15/10/2021

O Combate Quotidiano I

É a vida.



Entro a matar: muito se tem falado do desenho de Larcenet nesta obra, geralmente de forma depreciativa.
Há um quesito muitas vezes esquecido, que em BD é sempre verdade: o bom desenho, é aquele que conta bem uma história. Em O Combate Quotidiano, o desenho de Larcenet conta admiravelmente a história.
E que história! Uma história de vida.

A história - ficcionada…? - da vida do autor, espelhada no quotidiano de Marco. Inseguro, solitário, sofrendo de ataques de pânico, com dificuldades de relacionamento com os pais, o irmão, as namoradas (quando chegam a tanto…), descrente do seu trabalho de fotógrafo (de sucesso), a sua vida é um acumular de desastres, de diferentes proporções. Por culpa própria, muitas vezes, ou tão só porque a vida - a dele, a nossa - é assim.

É um combate constante - quotidiano, como se lê no título; muitas vezes mais do que isso um combate hora a hora, minuto a minuto. Um combate que tem por objectivo superarmo-nos. Superarmos os nossos medos, as nossas inseguranças, os nossos pontos fracos, a nossa (in)capacidade de relacionamento, a nossa capacidade de aceitar as derrotas e seguir em frente. Porque a vida, vale sempre a pena, tem sempre mais para dar. Se quisermos.

Nestas 120 páginas - e que crime é termos de esperar até Março do próximo ano pelas restantes 120… - Larcenet, de forma descontraída, agradável, mesmo com algum humor, mostra-nos o pior da sua vida - porque é assim que ele a deseja ver… O abandono das sessões de psiquiatria - que continuam omnipresentes ao longo do álbum - o cultivar da solidão, o afastamento voluntário dos pais e irmão, raramente interrompido, com o assumir da consequente culpabilidade; a incapacidade de lidar com a progressiva decadência do pai, vítima de Alzheimer; os avanços e recuos na relação com Émilie; o desemprego; a sua inconstância em relação à fotografia; a incapacidade de assumir as suas posições perante os outros; a perda de um ente próximo…

E a incapacidade de aceitar as escolhas de uns e a dorida compreensão das escolhas de outros; e a situação política em França - com o duelo Chirac/Le Pen em pano de fundo; e a degradação da vida social no país… A vida, pois.

E o seu desenho feio, de personagens ou com olhos brancos vazios ou ou apenas com pontos pretos, a assumida desproporcionalidade do traço caricatural, os fundos planos e lisos que se multiplicam, as estranhas páginas de traço realista que aqui e ali se interpõem no relato, acompanhadas das suas reflexões mais profundas, tudo isto, apesar da fealdade que alguns lhe apontam, funciona de forma admirável naquele que é o seu propósito único: contar a história que Larcenet tem para nós.

E conta-a de forma admirável, com o ritmo narrativo adequado, com pausas e silêncios, com momentos intensos de ternura, crueza, crueldade, paixão, dor, abandono, desespero, impotência… De uma forma tão conseguida, tão capaz, tão eficiente que é difícil expressar aqui, apenas com palavras.

E essa história, pungente e doce, incómoda e estimulante, distante e próxima, crua e sensível, é, por tudo isto, uma história humana, de uma enorme credibilidade e sinceridade, um retrato social de uma geração e de um país, tornada próxima e mais premente por estar na primeira pessoa, numa auto-exposição dolorosa, atenuada aqui e ali pelos apontamentos de humor, mas que no final - e então no final deste primeiro díptico - nos deixa chocados e deprimidos, amargamente surpreendidos por tudo o que se desenrola perante os nossos olhos. Aquilo que geralmente designamos por VIDA.


O Combate Quotidiano, volume 1 (de 2)
Manu Larcenet
Arte de Autor/A Seita
Portugal, Setembro de 2021
215 x 285 mm, 120 p., cor, capa dura
24,00

(imagens disponibilizadas pela Arte de Autor e A Seita; clicar nesta ligação para ver outras pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)

1 comentário:

  1. Concordo plenamente e acrescento outra grande qualidade deste fantástico livro: a de poder ser arremessado às ventas de todos aqueles que consideram a BD uma arte menor. Ainda por cima é capa dura ah...ah...ah

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