30/12/2024

O abismo do esquecimento

Para suportar a dor da perda



A memória tem sido uma das temáticas recorrentes na obra de Paco Roca que, felizmente, está praticamente toda editada em Portugal. Seja nas questões relacionadas com a sua perda devido à doença de Alzheimer (como em Rugas), seja no peso das memórias familiares (A Casa, Regresso ao Éden), seja na forma como encara as consequências da Guerra Civil espanhola (Os Trilhos do Acaso). Esta última temática está de novo presente no mais recente O abismo do esquecimento, que tem edição da Ala dos Livros.

Nele, Roca, em parceria com o jornalista Rodrigo Terrasa, recupera as histórias de José Celda, vítima das represálias franquistas, e de Leoncio Badia, obrigado a trabalhar como coveiro por ser republicano para "enterrares os teus", que colocou o corpo daquele com mais 189, numa das muitas valas comuns criadas pelos 'vencedores' no pós-Guerra Civil. E que retirou deles madeixas de cabelo, pedaços de roupa e outras pequenas lembranças para de alguma forma atenuar o sofrimento dos familiares.

Como protagonista surge também Pepica Celda, filha de José, que lutou toda a vida para recuperar os restos mortais do seu pai e dar-lhes um fim digno, como reflexo de uma cultura, a espanhola que, como a portuguesa, tem um profundo culto dos mortos, para cada vez mais incompreensível, porque "o esquecimento é o abismo que separa a vida da morte".

O abismo do esquecimento evoca o horror da guerra, o terror das represálias por parte dos vencedores, feitas de vinganças mesquinhas, assassinatos por ideologia diferente e revanchismo por abuso de poder, apenas porque sim, porque podiam, porque eram os que mandavam na altura. E evoca também os absurdos da burocracia para proceder às exumações, já em democracia, ao sabor da cor dos partidos no poder.

É um relato que transpira História, a grande que vem nas páginas dos manuais, mas também a pequena, dos participantes involuntários que levaram a cabo a outra ou foram vítimas anónimas dela.

E é, por tudo isto, um relato duro, tenso e difícil, mas também de uma imensa empatia, que não se exibe de apontar culpas - "a democracia cimentou-se sobre o esquecimento" - ou de assumir a defesa dos que não puderam abraçar os entes queridos "uma última vez" e despedirem-se deles.

Se Paco Roca, em termos gráficos continua igual a si mesmo - e o quanto eu gosto do seu traço e das cores suaves com que atenua a violência da narrativa - parece-me sem razão aparente a opção, mais uma vez, pelo formato italiano e, mais do que isso a forma como o autor valenciano dispôs as vinhetas nas suas pranchas, optando umas vezes pela sua leitura vertical e outras pela sua leitura horizontal, o que não foi um grande contributo para manter um bom ritmo de leitura.

Nada que invalide a força e a importância de uma obra soberba que obriga a uma reflexão profunda sobre quão abjecto, a diferentes níveis, o ser humano consegue ser.


[E que se torna violenta a um nível indescritível quando, a um outro nível - de Rugas... - vejo perante mim as consequências da decadência física, do esfumar da memória, do ser...]


O abismo do esquecimento
Rodrigo Terrasa (argumento)
Paco Roca (desenho)
Ala dos Livros
Portugal, Outubro de 2024
240 x 165 mm, 304 p., cor, capa dura
33,00

(versão revista do texto publicado na edição online do Jornal de Notícias a 21 de Dezembro de 2024 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para vermais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

2 comentários:

  1. Pedro, mais um excelente texto que reflete com a exatidão tudo aquilo que retive de mais um grande livro do Pablo Roca

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