leituras do Pedro: E quando teremos um livro do André Diniz sobre Portugal?
André Diniz: Quando eu tiver uma visão de Portugal que não seja mero deslumbramento!


(imagens e foto disponibilizadas pela editora Polvo; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

1 comentário:

  1. Uma das melhores coisas que aconteceram no panorama editorial português dos últimos anos foram estas edições de autores brasileiros da Polvo. Para além da enorme qualidade das obras este é um contributo importante no estabelecimento de laços transatlânticos, dos quais beneficiamos todos. Não há autor português que não sonhe com o Brasil. Abraço!

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