Cumprir
Numa época em que (também entre nós) se multiplicam as edições de BD com adaptações de romances literários, poucas se podem gabar de cumprir tão bem o primeiro quesito desse tipo de obras: funcionar de forma autónoma enquanto banda desenhada, como este Ana dos Cabelos Ruivos, baseado no romance homónimo de Lucy Maud Montgomery e recém-editado pela Fábula.
Naquilo que parece um retorno a uma passado com algumas décadas, quando a banda desenhada procurava afirmar-se através das suas versões de obras da literatura mundial, não é difícil citar de memória muitas das que no último ano e meio tiveram edição nacional, a começar pela colecção Clássicos da Literatura em BD, passando pelas sucessivas adaptações e versões dos títulos mais fortes de George Orwell, agora no domínio público, pela subversão do Peter Pan de J. M. Barrie por Loisel, pelo soberbo Drácula de George Bess, o Fahrenheit 451 de Tim Hamilton ou os contos de Edgar Allan Poe, revisitados por Corben. Transversal a diferentes editoras, a oferta é muita, a diversidade também, o mesmo se podendo dizer do tipo de adaptações.
A esta lista respeitável, junta-se agora Ana dos Cabelos Ruivos, um livro para adolescentes e jovens do sexo feminino, escrito no início do século passado, que conta a história de Ana Shirley, uma ruiva de 11 anos, desenvolta e extrovertida, adoptada por dois irmãos de meia idade que residem numa zona rural. A adaptação - mútua! - à nova família, aos vizinhos, aos habitantes locais e aos colegas de escola, a necessidade de condicionar os seus sonhos, sem deixar de os perseguir e a simplicidade com que observa a natureza e se tenta integrar sem deixar de ser quem é, são a base de uma obra divertida e bastante humana.
Não conheço o original e não sei por isso o quanto dele Mariah Marsden teve de deixar de fora das duzentas e tal páginas desta sua versão, trabalhada com Brenna Thummier, mas a verdade é que concluída a leitura ela revelou-se auto-suficiente em si mesma, não deixando dúvidas, hiatos ou momentos inexplicados, como tantas vezes acontece. A versão aos quadradinhos soa completa e integral, com princípio, meio e fim e tem vida própria no género escolhido: não há recurso a textos de apoio, os diálogos, credíveis e coerentes, bastam para fazer avançar o relato e há diversas sequências mudas de uma enorme legibilidade.
Aceito que o desenho de Thummier, aparentemente simples, com muitos fundos vazios e rostos pouco pormenorizados possa ser um obstáculo para alguns leitores, mas em termos funcionais - e quão importante isto é em banda desenhada - cumpre o seu papel narrativo de forma exemplar. As cores surgem como um bom complemento do traço e brilham especialmente na caracterização da natureza e das estações do ano.
Percebo que, pela natureza do original, o tema e o público-alvo a que se dirige, haja muitos a passar ao lado deste livro, mas a forma autónoma que assume enquanto banda desenhada tout court e o par de horas de boa leitura que me proporcionou, revelando-se uma bela surpresa, leva-me a aconselhar a sua leitura.
Nota final
A edição de Fábula merece encómios: formato ‘livro’ ajustado ao conteúdo, capa dura consistente, papel espesso, boa impressão, proporcionam um livro encorpado e agradável de manusear. Mas, repito de forma abreviada o que escrevi há dias a propósito da edição Amélia, uma história do Congo: incluir as capas na contagem das páginas de uma edição, parece-me completamente errado. Pode ser picuice minha, admito, mais a mais num livro volumoso como este, mas aumentar quatro páginas (inexistentes) mesmo que seja às mais de duas centenas de páginas que ele já conta, soa-me a ‘publicidade enganosa’, a tentar vender o livro por mais do que ele realmente contém… E ele não precisa.
Mariah Marsden (argumento)
Brenna Thummier (desenho)
Fábula
Portugal, Setembro de 2021
150 x 230 mm, 228 p., cor, capa dura
18,79 €
(imagens disponibilizadas pela Fábula; clicar nesta ligação para apreciar mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)
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