02/10/2009

Je t'ai aimé comme on aime les cons

Maria José Giménez (argumento)
José Miguel Fonollosa (desenho) 
Dargaud (França, Maio de 2008) 
149 x 210 mm, 112 p., pb, brochado
Uma separação raramente é fácil. Uma separação quando sentimos que fizemos tudo para ela durar, sem o correspondente empenho da outra parte, mais difícil é. E como ficar quando, após quatro anos de vida em conjunto, o parceiro, como item para mitigar a ausência agora forçada, pede apenas… a televisão? É o que acontece a Miranda, uma valenciana de 27 anos, no momento em que termina a relação com Pedro. Uma relação intensa mas dolorosa, prova (se necessário) de como o amor é cego (e surdo…), de como ele afecta o mais lúcido dos mortais, de como é uma força tão irresistível, mesmo (ou especialmente?) quando nos arrasta inexoravelmente para um abismo (interior, no caso de Miranda). É uma crónica urbana de uma relação minada (também) pelas dificuldades financeiras, pelas (sucessivas) faltas de emprego e pela obrigação de compartilhar apartamentos com desconhecidos, mas acima de tudo pela incapacidade de entrega de uma parte, retrato vivo de boa parte da juventude de hoje, em parte a isso forçada pelas dificuldades de iniciar a vida que os jovens hoje enfrentam, mas também pela sua cada vez menor responsabilização e pela maturidade adiada. O que dá uma força e uma razão inusitada ao título da obra. Fim de relação com que se inicia este livrinho (“inho”, no formato, apenas), no qual vamos acompanhar Miranda ao longo de mais de uma centena de páginas, nas quais a conhecemos melhor e às razões que a levaram a terminar tudo, apesar do muito que gostava de Pedro. Razões que nos são reveladas numa série de flashbacks que ritmam a narrativa, não deixando que se instale alguma monotonia e criando momentos de tensão que os autores conseguem transmitir apesar do traço simples, em registo humorístico, próximo do desenho de imprensa mas eficaz e pleno de movimento. Mas que não deixa de contrastar com a abordagem séria do tema, que ganha força e capacidade de reter a atenção do leitor exactamente na sua banalidade, no retrato sincero de uma situação corriqueira. E que se conclui num happy-end, em que a protagonista, depois de compreender o que a levou aquele ponto, consegue aceitar – finalmente – o que aconteceu, retomar a auto-estima e refazer a vida, com a ajuda de familiares e amigos que, em boa verdade, na vida real muitas vezes não aparecem quando deles se precisa.
(Texto publicado originalmente no BDJornal #23 – Verão de 2008)

01/10/2009

As Melhores Leituras de Setembro

- Appoline (Casterman), de Morvan e TBC
- BRK, tomo 1 (ASA), de Filipe Pina e Filipe Andrade
- Dieu en personne (Delcourt), de Marc-Antoine Mathieu
- Lire Hors-Serie – La vie secrète de Goscinny
- Passageiros do Vento, vols. #1 a #5 (ASA+Público), de François Bourgeon
- Porreiro, pá! (Guerra e Paz), de Augusto Cid

- Tiras Clássicas Turma da Mônica #4 (Panini Comics), de Maurício de Sousa

30/09/2009

As Viagens de Juan sem Terra I - O Cachimbo de Marcos

Javier de Isusi (argumento e desenho)
Edições ASA (Portugal, Março de 2009)
172 x 241 mm, 136 p., pb, capa brochada com badanas


Era uma vez uma revolução – chamou-se zapatista – que a 1 de Janeiro de 1994 se revelou ao mundo, ocupando as cidades mais importantes da província de Chiapas, no México. Deixaram-nas pacificamente dias depois, defendendo uma revolução pacífica, não imposta pelas armas. Pretendiam, entre outras coisas, a participação directa da população, a partilha da terra e das colheitas, igualdade para os indígenas…
Alguns anos depois – em 2004, para a edição original – acompanhamos Vasco, mais elo de ligação da narrativa do que protagonista, nos passos dados antes por Isusi, numa viagem até La Realidad, uma pequena aldeia em pleno coração do zapatismo, onde convivem indígenas e alguns europeus e por onde passam quotidianamente soldados, numa pretensa demonstração de força. À boleia da busca de um amigo, o Juan sem Terra que dá nome à série, desaparecido 6 anos antes, para lhe entregar o cachimbo, descobrimos também em que ponto está a revolução.
Porque, na estranha realidade de La Realidad, ninguém admite a realidade, vivendo como que para forçar um sonho que, 10 anos depois, pouco mais é que isso. Por isso, perante o relato de Isusi, sentimo-nos numa casa de espelhos. Não daquelas vulgares, das feiras, em que superfícies côncavas e convexas reflectem, deformada, a nossa imagem, mas numa outra, perante as imagens já deformadas das (pelas) várias personagens – incrivelmente fortes e definidas - que se apresentam como aquilo que ambicionam, sonham, aspiram, desejam, nunca como são na realidad(e).
Os zapatistas acreditam que a revolução continua viva e que há que viver em segredo, com medidas de segurança extremas e cuidados especiais com espiões ou traidores… E os europeus, crêem-se peças fundamentais de uma engrenagem especializada em pleno funcionamento, enquanto sonham conhecer o famoso subcomandante Marcos, líder do movimento…
Desta forma, Isusi cria um relato envolvente, reforçado pelos diálogos de tom falsamente misterioso, traçado num preto e branco contrastante que contrasta com os muitos “tons cinzentos”, dúbios, que os protagonistas assumem. Um relato que, qual reportagem, transmite uma visão em primeira-mão daquilo que se tornou uma das últimas revoluções da História, ao mesmo tempo que, ficcionando a vivência, consegue equilibrar-se entre um saudável romantismo incurável e o tom desiludido e descrente com que mostra a realidade dos últimos vestígios do zapatismo…
Um relato a que não falta paixão e distanciamento, utopia e amargura, ritmo e ironia, esta última reforçada pelo traço semi-caricatural e bem presente no derradeiro capítulo, que mostra que todos podemos ser “Marcos” e o quão estranho a ele pode ser aquilo que o define: o seu cachimbo.

(Texto publicado originalmente a 18 de Abril de 2009, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

29/09/2009

Zagor Especial #5 – O homem do Rifle

Moreno Burattini (argumento)
Ferri (desenho)
Mythos Editora (Brasil, Março de 2006)
135 x 178 mm, mensal, 276 p., pb, capa brochada


Confesso que não sou grande fã de Zagor, mas esta história, considerada por muitos a sua melhor aventura, surpreendeu-me agradavelmente. Descrevendo uma perseguição implacável a um assassino, numa autêntica caça ao homem, ao longo de centenas quilómetros de paisagens geladas cobertas de neve (e também ao longo de muitas dezenas de páginas), é não apenas uma boa história de Zagor, mas uma boa banda desenhada de aventuras, qualquer que seja o ponto de vista pelo qual seja considerada.
Para isso contribui em grande parte a presença discreta de Chico e Zagor, este longe do (quase super-)heroísmo habitual, aquele menos desastrado do que é costume, reduzindo assim alguns exageros habituais na série – que de certa forma constituem a sua imagem de marca - e permitindo que o autor explore mais e melhor quer a narrativa em si, que se torna mais credível, quer a psicologia dos restantes intervenientes, que são assim mais do que (habituais) figurantes.
A isso há que juntar uma escrita inteligente, ágil e desenvolta, com as peripécias a desenrolarem-se em bom ritmo, com diversas nuances na linha condutora da trama e com um final que se revela lógico e coerente mas que, apesar disso, consegue surpreender o leitor.

28/09/2009

Appoline

Jean David Morvan (argumento)
TBC (desenho)
Casterman (França, Setembro de 2009)
242 x 321 mm, 64 p., cor, capa cartonada


Resumo

Numa pequena cidade – que pode ser qualquer uma, até a nossa – um pasteleiro é selvaticamente assassinado mesmo à hora de fecho do seu estabelecimento, sem que haja qualquer sinal de roubo. Encarregado da investigação do crime, o inspector Wimms vai fazer uma incrível descoberta…

Desenvolvimento
De forma cáustica, Morvan e TBC abordam – embora involuntariamente – um tema que faz(ia) as primeiras páginas jornais e abria os noticiários na data de publicação deste álbum: o rapto e/ou violação e/ou sequestro de crianças/adolescentes/jovens, devido à descoberta, na Califórnia, no final de Agosto, de Jaycee Lee Dugard, 18 anos depois de ter sido raptada com apenas onze anos.
A história de Morvan, que começa apenas como um assassinato violento, previsivelmente devido a alguma vingança, com o avançar do inquérito de Wimms, um homem solitário, fechado sobre si mesmo – com problemas de relacionamento, portanto – revela outros contornos, bem mais complicados, mesmo que o inspector descubra e prenda o assassino. Só que, a história não termina assim pois Wimms, ao revistar a casa do suspeito, aparentemente recebe a sorte grande, se assim se pode dizer, pois nela encontra sequestrada (…?) Appoline, uma adolescente raptada anos atrás, com apenas 11 anos, que entretanto se transformou numa mulher atraente e manipuladora.
Chegado aqui, não vou adiantar muito mais, para não retirar à narrativa o efeito surpresa de que eu próprio beneficiei, acrescento apenas que Morvan, com a cumplicidade gráfica do esloveno TBC, desenvolve uma estranha narrativa em que explora (aliena…) o chamado Síndroma de Estocolmo, mostrando como – às vezes – a vítima não é quem parece…
Numa narrativa burlesca e mordaz, com um lado cruel, o traço semi-caricatural e algo rude de TBC, cheio mas pouco pormenorizado o que permite ao leitor um ritmo de leitura mais rápido e consequente com o tom da narrativa, assume bem as despesas, apesar de um ou outro exagero, ilustrando bastante bem facetas menos agradáveis e recomendáveis presentes, mas nem sempre visíveis, nos seres humanos. E não deixa de ser irónico, na sua representação iconográfica, o facto de Appoline ser a única personagem “bonita” (bem desenhada), em contraste com a fealdade dos restantes intervenientes.

A reter
- A forma como Morvan consegue subverter a ideia base apresentada no primeiro quarto da história – e na própria capa do álbum -, dando-lhe depois uma direcção totalmente diferente.

Menos conseguido
- Se o traço de TBC agarra e representa bem a ideia central inerente ao relato de Morvan, a mãe de Antoine surge, mesmo assim, demasiado caricaturada.

25/09/2009

Primal Zone – volume 1

Gabrion (argumento e desenho)
Delcourt (França, Setembro de 2009)
167 x 237 mm, 120 p., pb, capa brochada


Resumo

Descoberto aos 10 anos junto do cadáver da mãe, assassinada, foi julgado, considerado culpado e internado numa instituição especializada. Ao longo de 15 anos, foi alvo de todos os estudos e testes psicológicos imagináveis, mas o seu instinto de sobrevivência ensinou-o a dar as respostas esperadas, respeitando a hierarquia, tornando-se dócil, mostrando-se pronto a reentrar na sociedade como um elemento válido.
Só que, no seu interior, o demónio Ortog continua bem vivo e faminto, disposto a esperar pela sua oportunidade.

Desenvolvimento
Partindo daqui, Gabrion desenvolve uma narrativa tensa, num tom entre o policial e o terror, mergulhando no mais fundo da mente conturbada do protagonista, dividido entre várias personalidades: um frio e insensível assassino por contrato, um pacato vendedor de seguros ou o insaciável Ortog, sempre faminto de sangue e carne, de preferência humana.
Por isso, a par das actividades normais (?!) de cada um deles, assistimos também à sua luta interior, surgindo a realidade que tem lugar no nosso mundo a par das visões imaginárias de mundos ocultos povoados por demónios, entre as quais existe apenas uma ténue linha divisória que facilmente é atravessada pelo protagonista.
Gabrion nesta obra, como não podia deixar de ser, optou por um preto e branco duro e agreste, com as zonas escuras a predominarem, reflectindo a escuridão interior do hospedeiro de Ortog, onde se adivinha a influência do Frank Miller dos bons velhos tempos.

A reter
- A forma como Gabrion equilibra os vários registos da narrativa.

Menos conseguido
- Nalgumas sequências no mundo real, o traço está demasiado preso às referências fotográficas utilizadas.

Curiosidade
- Este álbum foi pré-publicado em tempo real no Facebook e encontra-se disponível gratuitamente em versão integral em http://www.bdprimalzone.net/, onde estão já disponíveis as primeiras pranchas do segundo tomo, a publicar em Setembro de 2010.
- O livro conclui com um caderno a cores de homenagem a Jorge Eish, amigo de Gabrion, que sofria de doença bipolar e se suicidou, que esteve na origem desta abordagem em quadradinhos à esquizofrenia.

24/09/2009

Morte e vida dos Dalton

Os Grandes Clássicos de Tex #8
Gianluigi Bonelli (argumento)
Galep (desenho)
Mythos Editora (Brasil, Abril de 2007)
135 x 177 mm, 274 p., pb, brochado

Lucky Luke #06 – Hors la Loi
Morris (argumento e desenho)
Dupuis (Bélgica, Janeiro de 1987)
215 x 299 mm, 48 p., cor, cartonado

Lucky Luke #53 – Os primos Dalton
René Goscinny (argumento)
Morris (desenho)
Edições ASA (Portugal, Maio de 2009)
222 x 295 mm, 48 p., cor, cartonado

Se a relação entre banda desenhada e História, assume as mais variadas formas, desde a total independência – quando a ficção impera - até ao retratar rigoroso e documental daquela, passando por obras ficcionais com base histórica, casos há, em que a verdade dos acontecimentos reais é adulterada – quando não completamente deturpada. Um daqueles acasos em que a vida é fértil – apesar de gostarmos de dizer que não para os valorizarmos – fez com que em poucas horas, na leitura de duas obras díspares, assistisse à morte e ressurreição dos tristemente célebres irmãos Dalton.


No primeiro caso, vi-os morrer às mãos de Tex, então ainda não pertencente ao corpo dos Rangers, na história “A Quadrilha dos Dalton”, originalmente publicada em 1951, em Itália, e uma das duas incluídas no oitavo tomo de “Os Grandes Clássicos de Tex” – a outra é “Os chacais do Kansas”.
Com o traço inconfundível de Aurelio Galleppini, é uma história típica de Bonelli, escrita ao correr da pena, com as situações limite a multiplicarem-se ao longo da narrativa, rica em confrontos e, neste caso, com uma grande liberdade no tratamento de factos históricos comprovados. Marcante pelo facto do índio Jack Tigre fazer nela a sua estreia absoluta, é um western tradicional em que Tex Willer assume mais uma vez o papel de juíz e carrasco, matando os chefes e alguns elementos da célebre quadrilha liderada por Bob, Emmett e Grat Dalton.

Curiosamente, poucos anos depois, corria o ano de 1954, esses mesmos irmãos Dalton - Bob, Grat e Emmett, mas também Bill – eram de novo mortos, num dos mais lamentáveis assassinatos que a banda desenhada já conheceu: isso aconteceu no álbum “Hors-la-loi”, sexto título das aventuras de Lucky Luke, então ainda assinado a solo pelo seu criador, Morris, com os fora-da-lei a perderem a vida às mãos do cowboy que viria a “disparar mais rápido que a própria sombra”, durante o ataque ao banco de Coffeyville, assim acompanhando (de longe…) a realidade histórica, como sempre aconteceu no mais célebre dos westerns humorísticos.

Entre estas duas interpretações, fica no ar a pergunta: quem os terá realmente abatido? Lucky Luke ou Tex Willer? E – talvez inspirado em Goscinny – acrescento: em que ano morreram, afinal?

Mas a história dos Dalton, no que a Lucky Luke diz respeito, não se ficaria por aqui. Quatro anos depois, em 1958, René Goscinny, argumentista do cowboy de fresca data, intuindo o enorme potencial cómico dos quatro irmãos feios, burros e maus, aparentemente gémeos mas de alturas diferentes, corrigia o erro de Morris, ressuscitando-os… sob a forma dos seus primos – Joe, Jack, William e Averell, no álbum “Os primos Dalton”.
Eram igualmente feios e maus e tornaram-se os grandes inimigos de Lucky Luke. E eram muito, mas muito mais burros, de uma imbecilidade a toda a prova, o que os tornou uma fonte inesgotável de gags e piadas irresistíveis, que começam logo na vinheta em que fazem a sua primeira aparição e se prolongam ao longo de todo este álbum – em que multiplicam os esquemas e estratagemas para tentar abater Lucky Luke e fazer jus ao nome de família que herdaram dos primos falecidos.
Neste álbum, em que Lucky Luke ainda fumava e bebia Coca-Cola, sinais de tempos idos e de uma doce ingenuidade que (também) a banda desenhada entretanto perdeu, como nos muitos mais em que viriam a participar, terminam atrás das grades, após muitas e boas gargalhadas proporcionadas ao leitor.

(Texto publicado originalmente no Blog do Tex, em 22 de Setembro de 2009)

22/09/2009

Le Tour des Géants

Nicolas Débon (argumento e desenho)
Dargaud (França, Maio de 2009)
242 X 320 mm, x p., cor, capa cartonada

Resumo
Há 99 anos, iniciava-se a 8ª Volta à França em Bicicleta, a primeira a levar os ciclistas aos Alpes e aos Pirinéus. A sua história, de forma ficcionada, é recontada em “Le Tour des Géants”, uma BD editado em França pela Dargaud.

Desenvolvimento
O tiro de partida teve lugar a 3 de Julho, no Pont de la Jatte, à noite, e foram 110 os ciclistas que lá se apresentaram, entre os quais os principais favoritos: Faber, “Tatave” Lapize (que viria a vencer), Garrigou ou Petit-Breton. Partiram para três duras semanas em cima das suas bicicletas, bem diferentes das apuradas máquinas que os atletas hoje utilizam, apesar de este ser um “Tour” marcado pelas inovações técnicas, entre as quais travões (“às vezes mesmo dois”), uma alavanca de velocidades que permitia mudar entre as duas disponíveis sem “pôr o pé no chão” e a redução de peso das bicicletas, algumas das quais “não passavam os 13 quilos”! Ao fim dos 4735 quilómetros da prova, percorridos em 28 dias e 15 etapas, algumas com mais de 400 quilómetros (!), chegaram apenas 41 destes verdadeiros “gigantes” da estrada.
Estas informações, que podem ser lidas nas primeiras pranchas desta obra de Nicolas Débon, nascido na Lorraine em 1968, formado em belas-artes e que hoje se dedica exclusivamente à ilustração e à BD, mostram o seu lado rigoroso e documental, que é equilibrado com apontamentos de humor que atenuam o seu peso.
No entanto, é antes de tudo dos homens que fala esta bela banda desenhada, feita a traço firme, semi-realista e elegante, e pintada com cores suaves, em tons de azul, cinzento e sépia, que definem locais e ambientes. É o lado humano dos ciclistas, a forma como ultrapassaram obstáculos naturais – chuva, frio, neve, quedas, estradas quase inexistentes - em épicos duelos com a natureza, mecânicos – avarias que eles próprios tinham que reparar (o vencedor terminou uma etapa em cima da jante!) -, pois esta era uma prova à qual não se aplicava o conceito de equipa, e humanos – ameaças, sabotagens, alimentação mal doseada -, a forma como se ultrapassaram a si próprias, aos seus medos e limitações, que constitui o essencial de um relato que prende e empolga, tanto os aficionados do ciclismo quanto o leitor normal.

A reter
- A boa convivência entre as vertentes documental e ficcional do álbum.
- Os tons utilizados para o colorir.

(Versão revista do texto publicado a 4 de Julho de 2009 no Jornal de Notícias)

20/09/2009

Romance da Raposa

Artur Correia (argumento e desenho)
a partir da obra de Aquilino Ribeiro
Bertrand Editora (Portugal, Setembro de 2009)
166 x 245 mm, 220 p., cor, capa cartonada

Na moda (de novo…) nos mercados francófonos e norte-americano, a adaptação em banda desenhada de obras literárias, quase sempre clássicas, vai tendo também alguma expressão entre nós. Um dos (bons) exemplos recentes é este “Romance da Raposa” em que Artur Correia transpõe para a 9ª arte o romance homónimo de Aquilino Ribeiro, depois de já o ter usado como base para uma (celebrada) série de desenhos animados de 13 episódios, nos anos 80.
Transpõe ou adapta, sim, o que pressupõe a introdução de diversas mudanças e alterações ou não surja a obra agora num meio narrativo com características próprias, completamente diferente da literatura, o que implica que o labor do argumentista/desenhador vá bem mais além do que o de simples ilustrador, que é o que vem referido na capa deste (belo) livro (enquanto obra e enquanto objecto) – pois é esse o formato escolhido pela editora, que até beneficia o traço de Correia.
Mantendo o espírito da obra, um conto para crianças protagonizado pela raposa Salta-Pocinhas, astuta e sagaz, que ao longo de toda a existência consegue enganar homens e bichos, sempre com o propósito de encher a barriga, Artur Correia, um dos poucos cultores de banda desenhada infanto-juvenil e humorística em Portugal, com a mestria que se lhe reconhece, transformou-a numa sequência gráfica narrativa desenvolta, ritmada pela planificação e pelos diálogos, concisos e do tamanho ajustado, a que se pode apontar apenas a opção (sempre discutível) de manter alguns termos e construções frásicas, hoje em desuso...
A isso, acrescente-se um traço expressivo, ágil, dinâmico – onde se notam influências do percurso paralelo do autor no cinema de animação – e, acima de tudo agradável e atractivo, recheado de pormenores divertidos, que contribui para fazer desta uma obra de leitura agradável e muito aconselhável, para miúdos… e graúdos!

A reter
- O ritmo, a vivacidade, o humor, a legibilidade...

Menos conseguido
- Numa edição cuidada e com óptimo aspecto, é de lamentar a omissão da biografia e da bibliografia do autor.

Curiosidade
- A primeira versão (incompleta) em banda desenhada do “Romance da Raposa” iniciada por Artur Correia, tinha como base os desenhos utilizados no desenho animado.
- Apesar de se intitular “Romance da Raposa”, na net é possível encontrar fotos de uma capa em que se lê “O Romance da Raposa”, inclusivé no site da editora.

(Versão revista do texto publicado no suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

18/09/2009

Sugestão de Leitura: As Tiras Clássicas da Turma da Mônica – vol. 4

Maurício de Sousa
Panini Comics (Brasil, Fevereiro de 2009)
203 x 203 mm, 130 p., pb, capa brochada


Já está disponível nas bancas e quiosques nacionais o quarto tomo das Tiras Clássicas da Turma da Mônica, que tem vindo a compilar por ordem cronológica as aventuras originais criadas por Maurício de Sousa para os jornais brasileiros no início da sua carreira, na década de 60 do século passado.Uma oportunidade rara de (re)descobrir como surgiram e se desenvolverem Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali e companhia, e de apreciar as diferenças em relação ao que são hoje.

BD para ver - The Nam

A galeria Mundo Fantasma, no Centro Comercial Brasília, no Porto, inaugura amanhã, dia 19, uma mostra com 20 originais de Wayne Vansant, pertencentes à série “The Nam”, que estão também à venda. Escrita por Doug Murray, ex-combatente e veterano do Vietname, e editada entre 1986 e 1993, mostra o conflito na óptica dos soldados que nele combateram (e em tantos casos, perderam a vida), abordando quer os factos históricos, quer o relacionamento dos soldados entre si ou com os habitantes locais.
Em Portugal, a série chegou a estar disponível no final da década de 80, nas revistas brasileiras “O Conflito do Vietnã” e “Aventura e Ficção”, da Editora Abril.
Para marcar o primeiro aniversário das novas instalações, a Mundo Fantasma celebra este fim-de-semana o seu Free Comic Book Day, pelo que todos os que visitarem a livraria receberão um comic grátis.
Duas outras exposições - portuguesas - estão já anunciadas para o mesmo local: Esgar Acelerado, de 10 de Outubro a 1 de Novembro, e Alex Gozblau, de 7 de Novembro a 6 de Dezembro.

17/09/2009

3 fois rien

Frédéric Féjard (argumento)
Benjamin Jurdic (desenho)
Casterman/KSTR (França, Agosto de 2009)
167 x 242 mm, 152 p., cor, capa cartonada

Resumo
Seth, recém-saído da cadeia, e Matt, seu amigo de sempre, com a ambiciosa companheira deste, Liza, planeiam roubar uma mala com diamantes a um advogado de poucos escrúpulos, o que deixará bem na vida este trio de delinquentes de quarta categoria. Só que o destino diverte-se a colocar alguma areia na engrenagem e, como é normal nestas coisas, o plano que parecia simples e infalível começa a complicar-se quando pelo meio surgem dois polícias corruptos que completam o seu salário com pequenas chantagens e protecção imposta a traficantes e prostitutas. E que se agravam ainda mais quando o dono dos diamantes roubados, por acaso (?!) um mafioso, põe na pista dos ladrões um assassino contratado.

Desenvolvimento
Uma vez concretizado o roubo, inicia-se então uma perseguição a vários níveis, com cada um dos intervenientes a fazer pela vida, tentando ao mesmo tempo enganar parceiros e adversários, com os diamantes algumas vezes a não estarem onde era esperado e a mudarem de mão várias vezes, até ao final que, se não é apoteótico, reúne grande parte dos intervenientes no mesmo local, esclarecendo o papel de cada um e culminando num final se não de todo surpreendente, pelo menos algo inesperado, em que o destino, o acaso ou o que lhe quiserem chamar, impõe mais uma vez a sua lei, como o fizera em vários momentos do relato.
Relato fresco e agradável que, ao longo de centena e meia de páginas mantém um ritmo alto, assente em cenas com mais acção e menos diálogos – apenas os necessários para a narrativa avançar – não deixando ao leitor muito tempo para se recompor das diferentes surpresas que Féjard lhe preparou, mas que nem assim tiram consistência e credibilidade à obra, apesar de personagens e situações não serem de toda originais.
Por seu lado, Jurdic, com um traço linha clara, caricatural e geralmente expressivo, com uma planificação variada em que se sucedem diferentes planos, privilegia a legibilidade em detrimento de belas pranchas, sendo por isso perdoáveis alguns pormenores de somenos importância, diluídos num conjunto bem servido em termos de cores, quase sempre quentes e fortes, que contribuem também para dar vida ao relato. Mas que falha de forma mais evidente nos momentos de maior tensão, em que se sente alguma falta de emoção.
Se a leitura é sempre um prazer – para mim, pelo menos - por vezes o corpo (ou a cabeça) pede algo ligeiro, agradável, que permita desfrutar no momento, ajudando a passar algum tempo, sem pretensões de maior. “3 fois rien”, cumpre bem esse propósito.

A reter
- O tom divertido do relato, a sensação de descompressão que a leitura provoca.

Menos conseguido
- Apesar de tudo, a história e as personagens, demasiado tipificadas, deixam a impressão de que já as conhecemos/vimos/lemos em qualquer lado…

16/09/2009

BRK – Tomo 1

Filipe Pina (argumento)
Filipe Andrade (desenho)
ASA (Portugal, Setembro de 2009)
190 x 274 mm, 80 p., cor, capa brochada com badanas

Em 2008, escrevi o texto seguinte (que agora actualizei) para o catálogo do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja:


"BRK" é o diminuitivo de break, designação de uma organização antiglobalização internacional na história mas simboliza também a vontade dos autores de "quebrar com o molde da BD em Portugal", justificando também o inglês pela vontade de "a de vender internacionalmente".
Anunciada no "BDJornal", onde foi publicada desde o #14, de Agosto/Setembro de 2006, (com excepção do #21), como "uma saga que vai deixar marcas na BD portuguesa", sendo necessário o passar do tempo para o confirmar, não tenho, no entanto, dúvidas de que, em muitos aspectos, "BRK" é (e será), sem dúvida, uma marca nestes tempos que vão correndo.
Sem ordenação de razões por importância, desde logo pela forma como foi sendo publicada, regularmente, em episódios, ao longo de vários meses, retomando um formato que durante muito tempo imperou, o da história em continuação, que prendia e deixava o leitor suspenso, ansiando pelo número seguinta da revista/jornal para conhecer cada nova peripécia da narrativa. E Filipe Pina, o argumentista, soube gerir bem este aspecto, conseguindo criar momentos de suspense em cada suspensão da história, surpresas, dúvidas, falsas certezas até, criando mais e novas razões para que a leitura fosse retomada posteriormente, dois meses depois.
"BRK", explicavam os seus autores no início, é a história de "David, um rapaz" (sub)urbano "de 17 anos, bastante diferente dos outros". Porque, ao contrário da maior parte dos adolescentes de hoje, é bastante consciente de si e do mundo, responsável e interessado, com vontade de mudar e provocar mudanças. Embora como quase todos os adolescentes - só os adolescentes? - perdido num mundo em constante mudança, cada vez menos propício à actuação individual e menos receptivo aos que querem fazer inflectir o curso dos acontecimentos globalizadores.
O retrato traçado de David - bem como daqueles que lhe são próximos - é bastante realista e credível. Para além de David ser bem trabalhado a nível psicológico, o tom realista é aprofundado pelo facto de os cenários da acção serem também reais: do Porto a Almada ou Lisboa, e de algumas situações - a repórter da RTP que faz a reportagem do atentado, … - apelarem para o Portugal real e existente, que todos conhecemos e onde tudo se passa. Realismo extendido pela ancoragem à realidade actual - para lá das questões e vivências da adolescência, a boleia dos perigos do terrorismo mundial e das questões antiglobalização. Destes dois tópicos, alimenta-se boa parte da trama; do primeiro, sobram razões para as duas situações mais espectaculares da BD até agora: o atentado no "MkDonaldes" (é mesmo assim), na Avenida dos Aliados, no Porto, logo nas primeiras pranchas, e a (surpreendente) falta de gravidade, que encerra o 3º capítulo.
A contrastar com estes dois actos espectaculares, que por isso ganham maior relevância, o tom do resto da narrativa é voluntariamente contido, pausado, lento até, feito principalmente de diálogos e monólogos, para aprofundar dúvidas e sentimentos, que justificam as hesitações e as acções. Como em qualquer ser humano.
Tom, já escrevi, apenas entrecortado com as tais duas cenas espectaculares e pela morte, a tiro, de um familiar de David, na página 67, a última que eu li… E que, apesar de menos impactante que as outras duas citadas, de um ponto de vista global - tem mais condições para provocar mudanças e inflexões, que, com sinceridade, fico a agurdar com interesse, porque interage directamente com David, protagonista mas não herói - afirmando, mais uma vez, o lado humano da narrativa, que é sobre gente, não sobre sítios ou grupos.
Graficamente, em "BRK", Filipe Andrade percorre caminhos que cada vez mais autores experimentam e que eu acredito cada vez mais serão seguidos neste milénio há pouco iniciado. Fazendo a síntese entre a banda desenhada tradicional franco-belga (em especial no que à forma narrativa diz respeito), os comics norte-americanos (de super-heróis, que com certeza, inspiram as cenas mais espectaculares e arrojadas) e os mangas japoneses (no desenho da figura humana e na expressividade dos rostos), numa mescla harmoniosa que assenta numa planificação que embora algo tradicional, não deixa de ser variada no que a ângulos e planos diz respeito, e plenamente capaz de ajudar a marcar o ritmo que interessa aos dois autores.

A abrir este texto, fazia uma ressalva: Escrevo conhecendo apenas as primeiras 67 pranchas de "BRK". Desconheço, portanto como a história vai terminar. Mais, fico suspenso numa altura em que uma inflexão importante na narrativa, até no seu tom, é introduzida.
Agora, ano e meio depois, conhecendo o final deste primeiro volume, acho que pouco há a acrescentar. Confirma-se que o tom inicial do relato, que privilegiava os relacionamentos e as dúvidas de David foi progressvamente evoluindo até transformar num relato de acção, com um toque até de antecipação científica. A surpresa final, acrescentada a algumas mudanças significativas, deixa tudo em aberto para o segundo tomo. Resta saber qual o caminho que os dois Filipe vão seguir e esperar que o conheçamos mais depressa do que o tempo que este primeiro álbum demorou a ver a luz do dia.

A reter
- O tom certo dos diálogos.
- O ritmo da obra
- A forma como os autores prendem e mantem o interesse do leitor.

Menos conseguido
- O (muito) tempo que transcorreu entre a suspensão da publicação no BDJornal e a edição em álbum.

Curiosidades
- Quando o restaurante de fast-food do Porto explode, vêem-se na imagem claramente as letras “aldes” (p. 8); quando o facto é referido no noticiário da TV (p. 16), é designado por “MkDonalds”. Não sendo raros – longe disso – os erros – escritos, de pronúncia, … - nas nossas televisões, afinal em que ficamos? MkDonalds ou MkDonaldes?
- Personagens reais em obras de ficção, geralmente são uma mais valia. E o que acontece com a aparição da reporter Rita (Marrafa) de Carvalho. Tornada mais credível por possuir um dos tiques da maior parte dos reporteres televisivos portugueses, ou seja, fazer perguntas em catadupa, sem deixar o entrevistado responder. Pena é que tão poucos respondam como o comandante dos bombeiros faz em BRK…!
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