Cronista
A lançar durante o próximo fim-de-semana, no Amadora BD, com a presença do autor, Escuta, formosa Márcia é o mais recente livro de Marcello Quintanilha que continua a olhar para o seu Brasil natal, de uma forma ao mesmo tempo crítica e terna, destacando o lado humana das personagens que o protagonizam.
No caso, Márcia, uma negra robusta que é enfermeira num hospital do Rio de Janeiro. Entre a favela onde habita, a relação complicada com a filha Jaqueline, criminosa de pequena escala que descarrega na mãe a insatisfação com a vida, numa permanente atitude de desafio - e de chamada de atenção - e o dia-a-dia no hospital em que trabalha, Márcia tem tudo para viver deprimida e desiludida. Mas, Márcia, é uma daquelas forças da natureza, capaz de no seu caos diário ainda encontrar tempo e força para desenvolver a sua relação com Aluísio, o seu companheiro, e de dar uma ajuda aos vizinhos.
A prisão da filha, uma doença sexualmente transmissível, as ameaças das más companhias de Jaqueline, são elementos que numa sucessão descontrolada vêm perturbar mais o seu quotidiano e mergulhar a sua vida numa espiral descendente que parece não ter fim - nem solução - e vão provocar a pergunta dolorosa e triste que faz a um Aluísio adormecido e ecoará na mente do leitor ao longo de todo o livro: "Eu sou formosa?"
Crónica dura e crua de um certo Brasil de hoje, onde decorre a acção, mas ‘exportável’ para muitas outras localizações geográficas, violenta pela forma como expõe uma realidade que é um misto de pobreza, miséria, criminalidade e ódio, Escuta, pequena Márcia - cujo título tem por base uma modinha tradicional - confirma Marcello Quintanilha como um dos grandes cronistas sociais dos nossos dias e um grande narrador aos quadradinhos, capaz de nos transportar para uma realidade que todos (re)conhecemos, mas tantas vezes preferimos ignorar.
De ritmo pausado, esta é uma história que parece arrastar-se, de forma penosa e incómoda, não por inépcia do autor, bem pelo contrário, mas para que o leitor tenha tempo de absorver e meditar na perturbadora sucessão de desgraças reais que se abatem sobre a protagonista - ‘coisas da vida’ dirão amargamente alguns - ameaçando afogá-la de vez nas suas preocupações e problemas e obrigar a resoluções extremas para não perder tudo. No complicado equilíbrio entre o desejável e o possível, entre o controlo dos danos e a aceitação do inevitável, entre a escolha do que deve abandonar para reter o que lhe é mais querido e importante, Márcia vai tentar emergir como uma (réstea de) esperança numa sociedade em desagregação.
Ao peso neo-realista do seu argumento, Quintanilha acrescentou um desenho igualmente realista, mas pintado com uma paleta de cores bastante limitada que, pelo seu afastamento do (colorido) real, criam um interessante efeito de contraste que leva o leitor a concentrar-se (ainda) mais no que realmente importa (e choca): os diversos elementos do relato.
Escuta,
formosa Márcia
Colecção “Romance Brasileiro”
#30
Marcello
Quintanilha
Polvo
Portugal,
Outubro de 2021
190
x 260 mm, 128 p., cor, capa cartão, com badanas
22,90
€
(capa disponibilizada pela Polvo; pranchas disponibilizadas pela editora Veneta; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)
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