25/02/2022

Matt Marriott #2: Enfrentamiento en Dodge City

Tortura íntima


Leitura adiada por demasiado tempo, este segundo integral das tiras diárias de Matt Marriott, o western britânico aqui assinado por Tony Weare e James Edgar, confirma-o como o mais humano e ao mesmo tempo mais duro relato aos quadradinhos do género, com o tanto de arriscado e subjectivo que têm afirmações absolutas como esta.
Mesmo que, ao fim de cinco relatos e aproximando-se do meio milhar de tiras, a série ainda não tivesse atingido o seu auge.

[No texto que se segue, há algumas revelações sobre a trama, limitadas no seu peso e interesse globais, mas eventualmente excessivas no que deixam vislumbrar do retrato de conjunto, nunca do de pormenor. Ou seja, a súmula deste parágrafo é: prossigam esta leitura por vossa conta e risco...]

No entanto, neste díptico - deixem-me chamar-lhe assim por facilidade de escrita - Marriott, assume-se como o verdadeiro protagonista, já que a Powder se reserva essencialmente os papéis de duro e de desencadeador dos fait-divers que aligeiram o relato. Um protagonista cujo carácter honesto e escorreito o leva a fazer escolhas difíceis e pouco aconselháveis, mantendo-as a todo o custo até final, mas não sem sentir dúvidas, remorsos e hesitações quanto à consequência dos seus actos.

Num oeste selvagem - ou tornado selvagem pelos homens brancos que nele querem habitar, desbravando-o a qualquer custo - em que é mais fácil tirar uma vida do que mudar de camisa - ignorando o anacrónico que esta frase feita tem no contexto em causa - Marriott, na narrativa que dá título a esta recolha, sente no seu âmago o peso de um gesto desses, mesmo que (semi-)involuntário, mesmo que num acto de justiça, mesmo que a vítima fosse alguém execrável e à margem da lei - o que não significa que não seja igualmente vítima.

Mas se para este último não há remédio, para lá dos sete palmos de terra regulamentares, para Marriott começa um verdadeiro calvário interior, atormentado, torturado, pelo seu gesto, tentando a todo o custo apagá-lo da memória - e pagá-lo em auxílio ao próximo.

E o próximo - literalmente e relato - é La Iglesia de Wesley Greer - belíssimo título como comprovarão se o lerem, pelo simbolismo e dádiva que encerra - e, nele, o próximo, os próximos, são os pobres habitantes de uma pequena povoação, ameaçada por um bando de malfeitores que lhes extorque dinheiro em troca de protecção - ou melhor, em troca de não agressão.

De passagem, intimamente torturado, Marriott se num primeiro momento prefere ignorar e seguir em frente, é puxado para trás pelo seu passado recente, pela dívida para com os seres humanos que intimamente sente que contraiu e acaba por se decidir a auxiliar aqueles a quem faltava a coragem para o fazerem por si próprios.

Se este retrato de um homem revoltado consigo e com o seu mundo já é de si soberbo, este díptico (...) brilha ainda por mais dois instantâneos de vida. O primeiro, das mulheres da povoação que, contrariando as saias que envergam e o peso ancestral da sua condição, decidem assumir elas a defesa da sua comunidade, substituindo-se aos homens. Depois, numa antítese com o protagonista, Edgar e Weare mostram outra faceta de um ser humano, através das sucessivas mudanças que vai experimentando Catlin, o líder dos agressores.

No final, apesar de tudo, Marriott não se sente menos atormentado ou torturado, não hesita em castigar-se num voto de solidão quando poderia ter chegado ao oásis que nós, leitores, sentimos, talvez, que merecia. Embora percebamos que isso seria dar um final feliz a um retrato que, assumindo-se tão cruelmente realista e humano, nunca poderia terminar assim.

Paradigma incómodo do cowboy solitário - mesmo com a presença constante do bom Powder, espécie de consciência desconfortável e de companheiro para todas as horas - a saga de Matt Marriott - pouco épica pela miséria humana de fundo que a embala e torna pesada - na rudeza do seu traço agreste e na escuridão das almas que expõe, merece ser lida atentamente e de espírito aberto e consciente.


Matt Marriott#2: Enfrentamiento en Dodge City
Tiras de 2 de Agosto de 1955 a 27 de Abril de 1957
Colección Cómics de Prensa
James Edgar (argumento)
Tony Weare (desenho)
Libri Impressi
Portugal, Junho de 2021
290 x 215 mm, 88 p., pb, capa mole
18,50 €

(imagens do álbum disponibilizadas pela Libri Impressi; clicar nesta ligação para ver mais páginas ou nas imagens aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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