Quartier Lointain - Édition intégrale
Jirô Taniguchi (argumento e desenho)
Casterman (França, Novembro de 2006)
173 x 242 mm, 400 p., cor (6 p.) e pb, cartonado
Colecção écritures
Un ciel radieux
Jirô Taniguchi (argumento e desenho)
Casterman (França, Setembro de 2006)
172 x 240 mm, 300 p., pb, cartonado
Escreve Taniguchi no posfácio de "Un ciel Radieux": "Acredito que, durante toda a nossa existência, alguns acontecimentos, certas experiências, são capazes de nos fazer mudar a nossa forma de viver".
E é isso que ele transmite nestes dois livros, que têm (pelo menos) um ponto em comum: acontecimentos extraordinários, ao nível da memória e da consciência.
Em "Quartier Lontain", o protagonista, Hiroshi, após um desmaio, acorda na sua cidade natal, regressando à sua adolescência, embora com os conhecimentos e a sensibilidade dos seus 40 anos.
Em "Um ciel radieux", na sequência de um acidente de automóvel, um adulto daquela idade, (o espírito de) Kazuhiro Kobota, que guiava uma carrinha, acorda aprisionado no corpo adolescente de Takuya Onodéra, que guiava uma motocicleta.
No primeiro caso, Hiroshi consegue o que muitos, com certeza, ansiamos: voltar ao passado, voltar atrás na vida, seja para viver de novo momentos (mais) alegres, seja para corrigir erros passados. De regresso de uma viagem de negócios, após uma noite bem regada, sem bem saber como, em vez de apanhar o comboio de regresso a casa, em Tóquio, apanha uma composição que o leva à sua cidade natal. Uma vez chegado, para fazer horas, decide visitar a campa da mãe no cemitério. E é lá que, de maneira inexplicável, após um breve desmaio, regressa ao seu passado, reencontrando-se dentro do seu corpo de 14 anos, embora mantenha a capacidade intelectual, a memória e os conhecimentos dos seus quase 50 anos de vida.
Nada de especial, dirão muitos, e é verdade, pois a ideia não é nova. E inicialmente o tratamento dado por Taniguchi também não o parece, pois o seu protagonista, atónito com o que se passa, incapaz de compreender o que lhe aconteceu, surpreso por reencontrar a mãe, falecida há mais de 20 anos, e a irmã mais nova, começa por explorar (mais instintiva que conscientemente) a situação, tornando-se facilmente um bom aluno, brilhando no capítulo desportivo e aproveitando esses dois factores para se aproximar da rapariga mais bonita do liceu. M
as continuando a leitura, vemos que, ao contrário de muitos autores que têm optado por esta via mais simples (e comercial), Taniguchi, com uma narrativa serena e intimista, dá mais uma vez mostras da grande sensibilidade e do sentido poético que já revelara em obras como “L’homme qui marche” ou “Le journal de mon pére” (ambos da Casterman). E, por isso, Hiroshi divide-se entre a felicidade da nova existência e o medo de que as alterações que provoque no seu passado venham a modificar o presente que vivia antes do incidente. Indecisão que desaparece quando se apercebe que se encontra a poucas semanas do dia em que o seu pai abandonou para sempre o lar. E com a sua nova percepção da realidade, capaz de compreender o sentir e as reacções dos adultos, decide tentar evitar que a sua família se desmembre. Mas será possível mudar o curso do tempo que corre?
O relato é lento, para aprofundar os sentimentos das personagens, e nos levar a meditar nas consequências das escolhas que fazemos ao longo da vida. E é também amargo, quando Hiroshi descobre que, afinal, o seu pai abandonou a família porque chegou ao limite, porque quis soltar amarras e perseguir sonhos - o que tão poucas vezes somos capazes de fazer - ou quando compreende que a sua mãe apenas está grata por o inevitável ter demorado tanto a acontecer.
Em "Un ciel radieux", o conflito que era interior no caso de Hiroshi, vive-se a dois quando o espírito de Takuya tenta recuperar o corpo que o espírito de Kubota ocupa. Isto porque após o acidente rodoviário, ambos entraram em coma e, ao fim de algumas semanas, enquanto o corpo de Takuya recomeçava a viver, o de Kubota era dado como morto.
Começa então uma vivência difícil, preso no corpo de outro, no seio de uma família que não conhece - uma família que não o reconhece - enquanto vai progressivamente crescendo o conflito interior pela posse do corpo. Conflito ao nível dessa posse e ao nível de representantes de gerações diferentes - bastante diferentes. Conflito que, a certo ponto se torna cooperação, no encaminhamento para um final feliz - se assim se pode designar a morte - que dá corpo à afirmação de Taniguchi citada no início deste texto.
Antes disso, no entanto, vamos vendo como Kubota, que escondia alguns segredos, se convence que a situação presente é provisória e que a deve aproveitar para mostrar e dizer aquilo que em vida nunca conseguiu: expressar o seu amor pela sua mulher e a sua filha. Ao seu lado estará Kaori, namorada de Takuya, que, aceitando a estranha situação, o ajudará a tirar o máximo partido daquela oportunidade.
Mais uma vez o relato de Taniguchi decorre num ritmo lento, com os pontos de vista a multiplicarem-se durante os muitos diálogos que ele contém, sendo surpreendente como o autor consegue transmitir de forma tão forte as emoções presentes em muitas situações, nomeadamente no abraço de Takuya(/Kobuta) a Kaori ou no (re)encontro (e na despedida) deste último com a sua família.
Ambos os relatos são viagens (fantásticas) pelo mais profundo do ser humano, pelos seus sonhos, medos e ambições, pela forma como nos relacionamos (nos damos) com os outros e pela conflitualidade de sentimentos e desejos que é a vida.
(Versão revista e actualizada do texto originalmente publicado no BDJornal #18 de Abril/Maio de 2007)