Nem entre os mortos
Há
quem considere o western um
subgénero espúrio, que não passa de um conjunto de estereótipos
mal alinhavados - ou alinhavados de forma previsível e sempre igual
- mas a verdade é que no western -
como em todos os outros
géneros, subgéneros e classificações menos ou mais estanques - há
uns que são mais iguais do que outros.
E
depois, há os que são diferentes e são obras-primas tout
court. É o caso de Undertaker,
como comprovado
à
saciedade, tomo após tomo.
Posso começar pelo mais óbvio: o desenho. O belíssimo traço realista de Ralph Meyer, expressivo, detalhado quanto baste, vibrante, de um dinamismo invulgar. À vontade na representação da figura humana tanto quanto na exibição dos cavalos - imprescindíveis num western - tanto quanto na dos abutres - imprescindíveis em Undertaker. E pela forma como transforma uma planificação de cariz tradicional, aproveitando as duas dimensões do papel - chamemos-lhes largura e altura - explorando-as individualmente ou em conjunto em vinhetas de grandes dimensões, para conferir ao relato o tom grandioso e épico que (também) o distingue.
Estabelecido o que primeiro salta aos olhos do (potencial) leitor, posso referir a originalidade do protagonista: Jonas Crow, ex-soldado da Guerra de Secessão norte-americana, dedicado à nobre tarefa de fazer da última viagem de cada ser humano (para o Além) um momento inolvidável - pelo menos para os seus entes queridos. Atormentado pelo passado, que ressurge em vagas incontroláveis a cada novo díptico, perseguido pelos seus fantasmas - e pelos vivos que preferia que fossem fantasmas - Jonas Crow, cínico, amoral e capaz da maior violência, perante um cadáver transforma-se num exemplo de dedicação e entrega, elevando a sua profissão, imprescindível mas odiada e desprezada, quase ao nível de obra de arte.
A seu lado, mesmo depois da partida de Lin e Rose no final do díptico anterior, para além da sua ave necrófaga de estimação, surgem sempre personagens marcantes, fortes, mais do que simples coadjuvantes ou membros de uma galeria que serve para o destacar, pessoas movidas por sentimentos - quase sempre o ódio e o desejo de vingança - que ajudam a compor um retrato extremamente forte e muitas vezes chocante de uma época com tanto de heróico quanto de venal e violento, que explica em boa parte - sem que o justifique - o que de pior existe nos Estados Unidos de hoje.
À originalidade dos intervenientes, há que acrescentar - e em Undertaker tudo o que se possa considerar surge sempre a somar - a originalidade das histórias e a forma como são desenvolvidas e nos são narradas, mesmo quando partindo de estereótipos: no caso vertente, a busca de um branco raptado pelos índios na adolescência e transformado num guerreiro sanguinário, carregado de ódio pelos brancos. Inevitavelmente - em Undertaker - a busca pelo seu cadáver… mesmo que, entre os (que ainda estão) vivos, nem sempre o que parece é nem tudo o que se diz é verdade e Jonas mais uma vez irá recordá-lo da pior forma...
Uma narrativa mais uma vez feita em crescendo, com uma trama que se vai adensando, que busca na História colectiva, em geral, e, em particular, no passado de Crow - que nos vai sendo dado a conhecer aos poucos - elementos para comporem, darem consistência e espessura ao que se vai desenrolando em ritmo generoso perante os nossos olhos.
E podia ficar por aqui. Mas para os que dizem que os western são todos iguais, como leitor recorrente e convertido ao género, peço que leiam as primeiras páginas e descubram - como eu o fiz - como em algo tão banal como um ataque a uma diligência, é possível inovar e ser original - e não uma mas, sim, duas vezes.
E percebam que são estes pormenores de todo desprezíveis, a par do retrato maior já exposto, que fazem de Undertaker uma revisitação do western original, apelativa e épica e da série uma obra-prima tout court.
Undertaker
#5:
O índio
branco
Xavier
Dorison e Ralph Meyer (argumento)
Ralph
Meyer (desenho)
Ralph
Meyer e Caroline Delabie (cor)
Ala
dos Livros
Portugal,
Maio
de
2023
235
x 310 mm, 64
p., cor, capa dura
17,90
€
(imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação aqui para ver mais pranchas, ou nas aqui reproduzidas para as apreciar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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