Honrar os clássicos
Sendo incontestável a evolução
positiva que o mercado português de banda desenhada sofreu em anos
recentes, continua a faltar-lhe
capacidade de
reeditar os seus clássicos.
Concerto
para 8 Infantes e 1 Bastardo seguido de NiuIoRk,
um
regresso a Fernando Relvas, um nome incontornável da banda desenhada
portuguesa das décadas 1980/2000, que
deixou uma obra imensa, espalhada por revistas e jornais, é apenas
uma gota num imenso mar que corre
grave rico de esquecimento.
Escrevi acima que que ao mercado português ‘continua a faltar a capacidade de reeditar os seus clássicos’ mas em vez de ‘capacidade’ devia ter escrito ‘dimensáo’, por isso acrescento que essa situação certamente se perpetuará (indefinidamente…?) no tempo, dada a sua exiguidade [e por isso a única tentativa séria e continuada de o fazer foi a colecção Antologia da BD Portuguesa, da Editorial Futura, com 21 volumes lançados na década de 1980]. E se gostava de poder aceder com alguma facilidade à obra de Fernando Bento ou Vítor Péon, para citar apenas dois exemplos (apesar de tudo) ‘de clássicos mais modernos’, reconheço também que as suas obras apenas despertariam o interesse de um nicho dentro do nicho que já é o nosso mercado de BD.
Mesmo as obras de Relvas, do grande Relvas, sofreram com a passagem do tempo - e com a passagem das publicações periódicas para a compilação em álbum... - e o saudosismo e a nostalgia serão factores preponderantes para captar leitores, apesar desta bela edição, bem como a dedicada a O Espião Acácio, serem magníficas oportunidades para que as novas gerações as descubram. Ou para que aqueles que as leram semanalmente na Tintin ou no Se7e reencontrem algumas das personagens marcantes que as protagonizaram, aspecto fulcral em que a obra de Relvas é muito rica.
Como é o caso de Jaca, protagonista de Concerto para 8 infantes e 1 bastardo, seguido de NiuIoRk, que esta edição Turbina/A Seita compila, duas criações marcantes, que espelham bem o que Relvas foi enquanto autor,
Por um lado, um desenhador de eleição, dono de uma técnica realista perfeita no desenho do corpo humano, expressiva, dinâmica e servida por belíssimos contrastes de branco e negro, por uma ‘realização’ cinematográfica em que as tomadas vão sendo feitas de diferentes ângulos e pela forma soberba como utilizava a luz nas suas pranchas. Olhem com atenção para algumas destas pranchas e percebam o autor dotado e inspirado que Relvas foi.
Mas - mas? - depois, também um escritor anárquico, com o relato a avançar ao sabor da inspiração, com ideias fortes mas uma linha condutora ténue, como o próprio admite, a propósito das narrativas deste álbum, no auto-comentário nele incluído. Mas um escritor que caracteriza assertivamente as suas personagens, que as dota de credibilidade através das situações e dos diálogos e da forma como espelhava nelas este ou aquele dos nossos amigos ou conhecidos (de então).
Finalmente, Relvas foi um dos grandes cronistas da sua época, capaz de retratar como ninguém a noite lisboeta e as diversas tribos urbanas que nela se moviam, numa certa marginalidade e forma de estar que, podendo ser estranhas à maioria dos leitores, adquiriam uma naturalidade e realismo que os levavam a tomá-las como certas e verídicas.
Uma nota final para a actual edição, que para além da excelente impressão em bom papel que valoriza o trabalho gráfico de Relvas, inclui ainda esboços e diversos textos - entre os quais o do próprio autor, já referido - e uma bibliografia cronológica que deixa a nu que este livro - e uns poucos mais editados na última década - não são mais que o topo de um enorme icebergue...
Concerto
para 8 infantes e 1 bastardo, seguido de NiuIoRk
Fernando
Relvas
Turbina/A
Seita
Portugal, Agosto de 2021
215
x 285 mm,
72
p., pb, capa dura
18,80 €
(versão completamente revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 25 de Setembro de 2021; imagens disponibilizadas pelas editoras; clicar neste link para apreciar outras ou nas aqui mostradas para as aproveitar em toda a sua extensão)
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