05/04/2010

80 Jours

Olivier Guéret (argumento)
Nicolas Vadot (argumento e desenho)
Casterman (França, Agosto de 2006)
240 x 320 mm, 72 p., cor, cartonado


Uma boa ideia por si só faz um bom livro (um bom filme, uma boa peça teatral…)? Não. Mas ajuda. Muito.
Quantas vezes lemos/ouvimos aquela ideia de que alguém, nos últimos momentos de vida, "reviveu toda a sua vida, como que num filme…"? Muitas, com certeza. E de certa forma é este princípio que preside a "80 jours", mas transformado na tal boa ideia.
Porque o protagonista, um octogenário, não revê a sua vida no leito de morte, tem antes a hipótese de a reviver - ou viver de novo - ao ritmo de um ano por dia, pois, por razão inexplicável (e inexplicada) acorda cada manhã um ano mais novo. Recuperando progressivamente a sua saúde, as suas capacidades físicas, as suas capacidades intelectuais, o seu vigor. Sem saber porquê, mas também sem se preocupar muito com isso. E rapidamente desiste de pensar no que fazer de uma vida que se esvai com data marcada enquanto se renova dia-a-dia.
Edmond, assim se chama o protagonista criado por Vadot e Guéret, aproveita para gozar a vida (renovada) que lhe foi concedida, sem falsos moralismos nem tentativas de corrigir o que quer que seja, dando-se até ao luxo de cometer novos excessos: volta a fumar, comete um assassínio… - qual o problema se só vai viver umas quantas semanas mais? Isto enquanto reavalia à luz da nova realidade, as tensões relacionadas com cada nova etapa da vida do ser humano (a velhice, a meia-idade, a juventude, a adolescência…).
Ao mesmo tempo que vê crescer um desejo latente, até se tornar quase em obsessão: conquistar Juliette, a jovem e sedutora enfermeira que o assistia na sua doença e que é testemunha incrédula da transformação que se vai desenrolando perante os seus olhos.
O que falha então em "80 jours"? Por um lado, fica a sensação de que faltaram páginas aos autores para explanarem completamente as ideias que estiveram na base do projecto. Depois, o desenho de Vadot, que apesar de ser inspirado nalgumas sequências, noutras é francamente desinteressante, e, finalmente, a conclusão - que não revelo porque apesar disso a leitura recomenda-se - porque demasiado previsível.

(Versão revista e actualizada do texto originalmente publicado no BDJornal #15 de Outubro/Novembro de 2006)

01/04/2010

As Melhores Leituras de Março

O Quim e o Manecas contra a terrível quadrilha do "Pé Fatal" (Círculo de Leitores), de Stuart Carvalhais
Aqui há gato #6 – Formação Desordenada (Bizâncio), de Darby Conley
As incríveis aventuras de Dog Mendonça e Pizza Boy (Tinta da China), de Filipe Melo (argumento), Juan Cavia (desenho) e Santiago Villa (cor)
Dans mes yeux (Casterman), de Bastien Vivés (argumento e desenho)
Hair shirt (Gallimard), de Patrick McEown (argumento e desenho)
Mundo Dos Super-heróis #15 (Editora Europa)
J. Kendall, aventuras de uma criminóloga #59 – O Xamã (Mythos Editora), de Giancarlo Berardi e Lorenzo Calza (argumento) e Cláudio Piccoli (desenho)
Jêrome K. Jêrome Bloche - L'intégrale #1 (Dupuis), de Alain Dodier, Serge Le Tendre e Makyo (argumento) e Alain Dodier (desenho)
Le Tour du monde en bande dessinée #2 (Delcourt), de Igal Sarna (argumento), Gipi, Erwann Terrier, Carlos Nine, Sonny Liew, Khamel Khelif, Vanessa Davis, Nick Abadzis, Mazen Kerbaj (argumento e desenho) e Rutu Modan (desenho)
Turma da Mônica Jovem #15 (Maurício de Sousa Produções), de Maurício de Sousa

31/03/2010

Ric Hochet, 55 anos

















Ric Hochet, o simpático jornalista parisiense com propensão para investigar crimes, criado por André-Paul Duchateau e Tibet, completou ontem 55 anos e a festa poderia ser bem maior, se o desenhador não tivesse falecido no passado dia 12 de Janeiro. Mesmo assim, a data fica marcada pelo lançamento este mês de dois novos títulos pela Lombard.

30/03/2010

Lançamento – A Fórmula da Felicidade Vol. 2

É já depois de amanhã – ou só depois de amanhã, depende do ponto de vista, a verdade é que a curiosidade sobre esta edição é grande – que é lançado o segundo e último tomo de A Fórmula da Felicidade, um dos mais interessantes livros de banda desenhada nacionais dos últimos anos.
É no dia 1 de Abril, portanto – e o editor Mário Freitas garante que não é engano - , 5ª feira, véspera de feriado, às 18h30 na Kingpin Books (Rua Quirino da Fonseca, 16-B, à Alameda D.Afonso Henriques, em Lisboa). Presentes vão estar os autores, Nuno Duarte (argumento) e Osvaldo Medina (desenho), bem como quatro dos cinco coloristas envolvidos no projecto: Ana Freitas, Patrícia Furtado, Filipe Teixeira e Gisela Martins.
A partir das 23h, no Bar Al Souk, em Santos (Rua do Mercatudo, transversal da Av. D. Carlos I), terá lugar uma After-party aberta ao público, que poderá assim conversar um pouco com os autores, ver as pranchas originais do livro, e assistir a uma actuação ao vivo dos Cubic Nonsense, a banda onde toca Mário Freitas.

29/03/2010

Dick Giordano (1932-2010)

Sábado passado, vítima de leucemia, faleceu Dick Giordano, nascido em Nova Iorque, a 20 de Julho de 1932.
Desde novo demonstrou vocação para os quadradinhos por isso, depois de estagiar no estúdio de Jerry Iger, em 1953 entrou como freelancer para a Charlton Comics, onde desenhou diversos heróis até chegar a editor administrativo e promover super-heróis como o Questão, Capitão Átomo e Besouro Azul.
No final da década de 1960, foi para a DC Comics juntamente com Jim Aparo ou o argumentista Denny O’Neil, e com este último, na década seguinte, operou uma profunda transformação em heróis como Batman, Lanterna Verde ou Arqueiro Verde, dando-lhes uma nova vida. Para além disso desenhou muitos outros heróis da DC Comics. Nos anos 80 criou o logotipo de Batman no qual as letras evocam um morcego, terminando o seu percurso na DC Comics como vice-presidente e director editorial, tendo sido um dos responsáveis pela edição de “Watchmen”, de Alan Moore e Dave Gibbons, ou “The Dark Night Returns”, de Frank Miller.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 29 de Março de 2010)

José Antunes (1937-2010)

O autor português de banda desenhada José Antunes faleceu no passado sábado. Natural de Lisboa, nasceu a 25 de Maio de 1937, estudou desenho na Escola António Arroio e publicou os seus primeiros trabalhos na revista Flama, em 1955.
Nos anos seguintes executou diversas histórias aos quadradinhos para o Mundo de Aventuras, o Camarada e o Jornal do Exército, com heróis de sua criação como Toni Tormenta, ou biografias de figuras históricas como Luís de Camões, Marco Pólo, Martim de Freitas ou Geraldo, o sem pavor, - algumas das quais publicadas em álbuns - e em 1968 publicou "Maître Biber" no Tintin belga, sempre como argumentista e desenhador.
Autor de diversas colecções de cromos para a Agência Portuguesa de Revistas, desenhou capas e/ou cartoons para o Sempre Fixe, Cara Alegre, Pisca-Pisca ou Diário de Notícias, entre muitas outras publicações, e foi também publicista, maquetista e director artístico do Círculo de Leitores.
Uma versão de A Lenda de Moura em BD, publicada no álbum colectivo Salúquia, editada por aquela autarquia em 2009, foi o seu último trabalho em BD.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 29 de Março de 2010)

26/03/2010

J. Kendall –#59

Giancarlo Berardi e Lorenzo Calza (argumento) 
Cláudio Piccoli (desenho) 
Mythos Editora (Brasil, Outubro de 2009) 
135 x 178 mm, 132 p., pb, brochado, mensal 

Resumo A morte misteriosa de um professor colega de Júlia, associada ao desaparecimento de sua casa de uma reprodução de Mana, um ídolo asteca de duas cabeças, metade deus e metade demónio, leva a criminóloga de Garden City a encetar mais uma investigação juntamente com a policia local, ao mesmo tempo que começa a ser afectada por uma série de estranhos pesadelos.

Desenvolvimento Se em banda desenhada, texto e desenho devem ser inseparáveis e indivisíveis, a verdade é que há obras de desenhador e outras de argumentista. J. Kendall – ou Júlia, no original italiano – é um destes últimos casos, com Berardi a apor claramente a sua marca em histórias que combinam intimismo e acção. Neste número #59, de momento distribuído nas bancas portuguesas, isto é mais uma vez evidente, pese embora o facto de ser uma narrativa atípica no conjunto da série, pelo facto de se revestir de uma forte carga onírica, mística e fantástica, de todo pouco habitual, pois o seu registo costuma ser bem realista. Mesmo assim – ou por isso? – Berardi revela mais uma vez a mestria da sua escrita, combinando a evocação da realidade histórica com uma narrativa mitológica, transportando esta última para o tempo actual, interligando-a ainda com a anedota do hacker-poeta, e inserindo-a no contexto típico das histórias de Júlia, de uma forma só aparentemente leve e descontraída, pois algumas das questões que aborda e explora merecem reflexão profunda. Piccoli, por seu lado, põe o seu traço “ao serviço do mestre”, revelando à-vontade no tratamento realista de quase todo o relato, com especial destaque para a vivacidade e expressividade de Júlia, e utilizando outros estilos gráficos para os diversos segmentos fantásticos da narrativa.

25/03/2010

Le dessin

Marc Antoine Mathieu (argumento e desenho)
Delcourt (França, Maio de 2001)
228 x 320 mm, 48 p., pb + cor, cartonado

Em "Le Dessin" tudo começa num cemitério, numa banal cena de um funeral. Banal, inevitável, mas custosa - são sempre difíceis os funerais. Neste, quem sofre é Émile, um pintor, pois o seu grande amigo, Édouard, deixou-o. Só. Sem os "passeios discursivos sobre o sentido da arte", sem "as controvérsias insensatas sobre as qualidades comparadas do mistério e do enigma"... Solidão que Marc-Antoine Mathieu retrata admiravelmente através das pinturas de Émile, no início de uma história, num preto e branco sóbrio mas marcante - às vezes opressivo - sobre presença e ausência.
Ausência mais presente quando a chegada de uma carta de Édouard surpreende Émile. Nela, o falecido convida-o a ir ao seu armazém de obras de arte escolher uma qualquer, para si, como última recordação da sua amizade. Após uma busca de muitas horas num "imenso armazém que parecia conter espécimes de todas as artes da humanidade", por entre obras "que lhe lembravam o olhar que Édouad tinha do mundo", a escolha recai - porquê? - "numa pequena gravura insignificante". Talvez porque o desenho "representasse o apartamento de Édouard" e tivesse um título "que o intrigava... ‘reflexão' ".
E a reflexão que Émile faz sobre o desenho, torna-se quase em obsessão. Por isso, recordado do gosto que o amigo tinha pelos enigmas, começa a analisá-lo ao pormenor, cada vez mais meticulosamente, reproduzindo - reflectindo - cada milímetro do desenho nos seus próprios quadros, numa busca incessante, iniciática, que se transforma na essência da sua existência, na sua única razão de ser, de viver, no seu destino, em que arte e vida se unem numa só realidade.
No final de uma narrativa poética e melancólica, no final, também, de uma vida de 'reflexão', de reflexões, também de reflexos - não é tudo o que fazemos e dizemos um reflexo, uma imagem da forma como vemos (reflectimos) o que nos rodeia? - Émile descobre – na cor, que nunca utilizou, para a qual o amigo o conduziu - o segredo daquele desenho - o desígnio da sua vida - que revela o seu lado infinitamente complexo e o seu lado infinitamente simples. Como também existe em tudo. Na vida.

Curiosidade
O álbum está divido em três capítulos - Le Dessin (O desenho), Le Destin (O destino), Le Dessein (O Desígnio) – cuja sonoridade é muito semelhante no original francês.

(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 9 de Janeiro de 2002)

23/03/2010

Face à l’urgence

Erik Bongers (argumento e desenho)
Office des publications de l’Union Européene (Luxemburgo, 2010)
210 x 297 mm, 40 p, cor, cartonado


Edição institucional, tem por objectivo “ilustrar o trabalho do serviço de ajuda humanitária da Comissão Europeia” face a catástrofes naturais como terramotos ou inundações. Fazendo um bom uso da linguagem dos quadradinhos, diluindo competentemente a carga informativa, narra um caso ficcional, num país imaginário, a Bordúvia, mostrando alguns dos problemas e dificuldades que se deparam passo a passo às entidades que têm por missão levar auxílio às vítimas das catástrofes.
Apesar do tom neutro, a que naturalmente está obrigado, não deixa mesmo assim de aflorar temas como a corrupção, a dificuldade de fazer a ajuda chegar a quem mais necessita ou os constantes obstáculos diplomáticos que são levantados, desvendando um pouco como a política e os interesse de minorias continuam a ser soberanos e ajudando a perceber porque motivo o auxílio demora, por vezes, tanto a chegar.
O traço do belga Erik Bongers, uma linha clara, com predominância de tons ocres, que evoca o “Jonathan” de Cosey, e que funciona melhor quando trabalha sobre registos fotográficos do que no tratamento da figura humana, cumpre razoavelmente o seu papel, sem deslumbrar:
O livro, disponível em inglês, francês, alemão, holandês e italiano, pode ser obtido gratuitamente em papel ou em versão pdf.

22/03/2010

As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy

Filipe Melo (argumento)
Juan Cavia (desenho)
Santiago Villa (cor)
Tinta da China (Portugal, Fevereiro de 2010)
165 x 240 mm, 120 p. cor, brochado com badanas

Resumo
Vampiros, lobisomens, gárgulas e fantasmas vivem pacificamente, nas sombras, entre os humanos. Porém, no subsolo de Lisboa, o pior de todos os monstros ganha forças e prepara o seu regresso. Para isso, anda a raptar crianças na capital portuguesa.
Um jovem distribuidor de pizzas, um ex-lobisomem de meia-idade, um demónio de seis mil anos e uma cabeça de gárgula com um estranho sentido de humor serão os únicos capazes de fazer frente às forças do mal que ameaçam a Humanidade.

Desenvolvimento
E de repente, parece que a banda desenhada portuguesa descobriu que pode aliar a qualidade artística à vertente comercial, no bom sentido do termo, sem desvirtuar projectos nem fazer mais cedências do que as estritamente necessárias. Mais, assumindo o objectivo de constituir um (bom) divertimento (bem feito) e tendo como meta chegar ao máximo possível de leitores, não só ao (curto) nicho habitual.
Exemplos recentes são BRK, de Filipe Pina e Filipe Andrade, Asteroid Fighter de Rui Lacas, e, agora, este livro. Que tem génese estranha, quase tanto como a história que narra. Porque nasceu em Tondela; porque na sua origem está Filipe Melo, músico e cineasta (I’ll see you in my dreams, Um mundo catita); porque resulta de uma parceria luso/argentina (nacionalidade do desenhador e também do colorista); porque esteve para ser um filme e acabou como BD (para benefício dos leitores de quadradinhos – de todos os que lerem estes quadradinhos).
A história reúne um entregador de pizzas, um detective do oculto, um demónio que encarnou num corpo de criança e a cabeça duma gárgula, que percorrem as entranhas de Lisboa, para descobrirem quem anda a raptar as crianças lisboetas e, juntamente com um sem número de monstros e demónios, combaterem uma (nova) ameaça nazi.
O tom é tão fantástico, rocambolesco e delirante quanto o resumo deixa entender, cruzando um sem número de referências e citações, de Jackie Chan aos Gremlins, de Casablanca a Howard, the Duck, de Hellboy a Dylan Dog, do policial negro ao cinema fantástico, numa narrativa de ritmo acelerado, de cortar o fôlego, em que as surpresas e o bom humor são recorrentes página após página, até ao desfecho final que deixa tudo em aberto para uma nova BD… pela qual se fica ansiosamente à espera.
E se foi preciso ir à Argentina buscar o desenhador, ainda bem que assim foi, pois o traço de Juan Cavia, de volumes bem definidos, a um tempo semi-realista e caricatural, e de um grande dinamismo, onde se adivinha sem dificuldade a sua experiência cinematográfica, imprimiu ao relato o ritmo que ele pedia, através do uso dos mais variados planos e de uma planificação multifacetada, multiplicando vinhetas ou optando por páginas com um desenho só.

A reter
- O desenho, o ritmo, o humor, as homenagens. Uma BD muito bem feita.
- A magnífica edição da Tinta da China.
- O making of escrito por Ana Markl que ocupa as últimas páginas do livro.

Menos conseguido
- A capa, pouco chamativa, sem imagem…

Curiosidade
- Afinal qual a alcunha de Eurico Catatau? Pizza Boy, PizzaBoy (como na capa do livro) ou Pizzaboy (como Filipe Melo escreve)…?

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 13 de Março de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

19/03/2010

Pourquoi j'ai tué Pierre

Oliver Ka (argumento)
Alfred (desenho)
Delcourt (França, Setembro de 2006)
204 x 264 mm, 112 p., cor, cartonado com sobrecapa com badanas


Olivier Ka viveu a infância e adolescência entre uns pais libertários e permissivos, defensores do sexo livre, e uns avós católicos praticantes conservadores, dividido, assim, entre dois mundos - e em temas como Deus, religião, igreja ou sexo. Aos 12 anos vai para um acampamento de férias dirigido por Pierre, um padre de esquerda, amigo dos pais - e seu amigo - que o levará (forçará…) a tocar o seu corpo. Apenas. Apenas ou tudo isso, o ponto de vista pode divergir. O nome apropriado é pedofilia e a actualidade, infelizmente, mostra que este esteve longe de ser um caso isolado.
Aquela experiência, embora breve, será profundamente traumatizante, embora só se aperceba quanto muitos anos depois. Para a apagar da sua memória - para exorcizar os seus fantasmas - teve que "matar" Pierre. Não literalmente, mas através de um texto auto-biográfico. Que, com Alfred, transformou nesta banda desenhada. Que também serve para isso.
Esta é uma história pudica e sensível, sobre uma infância traída e feridas não cicatrizadas, narrada de forma íntima e pessoal, com Alfred a gerir de forma notável o estilo do traço, a planificação e as cores consoante as situações relatadas, numa sublime e rara simbiose entre texto e desenho.
Uma obra que, começando nos 7 anos de Olivier, vai até à apresentação do projecto de livro a Pierre, num encontro inesperado e doloroso, desenhado de forma tocante, que permite a Olivier (re)encontrar a paz interior. Aos 35 anos.

(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 29 de Outubro de 2006)

18/03/2010

As Leituras dos Heróis – Dog Mendonça, Pizzaboy, Pazuul e Gárgula

(Segundo a opinião de Filipe Melo)

Pergunta - Se lessem banda desenhada quais seriam as preferidas de Dog Mendonça, Pizzaboy, Pazuul e Gárgula?

Resposta – Dog Mendonça: Cavaleiro Andante e Mosquito; o Eurico Catatau (Pizzaboy) mantém-se informado por causa do seu colega Vasco, que colecciona BD. As BD´s favoritas dele são Hellblazer, Hellboy, Batman - Arham Asylum, Sandman (do Neil Gaiman), Swamp Thing (do Alan Moore), Ronin e Elektra (do Frank Miller), X-Men Dark Phoenix Saga e Blueberry (de Jean Giraud e Charlier); o Pazuul só gosta do José Carlos Fernandes e a Gárgula lê Tio Patinhas, Pato Donald, Turma da Mónica e Recruta Zero.

17/03/2010

Hair Shirt

Patrick McEown (argumento e desenho)
Liz Artinian (cores)
Gallimard (França, Janeiro de 2010)
170 x 240 mm, 128 p., cor, cartonado

Resumo
John e Nasomi são dois amigos de infância que a vida separou e que o acaso decide juntar, anos mais tarde, naquela fase de indefinições entre o fim da adolescência e a entrada na idade adulta. Esse reencontro faz despertar de novo o amor entre eles – ou pelo menos a estranha forma que eles têm de o mostrar. Porque, juntamente com os sentimentos, também o passado regressa, com todos os seus traumas, recordações reprimidas e medos latentes.

Desenvolvimento
“Hair shirt” – literalmente “vestido de cabelos” – é a designação de uma espécie de vestido usado por penitência. E é de penitência, de (des)encontros, de errâncias sentimentais e de sexualidade mal assumida que nos fala este romance denso e complexo, no qual, muitas vezes, o relato se confunde com os sonhos – os pesadelos – do protagonista, hesitante entre viver o presente ou deixar que os seus sentimentos de culpa, os seus medos e as suas angústias assumam o controle e o impeçam de o desfrutar.
O tempo é o presente, o local da acção uns quaisquer subúrbios (no caso canadianos…), os protagonistas jovens adultos, cujas vidas não têm rumo definido nem objectivos para lá dos imediatos.
Por isso, John, estudante de Belas Artes, com um part-time num cinema, desde que a namorada o deixou, há mais de três anos, prefere lamentar a sua vida, as oportunidades que perdeu (ou não soube/quis aproveitar), em lugar de lutar pelo momento – por cada momento – pela relação que agora vive.
O reencontro casual com Naomi, parece poder ser o factor de mudança, mas a verdade é que muita água passou sob as pontes desde que ela e a sua família mudaram de cidade na sequência da morte acidental do seu irmão Chris, implicativo, e cruel. Por isso, a par da alegria do reencontro e da possibilidade de viverem o seu amor, surgem as sombras, as memórias, os falhanços e os momentos penosos de então, que pesam mais do que a possibilidade de ser (finalmente) feliz. Não só da parte dele, mas também da parte de Naomi, perdida numa busca errante e auto-destrutiva, incapaz de se assumir e de assumir os seus sentimentos, tentando encontrar na provocação e na transgressão de limites o que ela própria não consegue dar.
Algures entre o romance psicológico e a crónica quotidiana do fim da adolescência, com um toque de fantástico, melhor de pesadelo, o relato de McEown surpreende pela densidade, pelo ambiente saturado e opressivo que consegue criar e do qual, a par dos protagonistas, não nos conseguimos libertar, mesmo nos primeiros momentos após fechar o livro. Talvez porque o autor opta por não dar todas as respostas nem aprofundar todas as explicações sobre as causas dos traumatismos de infância de John e Naomi, deixando ao leitor a possibilidade de os interpretar. Porque a história, assente em diálogos especialmente bem conseguidos e credíveis, que deixam subentendido sempre mais do que aquilo que afirmam, prende e arrasta-nos – embora recorrentemente nos obriga a voltar atrás, para (re)interpretar esta ou aquela passagem à luz dos novos acontecimentos – num turbilhão vertiginoso de sentimentos contraditórios.
E se McEown não é, longe disso, um virtuoso do desenho, é, no entanto, um excelente narrador aos quadradinhos, com o seu traço falsamente inseguro, vivo, dinâmico, expressivo e preciso na definição de momentos e estados de espírito, bem servido por cores frias que acentuam a sensação de impotência e queda que perpassa todo o livro.

A reter
- A bela surpresa que a leitura deste livro constituiu, dando bem mais do que aquilo que parecia oferecer à primeira vista.

Curiosidade
- Patrick McEown, natural de Otava, no Canadá, onde nasceu em 1968, trabalhou na Dark Horse com Matt Wagner (Grendel: War Child) e Mike Mignola (Zombie World), na DC Comics (Batman – Beyond) e na Marvel (X-Men: Evolution).
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