Os horríveis anos oitenta...
Amigo do Diabo, segundo volume da série Reckless, acabado de editar em português pela G. Floy, de alguma forma combina a autobiografia, por força do regresso do argumentista Ed Brubaker às suas próprias recordações, com a ficção sociológica de tom policial, devido ao mergulho num passado colectivo que pertence a todos os que viveram os horríveis anos 80…
A música (sem a adequada adjectivação…) com “grandes cabeleiras, teclados barulhentos e caixas de ritmos”, as “drogas rascas”, a violência skinhead, as seitas, os cultos… atropelam-se naturalmente num relato que, pela forma como está construído, num discurso em voz off do protagonista, estabelece laços connosco, leitores, e leva a que nos embrenhemos nele, sentindo-nos parte integrante do mesmo, ainda que apenas como meros espectadores… ou voyeurs.
Ao lado de Brubaker, um dos melhores escritores de policiais aos quadradinhos da sua geração, está de novo, inevitavelmente, Sean Philips, mas desta vez o seu traço realista característico provocou-me alguns incómodos ao longo da leitura e uma revisão, no final, ajudou-me a compreender melhor porquê: aqui e ali, com maior frequência do que seria desejável - como se uma só vez já não fosse demais… - há personagens anatomicamente imperfeitas e desproporcionadas e uma rigidez das faces que não era habitual no desenhador…
O que não foi suficiente para me afastar do livro, um retrato duro e credível de uma época que Brubaker aponta como inútil e “uma fase horrível para (…) o mundo à nossa volta”, cuja leitura é aliciante e se torna mais ritmada e entranhável pelo modo como os capítulos se sucedem, com os respectivos títulos de alguma forma a surgirem ‘naturalmente’ nas pranchas, eliminando os hiatos - físicos e temporais - entre as cenas, quase nos levando a acreditar que, se fosse cinema, era narrado num único take.
E, na verdade, é (também) de cinema que Amigo do Diabo trata - e é nele, devido a ele, que tudo começa e termina - enquanto somos levados numa busca por uma jovem desaparecida anos antes nos antros de Hollywood - nos seus cantos esconsos é mais assertivo - entre sonhos de grandeza no grande écrã e o choque frontal com a realidade de um mundo feito de ilusões, pródigo em destruí-las, com Ethan Reckless, mais uma vez em busca de auto-redenção e de fazer a diferença para alguém, a sentir-se obrigado a ser protagonista activo no desfecho final que apenas exacerba a violência física e psicológica que perpassa por todo o relato.
Reckless
#2: Amigo do Diabo
Ed
Brubaker (argumento)
Sean
Phillips (desenho)
G. Floy
Portugal,
Março de 2023
180 x
275 mm, 144 p., cor, capa dura
20,00 €
(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online a 28 de Abril de 2023 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela G. Floy; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as apreciar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre o tema destacado)
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