30/05/2023

Macbeth, Rei da Escócia

Trair o original para o recriar melhor


Nunca se deve duvidar do mal, no fim revela-se sempre mais eficaz do que o bem, e mais interessante, claro.’
In Macbeth, Rei da Escócia


Com a adaptação de romances em banda desenhada de novo na moda, há que ter em conta dois tipos de abordagem: a que aposta numa leitura mais simplificada e linear para tentar seduzir as gerações mais jovens ou aquela que aproveita a oportunidade para fazer brilhar tanto a obra original quanto a sua versão aos quadradinhos.

Macbeth, Rei da Escócia, que A Seita acaba de disponibilizar na sua colecção Nona Literatura, com duas capas diferentes (uma das quais exclusiva da Wook), segue a segunda via. Tendo como ponto de partida uma obra de William Shakespeare que muitos poderiam citar como tal mas menos seriam capazes de resumir e situar, assume à partida uma traição ao dramaturgo inglês, pois o argumentista, Thomas Day, declara ter tomado como ponto de partida a tradução de François-Victor Hugo, que data de 1866. Ou seja, mais de 200 anos depois da obra original e numa outra língua, embora “tendo sempre como fonte… o texto na língua original” nas citações, numa versão que define como de “alta traição”.

Relembro que Shakespeare encenou nesta obra uma narrativa de tom trágico, baseada num regicídio e nas respectivas consequências. Ambientada na Escócia rude e feudal, acompanha um general vitorioso e apreciado por todos que, empurrado por uma profecia de três bruxas que o apontam como futuro Rei da Escócia, mata o seu senhor e ocupa o seu lugar, desposando ainda a sua esposa.

Traindo o original, Day e Guillaume Sorel, fazem da viúva a (verdadeira) protagonista, ambiciosa, insensível e disposta a tudo em nome do seu sonho: ser rainha, mesmo que isso se torne um pesadelo para os demais.

Com a acção e as decisões subsequentes de Macbeth espoletadas por ela, esta versão aos quadradinhos acentua o peso dos remorsos do novo rei, em consequência das acções funestas de que foi cúmplice ou perpetrador em nome da pulsão sexual, do desejo e do fascínio que sobre ele exerce a futura co-soberana.

A obsessão, a violência e a submissão implícita que exalam da obra são enfatizadas pelo grafismo de Sorel, num misto de realismo, rudeza e traço agreste que sublinha o lado demoníaco de Lady Macbeth e o sofrimento e divisão interiores do monarca. Em simultâneo, o desenhador confere ao todo a dimensão época que este relato de sucessivas traições exigia, adicionando a uma planificação aparentemente caótica, vinhetas de comprimento duplo em páginas contíguas para criar cenas sobredimensionadas que realçam planos de conjunto, a desolação dos cenários escoceses, o tom sangrento e sanguinário de determinados momentos ou tão só a força visceral das personagens.


O casamento acaba sempre por apelar ao homicídio, como um afogado chama por socorro.’
In Macbeth, Rei da Escócia


Macbeth, Rei da Escócia
Baseado na obra de William Shakespeare
Thomas Day (argumento)
Guillaume Sorel (desenho)
A Seita
Portugal, Maio de 2023
215 x 285 mm, 124 p., cor, capa dura
25,00 €

(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online a 19 de Maio de 2023 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas por A Seita; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as apreciar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre o tema destacado)

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