18/12/2024

Clássicos da Literatura Portugueses em BD - Entrevista com Pedro Vieira de Moura e Daniel Silvestre





Embora o primeiro volume de Os Lusíadas já tenha visto a luz do dia há algumas semanas, por razões diversas que não vêm ao vaso, só agora é publicada a habitual entrevista padrão de As Leituras do Pedro, respondida pelo argumentista Pedro Viera de Moura e um dos ilustradores, Daniel Silvestre.
Podem lê-la já a seguir.


As Leituras do Pedro - A escolha da obra foi tua ou da editora?

Pedro Vieira de Moura - Conforme as minhas respostas nos outros títulos em que participei (Mensagem e Sermão de Santo António aos Peixes), os títulos estavam seleccionados desde logo à partida pela editora, não tendo havido intervenção da minha parte, nem dos outros autores, mas houve sim uma oportunidade de escolher ou aceitar ter feito esta adaptação de Os Lusíadas em particular.


As Leituras do Pedro - E a escolha do desenhador para a ilustrar?

Pedro Vieira de Moura -

Aqui já houve maior grau de intervenção da minha parte. A ideia de trabalhar com três desenhadores diferentes veio num passo logo ao início, quando nos apercebemos da agenda de trabalho, mas também das potencialidades estruturais do livro e as diferentes expressões plásticas dos três artistas. O Daniel Silvestre da Silva foi a primeira pessoa envolvida, alguém que conheço há anos, já havia colaborado com ele em vários projectos pequenos, e queria muito que me acompanhasse numa jornada maior. O Miguel Rocha e o João Lemos já tinham publicado através da Levoir outros trabalhos, e são pessoas que dispensam apresentações. Seja como for, todos estes passos foram sempre equacionados com conhecimento da editora, a Sílvia Reig, que prontamente adorou a ideia, ainda que tenha tido de adaptar a paciência de me ouvir como pombo-correio mais vezes do que desejaria, de certeza...

Daniel Silvestre - A escolha foi da editora. A editora contactou o Pedro Moura e deu-lhe liberdade de escolha sobre os ilustradores com quem ia trabalhar.


As Leituras do Pedro - Já conheciam a obra? O que trouxe adaptá-la?

Pedro Vieira de Moura - Bom, ça va de soi. Imagina o que seria responder que não, nunca tinha ouvido falar ou nunca havia lido Os Lusíadas... Não sendo um camoniano profissionalizado, claro, tenho alguma constante relação com o poema. Não apenas na vida escolar normal, como fiz uma leitura completa, profunda, no meu percurso académico (estudei literatura, afinal), e sempre procurei ir acompanhando de alguma forma a bibliografia imensa que existe em torno do texto. Isto não significa que não tenha sido um desafio, ou que as escolhas feitas não tenham sido fruto de certas circunstâncias, imaginando sempre opções alternativas...

Por exemplo, rapidamente soubemos que precisávamos de 2 volumes, mas ainda se ponderou a ideia de um terceiro, ou se fantasiou 10 volumes (1 por cada Canto), mas isso seria incomportável. Portanto, nesse “espartilho” formal, procurámos uma re-estruturação dos episódios narrativos, e os tratamentos dos temas, etc., que “coubesse” nesse formato de um modo equilibrado e legível.

Também a opção do trabalho sobre o texto em si - isto é, a opção por eliminar a versificação mas manter alguns ritmos rímicos, manter o vocabulário mas alterando a estrutura frásica, continuar algumas imagens, um ou outro vocábulo antigo, mas actualizar a grafia, etc. - foi algo ponderado. Adaptar totalmente ao vocabulário chão contemporâneo não faria sentido, mas procurar preservar toda a matéria verbal era impossível.

Daniel Silvestre - Bom, os Lusíadas dispensam apresentações e, tal como muitos portugueses, lidei com esta obra enquanto estudante no ensino secundário. O meu conhecimento da obra vinha daí. Quando o Pedro Moura me convidou para este projeto tive uma reacção um pouco contraditória: por um lado a noção de que estava perante um texto com uma iconografia muito visitada e, por outro, saber que está do lado do artista visual a responsabilidade de a devolver ao seu justo lugar de obra maior da literatura portuguesa.


As Leituras do Pedro - Se a escolha fosse livre, sem limitações, que obra gostavam de adaptar?

Pedro Vieira de Moura - Remeto, neste ponto, às minhas respostas anteriores nestas entrevistas.

Daniel Silvestre - Entre obras da literatura portuguesa, possivelmente O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, ou A Brusca, de Agustina Bessa-Luís. No entanto, iria pedir uma liberdade sem limitações, possivelmente usando o texto original em toda a sua extensão e com uma abordagem visual com recurso a muitas formas diferentes de fazer banda desenhada.


As Leituras do Pedro - Como se adapta uma obras destas a BD? Quais as principais dificuldades?

Pedro Vieira de Moura - Neste caso, como já foi aventado, a grande dificuldade tinha a ver com o “tamanho”. Pelas contas brutas que fiz, para termos o texto todo, precisaríamos de cerca de 17 estrofes por página no nosso projecto. Além disso, existem frases, momentos, imagens que se funcionam bem na poesia, como breves relampejos de analogias, “traduzi-los” para imagens causaria uma espécie de cacofonia gráfica, feia e desequilibrada. Daí a opção de compreender três níveis diferentes, cada um entregue a um artista diferente. Em primeiro lugar, todos os “discursos do Poeta”, isto é, aquelas partes classicamente conhecidas como a Proposição, a Invocação, a Dedicatória e depois os muitos comentários e excursos do Poeta, ficaram num nível externo à narrativa, desenhados pelo Daniel Silvestre da Silva. Aí, optámos por ser a figur do próprio Camões a “falar”, digamos assim.

Depois temos a narrativa propriamente dita. Ou seja, o que inclui a viagem da frota de Vasco da Gama, que começa já no Oceano Índico, a parte “original” da sua navegação (daí que seja in media res), as paragens ao longo da costa africana, a chegada à Índia, as negociações e contactos com todos os reis e representantes, e depois a partida de regresso. Essa é a parte “narrativa” desenhada pelo Miguel Rocha. Todavia, respeitando o poema em si, todos os episódios dos “deuses” são também narrativos, e têm momentos de toque com o mundo dos humanos, ainda que paralelos. E, finalmente, o episódio da Ilha dos Amores, em que esse contacto é directo. Tudo isso encontra-se nesse nível.

Finalmente, sempre que alguma personagem interna à narração conta, por sua vez, uma outra narrativa (chama-se a isso um nível hipodiegético), como acontece com o Vasco da Gama, o Paulo da Gama e ainda o marinheiro Veloso, introduzindo, usualmente, episódios da História de Portugal (isto é, o que é “passado” para os próprios personagens-narradores), remetemo-nos para um terceiro nível, e esse é desenhado pelo João Lemos. Uma pequena “batota”, ou correcção talvez, é que quando essa História (que inclui desde a descrição da Europa, o Condado e Afonso Henriques, as batalhas de Ourique, Salado, Aljubarrota, etc.) se aproxima do tempo do próprio Gama, passamos de novo para o nível do Miguel Rocha. E tomem atenção aos pormenores, pois pode haver surpresas.

No segundo volume, há uma alteração significativa da ordem ou colocação destes episódios, por força da nossa “reescrita”, mas que penso que serão magnificamente traduzidos visualmente, também com opções inéditas. E mais não digo...

Portanto, este foi o mecanismo que nos ajudou, de uma forma clara para os livros de banda desenhada, a “seleccionar” quais as matérias e episódios que poderíamos preservar do poema, e quais suspender. Quanto à dificuldade da linguagem em sim, vejam uma das respostas anteriores.

Daniel Silvestre - No que toca ao papel ilustrador, penso que a maior dificuldade está em conseguir libertar-se da imensa iconografia associada a esta obra. O trabalho de adaptação feito pelo Pedro Moura foi muito completo na escrita, na divisão das partes e nas indicações (como também na liberdade) que deu aos ilustradores. Dito isto, penso que a maior dificuldade em ilustrar uma obra desta natureza esteve em conseguir libertar-me, tanto quanto possível, da imensa iconografia associada à obra. Sobretudo, conseguir libertar-me de iconografia que carrega que valores em que já não nos revemos.


As Leituras do Pedro - Como foi o vosso processo de trabalho?

Pedro Vieira de Moura - Apesar de tudo, bastante tranquilo e claro. Eu optei, com o acordo de todos os artistas, de fazer um argumento semi-completo, com planificação de acções e distribuição de texto para cada página, mas sem ter estruturado as páginas, uma vez que sabia que cada artista faria escolhas mais livres, como veio a acontecer, sobretudo o Daniel e o Miguel, com aquelas pranchas pensadas como splash pages estonteantes. No caso do João, que tem uma experiência imensa no storytelling sólido, houve um diálogo constante, já que muitas das escolhas e estratégias dele traziam significados adicionais ao que estaria previsto no texto. Houve sempre um contacto constante à medida que se avançava, e eu cheguei ainda a alterar (cortar!) texto mal a legendagem estava feita (para a qual contámos com a ajuda preciosa da Cláudia Loureiro).

As “transições” entre artistas estavam previstas desde logo, assim como as páginas em que temos dois artistas no mesmo espaço gráfico. Mais uma vez, isso foi possível por um trabalho de colaboração ligeiramente complicado à partida, mas resolúvel pelo diálogo e contacto. O resultado cabe aos leitores avaliar!

Daniel Silvestre - O Pedro Moura preparou o texto e atribuiu o trabalho a cada um dos ilustradores de acordo com os diferentes momentos da narrativa. Pessoalmente, tive a necessidade de fazer esboços e negociar as imagens com o Pedro antes de passar às imagens finais. De resto, à medida que íamos tendo as pranchas prontas, a Cláudia Loureiro ia fazendo a balonagem para poder entregar à Levoir.


As Leituras do Pedro - Que expectativas têm?

Pedro Vieira de Moura - Acima de tudo, que seja lido. Mais uma vez repito ou sublinho que a atitude desta colecção não é a da “simplificação” dos textos, para serem empregues em substituição dos textos, num contexto escolar ou coisa que o valha. Mas, contudo, é de facto pensado como um espaço de trabalho para uma versão em banda desenhada destes textos que seja acessível, legível e estimulante. Para um público alargado, que possa abarcar desde jovens que nunca leram o texto a experientes conhecedores de Camões que possam redescobrir aspectos do poema ou se maravilhem, espero, com as nossas opções.

Os Lusíadas é um poema multifacetado e com uma capacidade absolutamente incrível de encerrar em si toda uma série de facetas que permitem interpretações variadas, por vezes até contraditórias. Mas isso diz muito da maravilha do texto de Camões. E acredito que ainda faz todo o sentido, mesmo com uma atitude crítica permitida pelos novos valores contemporâneos e o necessário revisionismo histórico, considerar este como um, ou O, poema maior da literatura portuguesa. Se a interpretação que fazemos pela banda desenhada – que não escamoteia a violência dos contactos, a supremacia étnica e religiosa dos portugueses no seu programa de expansão comercial e, mais tarde, colonialista, e, corroborado pelo próprio Camões, a voraz ganância do que viria a ser o capitalismo (se bem que esta palavra possa não fazer muito sentido, do ponto de vista teórico, no século XVI) – ajudar a redescobrir parte dessa maravilha, já temos o dia ganho.

De resto, e repito, mas acrescento: que seja lido, acima de tudo. Mas que seja lido como livro de banda desenhada, uma vez que há muito esforço aqui de criar ideias na própria linguagem desta arte que devem ser apreciadas em si mesmas, e não somente como “veículo” de transporte de um texto anteriormente existente... Procurámos criar banda desenhada pura e dura.

Daniel Silvestre - Que o livro seja bem recebido pelo público, é a maior expectativa que podemos ter.


As Leituras do Pedro - Qual a importância de uma colecção como esta?

Pedro Vieira de Moura - Remeto novamente às respostas anteriores deste ciclo de entrevistas, mas talvez acrescente algo quando falarmos do segundo volume d'Os Lusíadas!!

Daniel Silvestre - Penso que as adaptações funcionam como pequenas obras em torno de um monumento maior. Prestam-lhe homenagem, mas também podem ter uma vida própria. Uma coleção de adaptações de obras maiores da literatura portuguesa tem sempre a consequência de voltar a lembrar e discutir os clássicos. Teoricamente, é uma situação positiva para todas as partes: ganham os clássicos porque voltam a estar no centro da discussão, ganha a literatura portuguesa no seu todo por haver vários autores contemporâneos a contribuírem para a vitalidade da sua recepção, e também ganha a banda desenhada portuguesa por se fazer presente, continuar a formar públicos e veicular tudo isto.


(imagens disponibilizadas pela Levoir e pelos autores; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui apresentadas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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