Regresso ao passado
Há muito apreciador das séries de aventuras franco-belgas, tenho Thorgal - pelo menos até Yves Sente assumir o argumento - como uma das minhas escolhas de eleição.
O anúncio do lançamento de Thorgal Saga - na prática aquilo que mais comummente se designará por 'Thorgal de autor' - aguçou-me o apetite e evocou um sem número de memórias.
Há não muito anos, havia obras que teriam de ser compradas no idioma original - entenda-se aqui como 'francês' - porque era de todo improvável um dia (...) serem editadas em português. Com as mudanças editoriais recentes, o mais certo é que hoje boa parte desses 'títulos sedutores' cheguem às livrarias nacionais num intervalo de tempo curto, quando não mesmo em simultâneo com o lançamento original. Thorgal Saga: Adeus Aarícia, uma das obras por mim consideradas de leitura obrigatória dadas as boas opiniões expressas sobre ele e o meu passado com Thorgal, descoberto ainda a preto e branco nas páginas do Mundo de Aventuras, foi um desses casos, embora aqui a espera tenha sido maior do que expectável.
No mundo (de leitura) ideal, o tempo pararia sempre que fosse necessário reler uma qualquer obra, no caso a primeira trintena de volumes de Thorgal, antes de mergulhar neste Adeus Aarícia.
Essa releitura, não sendo obrigatória, ajuda a compreender melhor uma série de referências que Robin Recht, o seu autor, espalhou ao longo da obra, bem como a recordar algumas das personagens que ressurgem pelo tempo deste volume, até porque o trabalho gráfico é excelente e próximo, em termos de ambiências, do original de Rosinski.
Para quem não conheça ou tenha esquecido, Thorgal é uma saga ambientada na época dos vickings, que combina a grande aventura - como só Jean Van Hamme (e poucos mais) foram capazes de escrever - com alguns matizes de ficção científica e fantástico, que a tornam única. Para além disso, assume um tom de registo familiar porque, apesar de tudo o que vive, dos feitos que consegue, o protagonista, que dá nome à série, almeja apenas viver em sossego com Aarícia, a mulher que ama, e com os seus filhos, apesar do destino, os deuses e os homens - e as mulheres... - se empenharem em contrariá-lo. Um pouco à imagem do Princípe Valente ou e Buddy Longway, Thorgal cresce, casa, tem filhos, envelhece, (quase) tal como qualquer ser humano normal.
Este breve apanhado é necessário para entender melhor o peso enorme que Recht depositou sobre os ombros de Thorgal, quando abre o seu relato com a cerimónia fúnebre de Aarícia, encabeçada pelo seu amado. Por isso, as três primeiras pranchas são de uma emoção palpável, com o registo quase completamente mudo apenas entrecortado com umas quantas frases assertivas e de enorme peso e já marcada saudade.
E se parecia que o registo estava definido, não o abandonando nunca, Adeus Aarícia assume um outro tom, quando é dada a Thorgal, pelo sempre pérfido demónio Nidhogg, a oportunidade de reencontrar a sua amada, através de um regresso de mais de 60 anos ao passado, inevitavelmente armadilhado.
Com as tais referências a surgirem e a cruzarem-se com o relato de Recht, assistimos - vivemos...? - a um regresso a memórias - que nós , leitores desde sempre da saga, possivelmente nem sabíamos (ainda) ter - ao mesmo tempo que Thorgal, envelhecido, irá interagir com Aarícia, o seu pai e os outros vikings e com ele próprio, ainda adolescente, numa experiência renovada e diferente, embora o conhecimento que guardou dos acontecimentos futuros se mantenha e o obrigue a escolhas difíceis entre o que o presente lhe exige e o que ele deseja manter imutável da sua vivência anterior, para poder vir a fruir a vida plena e cheia que teve com Aarícia.
Mas o desejo dos homens e a vontade dos deuses nem sempre são coincidentes e vivendo mais uma aventura épica plena de combates, situações limite e daquilo que leva o homem, cada homem, a revelar o melhor ou o pior de si, Thorgal vai perceber que até os heróis podem ser vencidos, embora o final com que o autor termina o livro, dúplice nos conceitos expostos, permita ao leitor acreditar que o que passou e o que está para vir podem, a um mesmo tempo, ser unos e díspares.
Thorgal
Saga: Adeus Aarícia
Robin
Recht
A
Seita
Portugal,
Outubro
de 2024
235
x 340
mm, 120
p., cor, capa dura
28,00
€
(imagens disponibilizadas por A Seita; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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