Sentimento ambíguo
Termino a leitura - e
a releitura também… - com um sentimento
ambíguo. Se
compreendo o caminho escolhido - qualquer super-herói tem um passado
traumático que precisa de ser (mais) explorado - fiquei com a
sensação que faltou unidade a este álbum do Corvo, não
inocentemente o V (quinto) de Vicente…
Vamos lá tentar explicar.
Para mim - e sei que esta não é uma opinião consensual entre os seguidores do Corvo, de Luís Louro - o álbum inicial - O Corvo, muito simplesmente - é talvez o mais conseguido da série, pelo menos na forma como consegue gerir e contrabalançar o lado trágico da narrativa com um humor algo triste e desencantado.
Neste Inimigos Íntimos, o autor decidiu voltar ao passado do Vicente, para o esmiuçar e tornar evidente aos leitores as razões que fizeram do órfão abandonado pelo destino, o alter-ego do maior super-herói lisboeta - e português!
E, se o recurso às sessões de psiquiatria acabam por ser uma forma credível e bem conseguida de fazer o protagonista voltar atrás no tempo e recordar - expor aos leitores - os sucessivos momentos confrangedores e perturbadores que o afectaram para o resto da vida, houve dois aspectos que na minha mente (de também leitor) não funcionaram bem. Por um lado, algum esvaziamento do lado trágico desse passado, em nome do humor que pontua o álbum; em segundo lugar, a ‘revelação da identidade’ do ser que desde a infância tem vindo a atormentar a vida de Vicente - e também do Corvo... - que me pareceu demasiado forçada… e que voluntariamente me escuso de revelar aqui, para não retirar o elemento surpresa que a leitura contém.
Se esta descoberta sucessiva - até à revelação final - é a linha condutora do álbum, ela surge de forma intermitente, em paralelo com as noites do herói, numa sucessão de pequenos episódios e de ‘recados do autor’ - sobre o doentio politicamente correcto que hoje (nos) asfixia, as ‘lições de gramática’, a sobrevalorização do bullying, as considerações sobre género… - que podendo ser prementes e nalguns casos ter até a minha concordância, acabam por - em minha opinião... - cortar a linha narrativa principal.
Mas, por outro lado, são a exploração (também gráfica) destes aspectos, a par do uso da metalinguagem no constante duelar entre o narrador e o herói, o ódio deste aos pombos e as suas consecutivas más interpretações das situações nocturnas com que se depara, que servem de base e potenciam o humor desde sempre existente nos relatos protagonizados pelo Corvo.
Graficamente, em linha com a opção já explanada no álbum anterior, Inconsciência tranquila, mantém a opção de três tiras por página, o que o torna a planificação mais arejada e proporciona um ritmo de leitura acelerado e dinâmico. O recurso a vinhetas de maior dimensão - e até a páginas duplas - permite a Luís Louro composições bem conseguidas com significativa espectacularidade.
Em termos de cor, se o uso de tons mais sombrios no presente reforça o registo narrativo depressivo associado ao (âmago do) herói e os ambientes nocturnos em que ele maioritariamente se move, as cores mais quentes e alegres escolhidas para tingir o passado de Vicente introduzem uma interessante nota contrastante, opondo o aspecto fofo e mais infantil das personagens com o registo mais carregado do relato nessa época.
Uma último nota para o final que Louro propõe (à nossa interpretação…), que deixa o protagonista num aparente beco sem saída - ou de futuro muito incerto… - tal como aliás acontecia - mas em termos completamente díspares - no final do primeiro álbum do Corvo…
Em termos editoriais, esta é mais uma bela edição da Ala dos Livros, que confirma a forte aposta da editora no autor. Como aperitivo à narrativa em si, tem um prefácio de João Marques, várias homenagens de outros desenhadores e alguns dos esboços preparatórios do álbum, apresentando este grande formato, capa dura, papel de boa gramagem e boa impressão.
O Corvo V: Inimigos íntimos
Luís Louro
Ala dos Livros
Portugal, Agosto
de 2021
235
x 310
mm, 64
p., cor, capa dura
16,95
€
(imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para apreciar mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)
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