16/02/2022

Matei o meu pai e foi estranho

Contrariar um título revelador



Uma obra com um título revelador, como é o caso desta - Matei o meu pai e foi estranho - tem tudo para deixar o leitor desconfiado e até desmotivado por conhecer antecipadamente o final. Para mais, quando a informação em causa é confirmada logo nas primeiras páginas.
Tendo arriscado tanto, resta ao autor conseguir criar um relato suficientemente estimulante e, ainda assim, capaz de surpreender o leitor. André Diniz, brasileiro de 46 anos, a residir no nosso país há alguns anos, consegue fazê-lo.

Na sua bibliografia, em que se destaca o livro Morro da Favela surgem como temáticas recorrentes a dificuldade de relacionamento e a consequente não integração familiar e social e a arte simultaneamente como elemento salvador mas também de exclusão, adivinhando-se nelas um cunho autobiográfico.

Matei o meu pai e foi estranho não é excepção. Nesta narrativa, introspectiva e intimista, mergulhamos no quotidiano à parte de Zaqueu, o protagonista, que surge perante os nossos olhos despojado da capa de auto-protecção que lhe é fornecida pelo distanciamento que cultiva no dia a dia. Albino numa família de morenos; pobre num colégio de ricos; rapaz sensível face aos machões - pai e irmão - da casa; artista quando o desejado era um futebolista; desastrado com as raparigas a quem quer agradar; surge desajustado na sociedade, marginalizado na escola, criticado em casa...

E só consegue fugir a este quotidiano opressor, quando se imagina outro nas suas deambulações pela cidade, através dos seus desenhos ou em raros momentos fortuitos e passageiros que surgem como pequenos oásis numa vida que deseja de anonimato, mas em que parece ser sempre o protagonista falhado - ou que busca a falha mesmo quando a sorte lhe parece sorrir…

Até que, num desses passeios, durante mais uma fuga às aulas - ao choque com a sua realidade - depara com algo surpreendente que o levará a reequacionar algumas das suas (in)certezas e a assumir uma posição de força - de controle da sua vida - como até aí raramente tinha feito.

E, finalmente, a concretizar o que o leitor esperava desde o início… com André Diniz a mostrar que não é o fim que importa, mas sim como se chega lá. E a forma como se concretiza.


Matei o meu pai e foi estranho
André Diniz
Polvo
Portugal, Outubro de 2021
150 x 210 mm, 120 p., pb, capa cartão com badanas
11,90 €

(texto publicado originalmente no Jornal de Notícias, na edição online de 4 de Fevereiro e na edição em papel de 5 de Fevereiro de 2022; imagens disponibilizadas pela Polvo; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para aceder aos temas destacados)

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