18/02/2010

Quartier Lontain + Un ciel radieux


















Quartier Lointain - Édition intégrale
Jirô Taniguchi (argumento e desenho)
Casterman (França, Novembro de 2006)
173 x 242 mm, 400 p., cor (6 p.) e pb, cartonado

Colecção écritures
Un ciel radieux
Jirô Taniguchi (argumento e desenho)
Casterman (França, Setembro de 2006)
172 x 240 mm, 300 p., pb, cartonado


Escreve Taniguchi no posfácio de "Un ciel Radieux": "Acredito que, durante toda a nossa existência, alguns acontecimentos, certas experiências, são capazes de nos fazer mudar a nossa forma de viver".
E é isso que ele transmite nestes dois livros, que têm (pelo menos) um ponto em comum: acontecimentos extraordinários, ao nível da memória e da consciência.
Em "Quartier Lontain", o protagonista, Hiroshi, após um desmaio, acorda na sua cidade natal, regressando à sua adolescência, embora com os conhecimentos e a sensibilidade dos seus 40 anos.
Em "Um ciel radieux", na sequência de um acidente de automóvel, um adulto daquela idade, (o espírito de) Kazuhiro Kobota, que guiava uma carrinha, acorda aprisionado no corpo adolescente de Takuya Onodéra, que guiava uma motocicleta.
No primeiro caso, Hiroshi consegue o que muitos, com certeza, ansiamos: voltar ao passado, voltar atrás na vida, seja para viver de novo momentos (mais) alegres, seja para corrigir erros passados. De regresso de uma viagem de negócios, após uma noite bem regada, sem bem saber como, em vez de apanhar o comboio de regresso a casa, em Tóquio, apanha uma composição que o leva à sua cidade natal. Uma vez chegado, para fazer horas, decide visitar a campa da mãe no cemitério. E é lá que, de maneira inexplicável, após um breve desmaio, regressa ao seu passado, reencontrando-se dentro do seu corpo de 14 anos, embora mantenha a capacidade intelectual, a memória e os conhecimentos dos seus quase 50 anos de vida.
Nada de especial, dirão muitos, e é verdade, pois a ideia não é nova. E inicialmente o tratamento dado por Taniguchi também não o parece, pois o seu protagonista, atónito com o que se passa, incapaz de compreender o que lhe aconteceu, surpreso por reencontrar a mãe, falecida há mais de 20 anos, e a irmã mais nova, começa por explorar (mais instintiva que conscientemente) a situação, tornando-se facilmente um bom aluno, brilhando no capítulo desportivo e aproveitando esses dois factores para se aproximar da rapariga mais bonita do liceu. Mas continuando a leitura, vemos que, ao contrário de muitos autores que têm optado por esta via mais simples (e comercial), Taniguchi, com uma narrativa serena e intimista, dá mais uma vez mostras da grande sensibilidade e do sentido poético que já revelara em obras como “L’homme qui marche” ou “Le journal de mon pére” (ambos da Casterman). E, por isso, Hiroshi divide-se entre a felicidade da nova existência e o medo de que as alterações que provoque no seu passado venham a modificar o presente que vivia antes do incidente. Indecisão que desaparece quando se apercebe que se encontra a poucas semanas do dia em que o seu pai abandonou para sempre o lar. E com a sua nova percepção da realidade, capaz de compreender o sentir e as reacções dos adultos, decide tentar evitar que a sua família se desmembre. Mas será possível mudar o curso do tempo que corre?
O relato é lento, para aprofundar os sentimentos das personagens, e nos levar a meditar nas consequências das escolhas que fazemos ao longo da vida. E é também amargo, quando Hiroshi descobre que, afinal, o seu pai abandonou a família porque chegou ao limite, porque quis soltar amarras e perseguir sonhos - o que tão poucas vezes somos capazes de fazer - ou quando compreende que a sua mãe apenas está grata por o inevitável ter demorado tanto a acontecer.
Em "Un ciel radieux", o conflito que era interior no caso de Hiroshi, vive-se a dois quando o espírito de Takuya tenta recuperar o corpo que o espírito de Kubota ocupa. Isto porque após o acidente rodoviário, ambos entraram em coma e, ao fim de algumas semanas, enquanto o corpo de Takuya recomeçava a viver, o de Kubota era dado como morto.
Começa então uma vivência difícil, preso no corpo de outro, no seio de uma família que não conhece - uma família que não o reconhece - enquanto vai progressivamente crescendo o conflito interior pela posse do corpo. Conflito ao nível dessa posse e ao nível de representantes de gerações diferentes - bastante diferentes. Conflito que, a certo ponto se torna cooperação, no encaminhamento para um final feliz - se assim se pode designar a morte - que dá corpo à afirmação de Taniguchi citada no início deste texto.
Antes disso, no entanto, vamos vendo como Kubota, que escondia alguns segredos, se convence que a situação presente é provisória e que a deve aproveitar para mostrar e dizer aquilo que em vida nunca conseguiu: expressar o seu amor pela sua mulher e a sua filha. Ao seu lado estará Kaori, namorada de Takuya, que, aceitando a estranha situação, o ajudará a tirar o máximo partido daquela oportunidade.
Mais uma vez o relato de Taniguchi decorre num ritmo lento, com os pontos de vista a multiplicarem-se durante os muitos diálogos que ele contém, sendo surpreendente como o autor consegue transmitir de forma tão forte as emoções presentes em muitas situações, nomeadamente no abraço de Takuya(/Kobuta) a Kaori ou no (re)encontro (e na despedida) deste último com a sua família.
Ambos os relatos são viagens (fantásticas) pelo mais profundo do ser humano, pelos seus sonhos, medos e ambições, pela forma como nos relacionamos (nos damos) com os outros e pela conflitualidade de sentimentos e desejos que é a vida.

(Versão revista e actualizada do texto originalmente publicado no BDJornal #18 de Abril/Maio de 2007)

17/02/2010

King of the Royal Mountain nasceu há 75 anos

Se ainda fosse vivo, o circunspecto e implacável sargento King da Real Polícia Montada canadiana, que “apanhava sempre o seu homem”, criado por Zane Grey e Allen Dean, completaria hoje 75 primaveras.
No entanto, a sua existência, narrada em pranchas dominicais e tiras diárias, seria relativamente curta, pois os seus dias terminariam vinte anos mais tarde, não às mãos ou sob os tiros de um dos muitos bandidos que enfrentou, mas por uma decisão editorial motivada – como sempre – pela queda da sua popularidade.
Inicialmente uma adaptação de um romance do próprio Zane Grey, “King of the Royal Mountain” começou a ser distribuído pelo King Features Syndicate nos jornais norte-americanos a 17 de Fevereiro de 1935, sob a forma de prancha dominical, desenhada por Allen Dean, que pouco mais de um ano depois, a 2 de Março de 1936, iniciaria também as suas aventuras em tira diárias, entregando a prancha dominical a Charles Flanders. A partir de 1938 Dean seria substituído por Jim Gary, que um ano depois se tornaria também responsável pelas pranchas dominicais, assistido pontualmente de forma anónima por Fred Harman (futuro criador de Red Ryder), tendo conseguido humanizar as personagens e criar histórias que prendiam os leitores.
“King of the Royal Mountain”, que esteve na origem de quatro adaptações cinematográficas entre 1936 e 1942, era um western atípico, com histórias lineares, que tinha por cenário as inóspitas regiões geladas canadianas, marcadas pelo verde dos pinheiros afilados, o azul das torrentes caudalosas e o branco imaculado da neve que tudo cobria, que contrastavam com o vermelho do uniforme dos membros da polícia montada, por isso celebrizados sob o apodo de “casacas-vermelhas”, e que se distinguiam pelo seu código honra particular que defendia o recurso a armas ou à violência apenas em última instância. O protagonista era o circunspecto sargento King - cujo apelido, o único nome que lhe foi conhecido, fez com que a tradução portuguesa do Mundo de Aventuras e de outras publicações da Agência Portuguesa de Revistas o transformasse no Rei da Polícia Montada (título que também viria a servir a Red Canyon) - a quem nunca se viu um sorriso ou ouviu uma piada, nas suas perseguições implacáveis a ladrões e assaltantes de comboios, durante as quais conheceria Betty Blake, sua eterna noiva, e o seu irmão Kid, que muitas vezes o acompanhou.
A banda desenhada regressaria ao território canadiano e à temática dos “casacas-vermelhas” na década de 50, com o tal Red Canyon, criação de André Gosselin, nas aventuras que, recorrentemente, Tex Willer partilha com Jim Brandon, ou, já nos anos 1990, de forma mais consistente, nos álbuns franco-belga coloridos da série “Trent”, escritos por Rudolphe e desenhados por Léo.


(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 17 de Fevereiro de 2010)

16/02/2010

Os Passageiros do Vento #6 –A Menina de Bois-Caïman

Livros 1 e 2
François Bourgeon (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Outubro de 2009 + Janeiro de 2010)
238 x 320 mm, cor, 88 + 72 p., cor

Os Passageiros do Vento foram uma das mais marcantes sagas em banda desenhada dos anos 1980, que ao longo de cinco tomos, traçaram um notável fresco da vida na Europa e nas colónias na segunda metade do século XVIII, mais do que narrar as aventuras (e desventuras) de Isa, uma jovem mulher emancipada e libertária, muito à frente do seu tempo. Saga essa que terminava de forma completamente aberta, deixando Isa nas Caraíbas.
Um quarto de século depois, François Bourgeon, o seu artesão, decidiu voltar às personagens com que nos fez felizes. E se esta sequela surge dividida em dois tomos, por motivos mediáticos e comerciais – não por acaso, ambos as edições indicam o numeral #6 e em algumas edições, como na espanhola, a numeração das páginas do segundo livro começa onde terminou o primeiro – ela constitui um todo indivisível. Mesmo que uma outra Isa, bisneta da primeira, protagonize as primeiras 50 pranchas, desvendando as outras noventa o destino da sua bisavó, no Luisiana, nas margens do Mississipi, território que haveria de ser norte-americano e de sonho, mas que então era um inferno autêntico, assombrado pela Guerra da Secessão e pelas lutas pela emancipação dos negros.
Porque mais uma vez, Bourgeon, cronista de eleição, aproveita o pretexto para nos pintar de forma crua e realista, com a mestria que lhe é reconhecida, o quotidiano desses tempos conturbados.
Porque se Isa é agora quase centenária e se por Bourgeon passaram vinte e cinco anos, ambos continuam iguais a si próprios. Ela, rebelde, decidida, amante da vida e da liberdade. E contraponto de uma sociedade hesitante, presa a leis obsoletas, derrotada pelos ideais que tentou agrilhoar. Ele, um narrador consistente e eficaz e um desenhador rigoroso na reconstituição histórica, hábil na composição das pranchas e inconfundível na representação de belas mulheres, pese embora o facto de o seu traço estar menos espontâneo, mais preso ao registo fotográfico que lhe serve de base.
Voltada a última página, cerrados os livros, resta a pergunta: precisávamos de saber o que tinha acontecido a Isa depois da última vez que a encontráramos, tantos anos atrás? Francamente, não. Mas ainda bem que Bourgeon nos quis contar o seu destino!


A reter
- Já ficaram explanadas atrás as principais qualidades deste diptíco, mas para que não restem dúvidas, este relato é/será sem dúvida um dos grandes lançamentos editoriais aos quadradinhos em 2010.

Menos conseguido
- São aspectos menores e formais, a que a editora portuguesa é alheia, mas a verdade é que o facto da tradução das frases em crioulo vir agrupada ns páginas finais de cada volume rouba ritmo e atrapalha a leitura bem mais do que se viessem em rodapé nas respectivas pranchas…

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 13 de Fevereiro de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

15/02/2010

Liberty

Warnauts & Raives (argumento e desenho)
Casterman (França, Janeiro de 2010)
240 x 320 mm, 64 p., cor, cartonado


Resumo

Zaire, 1974. Nas vésperas do combate de boxe “do século” entre Mouhamed Ali e George Foreman, Acabada de completar 16 anos, Tshiland, ainda uma jovenzinha, já uma bela mulher, deixa-se seduzir pelo manager do grupo de James Brown, de passagem pelo evento, e acaba grávida.
Para evitar que o escândalo se abata sobre o seu pai, chefe de segurança de um dos principais hotéis locais, tem que sair do seu país, o que consegue com o auxílio de Edouard, um diplomata francês, e de Mike, um dos músicos de Brown - ambos sensíveis aos encantos da jovem - que lhe conseguem um cartão de residência para os Estados Unidos, onde acabará por dar à luz uma menina, a quem põe o nome de Liberty.

Desenvolvimento
E é Liberty e a sua mãe – ou Tshiland e a sua filha? – ou, melhor ainda, Tshiland e Liberty, mulheres de corpo inteiro e de personalidade forte, vamos acompanhar, vivendo por seu intermédio alguns dos grandes momentos da luta dos negros pelo reconhecimento dos seus direitos nos EUA, dos Black Panters até à eleição de Barack Obama, passando pela guerra do Vietname ou pelo atentado contra as Torres Gémeas, o que faz deste relato um curioso álbum que, de certa forma, se pode apodar de relato histórico.
Porque é a História – parte substancial dela, vista pelos olhar (diferente…) dos negros – que serve de fundo a um relato, onde o desejo de emancipação e de afirmação e a busca de um rumo, primeiro por parte de Tshiland, depois por Liberty, prendem e cativam o leitor. Até porque o tom escolhido, está longe da lamúria ou do panfletário, optando antes por realçar a força (interior) e a vontade (própria) de cada uma, apesar de alguns (muitos) percalços e até retrocessos. Até que o destino cumpra o seu papel. Porque se é histórico (na acepção indicada), este relato é também – antes disso, sem dúvida – sobre pessoas e sentimentos.
Em paralelo com as histórias das duas mulheres, desvendadas aos poucos, com recurso a alguns flashbacks, descobrimos também um pouco mais sobre Edouard e o seu amor (platónico) por Tshiland, e sobre Mike, ex-combatente do Vietname, de onde trouxe a dependência da droga, que mina a sua relação com a bela negra. São eles, com elas, que em off vão fazendo avançar a narrativa, por vezes de forma algo lenta dada a extensão de alguns dos pensamentos que, no entanto, são fundamentais para a boa definição das personagens perante o leitor.
Do traço da dupla Warnauts e Raives, salientam-se os retratos das protagonistas, mais duas belas e sensuais criações para a sua já longa galeria, e a excelente aplicação das cores no tratamento de cenários e paisagens.

A reter
- A forma como Warnauts e Raives continuam a tratar as mulheres nas suas bandas desenhadas - e já agora nos soberbos esboços disponíveis aqui.
- O trabalho de cor de Raives.
- A forma como esta dupla traça a “história negra” dos EUA, através de uns quantos momentos, ilusoriamente soltos, mas elos de uma mesma cadeia comum.

Menos conseguido
- A lentidão do relato nalguns momentos.

Curiosidades
- Como desde há 20 anos, Warnauts e Raives têm uma forma de trabalhar diferente do habitual: depois de longas discussões, o primeiro escreve o argumento; de seguida, ambos trabalham no desenho, para no final Raives aplicar a cor.

12/02/2010

Peanuts, obra completa – 1959-1960


Charles M. Scuhlz (argu-mento e desenho)
Introdução de Whoopi Goldberg
Afron-tamento (Portugal, Novembro de 2009)
220 x 174 mm, 324 p., pb, cartonado com sobrecapa com badanas

Em 2004, a editora norte-americana Fantagraphics Books lançava o primeiro tomo de um ambicioso projecto: a edição integral dos "Peanuts" de Charles M. Schulz, anunciando-o como "o mais aguardado e ambicioso projecto editorial da história das tiras diárias americanas".
Dos 25 volumes previstos, lançados a uma média de dois por ano, estão já editados 12, devendo a edição ficar concluída em 2016. Cada volume, com mais de 300 páginas, reúne por ordem cronológica, recuperadas e restauradas, todas as tiras diárias e pranchas dominicais publicadas nos jornais ao longo de dois anos, com excepção do primeiro que abarca o período 1950-1952.
O notável arranjo gráfico da colecção é da responsabilidade de Seth, também ele autor de BD, sendo cada volume prefaciado por personalidades de diferentes áreas que de alguma forma foram influenciadas pela obra de Schulz, como Matt Groening, criador dos Simpsons, a cantora Diana Krall, a actriz Whopi Goldberg ou a ex-tenista Billie Jean King.
Em 2006, a Afronta-mento, a exemplo do que têm feito outras editoras um pouco por todo o mundo, lançou os dois primeiros tomos, em versão portuguesa “Peanuts – Obra completa”, tendo até ao momento editado cinco volumes, o último dos quais em Dezembro último, correspondente ao período 1959-1960. Este volume, dedicado a um período em que os alicerces da série já estavam lançados e Schulz já tinha encontrado o seu caminho, inclui, entre muitas outras, as tiras dedicadas ao nascimento de Sally, a irmã de Charlie Brown (aqui bebé mas que em pouco tempo atingirá a idade dos outros Peanuts), a aparição inaugural da Grande Abóbora, a primeira consulta da “psiquiatra” Lucy e, claro, a página que Schulz sempre referiu como a sua favorita, a prancha dominical de 14 de Abril de 1960, aqui reproduzida.
Para este ano, a Afronta-mento prevê lançar em Maio o sexto tomo, referente a 1961-1962, com a caixa arquivadora para os volumes #5 e #6, e em Outubro os volumes 7 e 8 com a respectiva caixa.

(Versão revista e aumentada do texto publicado a 6 de Fevereiro de 2010 na revista NS, distribuídas aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

Schulz e os Peanuts, uma cronologia

1922
26 de Novembro – Charles Monroe Schulz nasce em Minneapolis, no Minnesota, EUA

1943
É incorporado no exército norte-americano, participando na libertação da França e na ocupação da Alemanha

1946
Professor no Art Instruction, Inc.

1947
Publica as primeiras ilustrações humorísticas no Saturday Evening Post e Li’l Folks no Saint Paul Pionner Press

1950
Assina com o United Features Syndicate
2 de Outubro – Publicação da primeira tira diária de Peanuts, em 8 jornais norte-americanos
1951
Casa com Joyce Halverson

1952
6 de Janeiro – Publicação da primeira prancha dominical de Peanuts
Lançada a primeira colectânea
A tira chega a mais de 40 jornais norte-americanos

1955
Recebe o Reuben Award da National Cartoonists Society para melhor cartoonista do ano
Uma câmara da Kodak é o primeiro produto comercial a utilizar a marca Peanuts

1958
É comercializado o primeiro artigo de merchandising dos Peanuts: bonecos de Charlie Brown, Snoopy, Linus e Lucy
A tira diária é publicada em 355 jornais norte-americanos e 40 estrangeiros

1962
Os Peanuts são considerados A Melhor Tira de Humor do Ano pela National Cartoonists Society

1964
É o primeiro autor a receber um segundo Reuben Award

1965
Os Peanuts fazem a capa da revista Times
Exibição da primeira animação “A Charlie Brown Christmas”; distinguida com um Emmy e um Peabody

1967
Musical na Brodway: You’re a Good Man, Charlie Brown
Ronald Reagan, governador da Califórnia, institui 24 de Maio como o dia “Charles Schulz”

1972
Divorcia-se de Joyce Halverson Schulz

1973
Casa com Jean Forsyth Clyde
Recebe novo Emmy por A Charlie Brown Thanksgiving, décima animação dos Peanuts

1975
A tira diária é publicada em 1480 jornais norte-americanos e 175 estrangeiros, chegando a 90 milhões de pessoas
Novo Emmy, por You’re a Good Sport, Charlie Brown

1980
Life Is a Circus, Charlie Brown conquista mais um Emmy

1983
Novo Peabody, por What Have We Learned, Charlie Brown?
Os Peanuts surgem no Guinness Book of World Records como a primeira tira vendida a mais de 2 000 jornais

1990
Recebe a Ordem das Artes e das Letras do ministro francês da Cultura, Jack Lang, durante uma exposição da sua obra no Museu do Louvre
1992
Condecorado com a Ordem de Mérito pelo governo italiano

1996
Inaugura a sua estrela no Passeio da Fama, em Hollywood

1999
A tira diária é publicada em 2600 jornais de todo o mundo e lida por 300 milhões de pessoas
14 de Dezembro - Anuncia o fim dos Peanuts, por sofrer de um cancro do cólon

2000
3 de Janeiro – Publicação da última tira diária dos Peanuts
2002
Inauguração do The Charles Schulz Museum and Research Center em Santa Rosa, Califórnia

2004
A Fantagraphics inicia a publicação de “Peanuts – Obra integral”

2007
A prancha de 10 de Abril de 1955, assinada por Charles Schulz, mostrando Charlie Brown sozinho no campo de basebol, debaixo de um dilúvio, é arrematada num leilão por cerca de 76.500 €

(Texto publicado originalmente na revista NS, distribuída aos s´bados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

10 Anos sem Charles Schulz

Há dez anos, a 12 de Fevereiro de 2000, falecia Charles Schulz, o criador dos Peanuts, possivelmente a banda desenhada que mais autores (e não só) influenciou. No dia seguinte, era publicada nos jornais a última prancha dominical desenhada por si. Em Outubro próximo, passam 60 anos sobre a estreia da sua criação.

“Quem te disse que sabias jogar basebol? És o pior do mundo! És uma nulidade! És uma desgraça!”, afirma alto e bom som Lucy, dirigindo-se a Charlie Brown, na tira de 7 de Setembro de 1959. Logo de seguida, Patty reitera: “Não prestas para nada! És abaixo de zero! És pior do que mau! És…”
Era Charlie Bown, em todo o seu (total desprovimento de) esplendor, ou não seja ele, possivelmente, o (anti)-herói mais nulo da história, sem quase nenhum êxito ao longo de 50 anos de quadradinhos. Mas foi com ele – em torno dele, mais exactamente – que Charles Monroe Schulz desenvolveu uma das mais notáveis galerias de personagens e um dos mais espantosos universos das histórias em quadradinhos, um autêntico “microcosmos”, como os classificou o insuspeito Umberto Eco, “uma pequena comédia humana, tanto para o leitor inocente como para o leitor sofisticado”.
E estes dois níveis de leitura (pelo menos…) são um dos segredos do sucesso dos pequenos “amendoins” (tradução literal de “peanuts”, nome imposto pelo United Features Syndicate, que Schulz sempre abominou) que ao longo de quase cinco décadas e das 17.897 tiras diárias e pranchas dominicais integralmente escritas e desenhadas por ele mantiveram um assinalável nível de qualidade, chegando, no seu apogeu, a mais de 2.500 jornais de todo o mundo, estando traduzidos em 25 línguas (incluindo o latim!) e em 75 países, tendo os seus livros vendido mais de 300 milhões de exemplares.
Neles, aquele leitor simples citado por Eco, diverte-se com os sucessivos fracassos de Charlie Brown – a lançar um papagaio, junto dos amigos, a jogar basebol, a chutar uma bola de futebol americano ou a conseguir chegar à fala com a rapariguinha de cabelo ruivo – repetidos à exaustão, sempre com desfechos diferentes, sempre com resultados iguais: o falhanço. E também com a maldade de Lucy, a sua indiferença como psiquiatra, o sempre surpreendente Snoopy, tão capaz de se portar como um cão tanto quanto como um ser humano, dormindo no tecto da casota, escrevendo à máquina romances de sucesso, assumindo a identidade de um ás da aviação da I Guerra Mundial em luta contra o terrível Barão Vermelho, o piano de Schroeder, o cobertor de Linus, o nonsense de muitas situações...
Quanto ao leitor sofisticado – embora se divertisse igualmente com as situações atrás descritas – apreciaria igualmente como com um grupo de crianças – a série esteve para se chamar “Li’l folks” (“gente pequena”) – e um cão, Snoopy, que progressivamente ocupa o lugar de consciência crítica do conjunto, Schulz foi capaz de criar um retrato tão próximo quer do seu mundo, quer do mundo adulto. Porque dotou cada um com características do ser humano, inspirando-se para isso em familiares e amigos e vertendo muito da sua própria vida para as situações retratadas nos quadradinhos. Ele próprio o afirmou: “desenhei os Peanuts pela mesma razão que Beethoven compôs as suas sinfonias, porque era a minha vida”. Para o pior e para o melhor pois Schulz era propenso a crises de depressão e de amarga solidão que frequentemente influenciaram a tira. Por isso, se os Peanuts podem ser ternos, meigos, engraçados, amigos, interessados, disponíveis ou altruístas, também conseguem ser maus, egocêntricos, cruéis, amargos, egoístas, ressentidos ou injustos.
Esta dualidade, está também presente ao nível das temáticas. Se por um lado são os pequenos nadas quotidianos que ocupam Charlie Brown e os seus companheiros, por outro, são recorrentes na série – tratados de forma enganadoramente leve e divertida - temas como o crescimento, a velhice, a morte, o futuro (assustador), os sonhos, as relações, as ambições… Para além disso, ao longo dos anos, Schulz foi capaz de actualizar a série, introduzindo nela os avanços e as invenções que o homem foi criando, como a televisão, o microondas ou a chegada à Lua, em que Snoopy precedeu os astronautas da Apolo XI e mesmo… o gato do vizinho!
Graficamente, se se pode classificar de minimalista o traço de Schulz, já que “os seus desenhos não passavam de rabiscos, meia dúzia de traços pouco mais elaborados do que as figuras de pauzinhos das crianças”, como escreve Walter Cronkite na introdução do segundo tomo de “Peanuts – Obra Completa”, e se muitas vezes os fundos das vinhetas se encontram vazios ou quase, a verdade é que o seu desenho é extremamente legível e expressivo, funcionado com toda a auto-suficiência nas muitas tiras sem qualquer palavra.
Finalmente, Schulz deixou que os seus heróis se libertassem do papel, saltando para o cinema de animação em mais de quatro dezenas de bem conseguidas longas-metragens, um musical da Brodway ou um espectáculo no gelo, transformando-os em apetecíveis marcas que serviram para publicitar tudo o que se possa imaginar e também para apoiar as causas que julgou meritórias. Por isso dificilmente algum de nós se pode gabar de nunca ter tido em sua casa um ou outro artigo com Snoopy ou Charlie Brown estampados, mesmo que nunca tenha lido qualquer das suas tiras.
O que só se pode lamentar porque, pondo tudo o mais de lado, lembra Matt Groening, o criador dos Simpsons, fica “o que interessa: cinquenta anos de Peanuts propriamente ditos, a brilhante, atormentada e genuinamente divertida obra-prima de Schulz, impregnada de alegria e mágoa”. E na qual nos podemos reconhecer, seja nos fracassos de Charlie Brown, na irritabilidade de Lucy (que nunca tem dúvidas e raramente se engana…), na insegurança do intelectual Linus, no virtuosismo de Schroeder, na dificuldade comunicacional de Woodstock e, pontualmente – felizes de nós – na multiplicidade de Snoopy porque, ainda segundo Cronkite, “o maior dos truques mágicos de Schulz foi dar vida a todas aquelas criaturas maravilhosas com as quais povoou o nosso mundo e alegrou os nossos dias”.
Foi desse mundo, no qual teve “a felicidade de desenhar Charlie Brown e os seus amigos durante quase 50 anos”, realizando completamente os seus “sonhos de criança”, que Schulz se despediu, no último quadradinho que desenhou.

E sem dificuldade podemos fazer nossas as suas palavras: “Charlie Brown, Snoopy, Linus, Lucy… nunca os poderei esquecer…”



(Texto publicado originalmente na revista NS, distribuída aos s´bados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

11/02/2010

Tarzan
















Pranchas Dominicais de Russ Manning
Vol. 1 – 1968-1970
Vol. 2 – 1970-1972
Bonecos Rebeldes (Portugal, Setembro de 2007 e Fevereiro de 2008)
240 x 340, 136 p., pb, brochada com badanas

Entre muitas leituras, incluindo algumas grandes obras que tenho compartilhado com os que se dão ao trabalho de me lerem, confesso que a que me deu maior prazer nos últimos tempos foi este Tarzan de Russ Manning.
Não por se tratar de uma excelente edição da Bonecos, em formato italiano, com excelente reprodução da arte de Manning.
Não pelo traço vigoroso, dinâmico e bem proporcionado do autor, que produziu o "mais limpo" Tarzan de sempre, rigoroso na reprodução de veículos, fantástico no tratamento dado a homens (e belíssimas mulheres) e animais, capaz de (quase) nos fazer sentir a humidade das verdejantes selvas africanas, o calor abrasador dos desertos, o nevoeiro denso dos mundos misteriosos que Tarzan descobre, os cheiros intensos de homens e animais, capaz de transmitir dor, raiva, fúria, alegria ou surpresa pela simples expressão dos rostos.
Não foi, ainda, pelas histórias, bem ritmadas e planificadas, que combinam episódios quase ecológicos com aventura pura, o estranho fascínio da selva com os mundos fantásticos que Burroughs imaginou, o confronto desigual entre as civilizações branca e negra.
Foi, apenas (?!), tão só (?!) porque nele reencontrei um dos meus heróis de juventude, o seu universo forte e sedutor, os brados arrepiantes de Tarzan, como "Kreegah!" ou "Bundolo", que preencheram muitas das minhas brincadeiras; porque nele relembrei imagens ou sequências completas, fortes e marcantes, que a minha memória guardou, como os combates com os homens-formiga, os homens primitivos de Opar, a sua sedutora rainha La debruçada sobre o homem-macaco deitado na pedra do sacrifício, Tarzan entrando em combate à frente dos seus animais, a sua selvagem celebração de vitória com os grandes macacos… Porque (re)descobri um encantamento que o tempo não foi capaz de apagar.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 21 de Outubro de 2007)

Na pista de Tarzan: Akim, Zembla e os outros

Há 60 anos, nascia Akim, herói de quadradinhos populares imaginado em Itália que, como muitos outros, antes e depois de si, bebia muita da sua inspiração no Tarzan imaginado por Edgar Rice Burroughs no início do século XX.
No caso de Akim, a colagem ao primeiro homem-macaco branco, era feita quase ao pormenor: os pais naufragaram na costa africana e foram mortos por feras, sendo o bebé adoptado por uma gorila. Cresceu entre os macacos, aprendeu a sua linguagem, desenvolveu uma assinalável musculatura e desenvolveu amizade com os animais. Tornou-se um justiceiro da floresta, temido pelos nativos, inimigo de traficantes e bandidos, mas também combateu sábios loucos e explorou civilizações perdidas, na senda da literatura popular de aventuras. E não hesitava em colocar temporariamente de lado a sua tanga feita de pele de leopardo para vestir roupas comuns e aventurar-se na selva urbana para combater delinquentes ou polícias corruptos. Durante as suas aventuras, partilhadas com um babuíno (Zig), um gorila (Kar), um elefante (Baroi) e um leão (Rag), descobriu ser herdeiro de uma grande fortuna, conheceu a bela Rita – com quem viveu “escandalosamente” durante anos sem se casarem (!) - e adoptou o pequeno Jim.
A sua estreia, a 10 de Fevereiro de 1950 foi na revista “Albo Gioello”, num formato semelhante ao dos cheques, criado pelo argumentista Roberto Renzi e o desenhador Augusto Pedrazza, que com ele granjearam grande popularidade, não só em Itália, mas igualmente na França e no Brasil. Com o novo alento que lhe deu a Sérgio Bonelli Editore, em 1976, a sua revista prolongou-se por 41 anos e mais de 750 números. Durante anos distribuído em Portugal em edições brasileiras, Akim teve uma edição nacional de curta duração, nos anos 70, da responsabilidade da Palirex.
Na senda do seu sucesso, numa óptica de concorrência, mas num tom mais paródico, em 1963, em França, nas páginas da “Special Kiwi”, nasceria Zembla, criado por Marcel Navarro e desenhado por diversos artistas italianos, entre os quais Pedrazza, o mesmo de Akim. Criado por leões, como traços distintivos tinha o cabelo negro e longo e uma tira de pele que lhe cruzava o tronco, e era acompanhado por um leão, um gato-selvagem, um canguru, um pigmeu e um mágico! O sucesso repetiu-se e Zembla – que gozou de enorme popularidade na… Turquia (!) - sobreviveu até 1994. Em Portugal foi publicado na colecção Tigre e teve tamb´m direito a revista nacional própria de algum sucesso, pois durou cerca de meia centena de números.
Mas as imitações do mito do selvagem branco, popularizado no cinema, especialmente nos filmes interpretados por Johnny Weissmuller, e na banda desenhada, com as inexcedíveis versões de Harold Foster, Burne Hogarth e Russ Manning, não se ficariam por aqui e teriam mesmo as mais díspares origens e desenvolvimentos. Entre elas, conta-se também “Korak”, o filho (legítimo, com Jane) de Tarzan, também criação de Burroughs, que nos quadradinhos viveu aventuras a solo ou em conjunto com o(s) seu(s) progenitor(es), a partir dos anos 60, muitas delas publicadas em português, inclusive em revista própria, por onde também passou o talento de Manning.
Nalguns casos com variantes, como “Fishboy: Denizen of the Deep”, um comic inglês publicado entre 1968 e 1975, escrito por Scott Goodall, cujo protagonista, abandonado numa ilha deserta, foi adoptado por tubarões, conseguindo comunicar com eles e respirar debaixo de água.

Diferente também era Yataca, criação francófona do mesmo período mas de maior longevidade, que nos primeiros episódios narrava as aventuras de uma criança selvagem na Amazónia. Ao fim de uma vintena de números, sem qualquer explicação, tornou-se adulto e mudou-se para África. Entre os seus desenhadores conta-se o português Vítor Péon, tendo alguns episódios da sua autoria sido publicados pela Portugal Press, numa publicação com o nome do herói. No mesmo registo, Péon criaria também Zama, cuja existência foi no entanto bastante curta.
A Marvel tem também o seu bom selvagem, Ka-Zar, “clone” de Tarzan criado em 1936 por Bob Byrd; três décadas mais tarde, foi remodelado por Stan Lee e Jack Kirby, que o transportaram para a Terra Selvagem, uma zona de clima tropical em plena Antártida onde ainda existem dinossauros, dando-lhe por companhia Zabu, um tigre dentes-de-sabre. A sua integração no universo Marvel proporcionou-lhe
aventuras com o Homem-Aranha ou o Demolidor.
Entre as versões de Tarzan mais curiosas conta-se "Jungle no Ouja Ta-chan", um manga (bd japonesa) criado por Tokuhiro Masaya que originaria uma versão animada de tom humorístico em que o “herói”, trapalhão e casado com uma obesa e mandona Jane, podia ser visto a lavar e estender roupa. Animada, também, e bem mais ligeira foi a versão da Disney, cujo filme, datado de 1999, originaria uma série televisiva com a sua infância e uma versão aos quadradinhos.
A um outro nível, refira-se Karzan, uma versão pornográfica do senhor da selva de origem franco-belga, que teve direito a edição nacional logo a seguir ao 25 de Abril com capas do pintor Carlos Alberto Santos.
No campo das curiosidades, refira-se que nos anos 90, na febre dos “crossovers”, Tarzan, ele próprio, o original, viveria nos quadradinhos incongruentes (pelo menos...) parcerias com Batman, Superman ou Fantasma e defrontaria mesmo o cinematográfico Predator…
Mas não se pense que apenas os homens emularam Tarzan, pois as suas versões femininas também abundam nas histórias aos quadradinhos.
Rima, a primeira “mulher selvagem”, aliás, é até anterior à criação de Burroughs, uma vez que protagonizou “Green Mansions: A Romance of the tropical forest”, um romance de William Henry Hudson datado de 1904, ou seja oito anos antes de “Tarzan of the Apes”. Seria no entanto preciso esperar quase mais sete décadas para ver esta heroína nos quadradinhos, por onde entretanto já tinham passado muitas congéneres suas como Shanna the she devil (uma heroína da Marvel), Judy, Tygra, Jann, Tiger Girl, Rulah ou Kara, todas elas “senhoras da selva”, que associavam ao exotismo natural do tema uma sensualidade inevitável face à sua reduzida indumentária.
Entre todas, no entanto, a mais famosa é sem dúvida Sheena, queen of the jungle, ou não tivessem sido os seus criadores Will Eisner (o mesmo do incontornável Spirit) e Jerry Iger. Sheena, aliás, foi a primeira heroína anglo-saxónica da banda desenhada a ter uma revista com o seu nome, logo em 1937, ano da sua criação, tendo tido diversas reedições e novas versões até à actualidade, entre as quais se destacam as assinadas por Dave Stevens e Frank Cho.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 10 de Fevereiro de 2010)
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