04/12/2011

BD ao som da guitarra

Do tempo dos lusitanos até à actualidade, o fado, canção nacional por excelência, agora tornado património da humanidade, tem sido abordado de várias formas pelos quadradinhos nacionais.

Cronologicamente, se assim se pode escrever, a referência mais antiga ao fado surge nas aventuras de Tónius, herói lusitano empenhado em expulsar os mouros da Península Ibérica. Criação de Tito e André, o émulo nacional de Astérix, em “Uma Aventura nas Astúrias” (Pública), datada de 1981, numa passagem por Aeminium (Coimbra), brinda companheiros e leitores com uma anacrónica mas animada noite de fados!

Uma década mais tarde, a Câmara Municipal de Lisboa lançava “Noites de Vidro”, um roteiro sobre a noite lisboeta, em que dúzia e meia de autores nacionais retratavam, em ilustração ou banda desenhada, alguns dos mais conhecidos bares, discotecas e casas de fado da capital, neste último caso a Severa, desenhada por Alice Geirinhas.

Em 1994, a adaptação em BD, por Jorge Magalhães e Rui Lacas, do musical de Filipe la Féria “Maldita Cocaína” (Página a Página), encerra o seu último e trágico capítulo ao som do fado, na voz de um dos meliantes que a protagoniza.

E se o fado é o tema de uma das bandas desenhadas curtas inseridas na compilação “A minha vida é um esgoto” (Baleia Azul, 1999), de Ana Cortesão, bem pode dizer-se que alguns dos relatos nele inseridos são verdadeiros fados “aos quadradinhos”, pelo retrato cru de uma certa marginalidade da capital e pelo tom triste, trágico, melancólico e desiludido dessas histórias.

Mas se o que até agora foi citado não passa de apontamentos de maior ou menor dimensão inseridos em obras de maior fôlego, dois álbuns destacam-se por neles o fado surgir como verdadeira banda sonora ou mesmo protagonista maior.
“Fado – Estórias da Noite” (ASA, 2003), uma incursão nos quadradinhos do cartoonista Rui Pimentel, desenvolve uma história de tom policial nos meandros da noite fadista. Nele, na sequência do desaparecimento de Amália (com origem criminosa no livro), começam a surgir assassinadas todas as grandes senhoras do fado, tendo o protagonista, um inspector da PJ, que assumir o papel de fadista para descobrir quem quer ocupar o lugar deixado vago pela rainha do fado. De traço caricatural e muito expressivo, o álbum de cores vivas e fortes, traça um retrato mordaz, mas em muitos aspectos credível, da noite lisboeta.



Já o “O fado Ilustrado” (Plátano), datado de Fevereiro deste ano, orquestra conspirações políticas, atentados bombistas, o fado popular, paixões e vinganças, para traçar uma cronologia das razões que levaram ao derrube da monarquia e à implantação da República, no início do século passado. A trama da autoria de Jorge Miguel, é protagonizada por Adelaide da Facada e Amâncio da Navalha, presentes no quadro “O fado”, que José Malhoa pinta durante a narrativa, na qual o rei D. Carlos, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão também desempenham um papel.




Falar de fado sem falar de Amália não parece possível e os quadradinhos também não esqueceram essa diva da canção.
Não em Portugal, curiosamente, mas em França, onde, em 2008, as Éditions Nocturnes incluíram na sua colecção de BD World uma biografia de Amália, acompanhada de dois CD, gravados entre 1945 e 1955, em Lisboa, no Rio de Janeiro e em Londres.
Aude Samana, aluna da escola de BD de Angoulême, assina essa obra de tom intimista, próxima da pintura expressionista, que foi editada entre nós nesse mesmo ano com o título BDFado.







Há dois anos, no âmbito do projecto “Amália Nossa”, que revisita os primeiros 15 anos de gravações de Amália em 12 CD/livros ilustrados por artistas nacionais, foi anunciada também uma biografia ficcionada em BD da autoria de Nuno Saraiva, que deveria ter três volumes, mas que até hoje continua por editar.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 30 de Novembro de 2011)

03/12/2011

A revista de BD mais cara do mundo

Um exemplar da revista norte-americana Action Comics #1, com a estreia de Superman, foi vendido por 2,161 milhões de dólares num leilão online, organizado pela Comic Connect, que terminou ontem. A publicação, com a origem do Homem de Aço, uma criação de Joe Schuster e jerry Siegel, datada de Junho de 1938, que originalmente custava apenas 10 cêntimos de dólar, estava em excelente estado de conservação, tendo obtido a classificação de 9.0 segundo o Certified Guaranty Company (CGC), uma tabela utilizada igualmente para moedas e notas, cuja escala varia de 0 a 10 segundo a raridade e o estado de conservação da peça.O valor agora atingido, supera a meta de dois milhões de dólares que tinha sido apontada e pulveriza o anterior máximo, estabelecido em Março de 2010 por um outro exemplar da Action Comics #1, com a classificação de 8.5. Até atingir o valor final, foram feitas 50 licitações, nove das quais nuns últimos loucos 10 minutos, durante os quais o valor de licitação subiu mais de meio milhão de dólares.
Em torno deste exemplar há uma rocambolesca história que daria um bom argumento para uma banda desenhada. Comprada no final da década de 1990 pelo actor Nicholas Cage, reconhecido fã de comics de super-heróis, a revista foi-lhe roubada em 2004, tendo sido recuperada por acaso pela polícia no ano passado. Agora, com a sua venda, o actor que tinha sido indemnizado pelo seguro, vê largamente compensado o investimento então feito, comprovando mais uma vez que este é um segmento de mercado em que vale a pena investir.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 2 de Dezembro de 2011)

02/12/2011

Sasmira

#2 - La fausse Note
Laurent Vicomte (argumento e desenho)
Claude Pelet (desenho)
Glénat (França, 30 de Novembro de 2011)
240 x 320 mm, 64 p., cor, cartonado
14,90 €

Pré-história
“Stanislas… Stan…”
É este débil murmúrio, ao crepúsculo, numa rua de Paris, um simples sussurrar do seu nome por uma velhinha que ele desconhece e que morrerá nos seus braços instantes depois, que vai mergulhar Stan numa estranha aventura.
A ele e a Bertille, a sua namorada, pois estarão juntos na busca da casa representada numa fotografia que a velhinha possuía.
Será essa fotografia, bem como um estranho anel que ela dá a Stan antes de morrer, e a conjugação de desejos (ainda inconscientes?) que os guiarão num regresso ao passado para descobrirem, entre outras coisas, como sabia ela o seu nome, como é que Stan aparece à janela da casa, na fotografia tirada cerca de 90 anos antes e o porquê do estranho fascínio exercido nele pela jovem da fotografia. Para saber a resposta a estas questões, será necessário conhecer a misteriosa Sasmira, de olhar tão penetrante, e Prudence, que parece saber tanto sobre viagens no tempo.
“Sasmira”, sendo uma homenagem aos sonhos que muitos (de nós) tiveram perante velhos baús encontrados nos sótãos dos nossos avós, revela uma faceta até agora ignorada de Laurent Vicomte: a de um argumentista sólido, capaz de elaborar uma narrativa densa, bem estruturada, que transmite uma atmosfera opressiva, onde cada aparente acalmia esconde nova revelação, num crescendo surpreendente. Aguardam-se novos volumes, para ver até que ponto consegue dar resposta a todas as questões que colocou. (…)
(Excerto do texto publicado no Jornal de Notícias de 28 de Julho de 1998)

Actualidade
Se normalmente a publicidade é enganosa, no caso concreto deste álbum a editora não exagerará muito ao anunciá-lo como “O álbum mais aguardado da banda desenhada franco-belga”!
Na verdade, os cerca de 15 anos que mediaram entre os dois tomos possivelmente não têm paralelo e a qualidade do primeiro volume fez com essa espera fosse ainda mais custosa.
Agora, como álbum nas mãos – é real, não uma miragem, asseguro! – após a sua leitura, encontro-me dividido.
Por um lado, porque este é apenas o segundo volume de Sasmira e o seu historial faz-me temer ter que aguardar mais alguns anos pela sua continuação (ou conclusão?).
Por outro lado, sem que consiga manter o elevado nível do tomo inicial – algo que seria extremamente difícil – a continuação da história de Stanislas e Bertille, prisioneiros no início do século XX, quase 100 anos antes do seu tempo, responde e corresponde aos pressupostos que o primeiro tomo avançara, mantendo a capacidade de encantar, o fascínio, a sedução, o tom de mistério e fantástico que perpassava as pranchas do primeiro tomo.
Sem querer estará desvendar a história, para não estragar o prazer da sua leitura, adianto que, como esperado, a atracção de Stanislas pela bela Sasmira se acentua, assim como se acentua a estranha ligação entre esta e Bertille. Em paralelo, num ambiente tenso, misterioso e fantástico, no qual a acção decorre quase sempre em ritmo lento, que dá ao leitor tempo de interiorizar e reflectir sobre o que lhe vai sendo mostrado ao mesmo tempo que são desenvolvidas e aprofundadas as personagens principais e se estabelecem diversos tipos de relações entre elas, se muitas questões estão ainda por desvendar, é-nos revelado um pouco mais sobre as razões que provocaram a viagem ao passado dos dois protagonistas e são lançadas pistas que, deixando ainda muito em aberto, permitem antever um desfecho bem trágico para esta cativante saga.
Apesar da entrada de Claude Pelet para o desenho, no qual trabalhou durante os últimos dois anos, o grafismo do álbum não se ressente demasiado, mantendo um elevado nível assente no magnífico traço realista, detalhado na representação de edifícios, viaturas ou cenas naturais, proporcionado e expressivo no tratamento dos protagonistas, em especial das belas e sensuais mulheres, e muito impressivo nas cenas mais espectaculares ou fantásticas.
Para a irresistível atracção do conjunto contribuem também as belíssimas cores de Patricia Faucon, mais conseguidas até do que as do tomo inicial, que contribuem para definir as tensões latentes e o espírito que preside às diferentes cenas.

A reter
- Sasmira #2 está publicado, é real!
- E consegue dar respostas, firmes e coerentes – mas ainda não definitivas – às pistas avançadas no tomo 1.
- O belíssimo traço de Vicomte e Pelet.

Menos conseguido
- 15 anos entre dois volumes é demasiado. Ainda mais quando o primeiro tomo criou tantas expectativas.
- O receio, incontornável, de que o tomo #3 demore, de novo, demasiado a ser publicado.

Preview
- No site da Glénat estão disponíveis para leitura as primeiras 12 páginas do álbum.

01/12/2011

Melhores Leituras

Novembro 2011

A arte de Under Siege (ASA), de Filipe Pina e Filipe Andrade

Dustin, o com-abrigo (Bizâncio), de Steve Kelley e Jeff Parker

Fell - Cidade selvagem (Devir),
de Warren Ellis e Ben Templesmith

Habibi (Casterman), de Craig Thompson

J. Kendall #78 (Mythos Editora), de Berardi, Calza e Piccoli

Mônica #500 (Panini Comics), de Maurício de Sousa Produções

Níquel Náusea - A vaca foi pro brejo atrás do carro na frente dos bois (Devir), de Fernando Gonsales

Sasmira #2 - La Fausse Note (Glénat), de Laurent Vicomte e Claude Pelet

Sibylline 1965-1969 (Casterman), de Raymond Macherot

Sous l'entonnoir (Delcourt), de Sibylline e Picaud

Tif et Tondu - L'Intégrale #7 - Enquêtes à travers le monde (Dupuis), de Will e Tillieux

Y, O último Homem #4 - A senha e #5 - Anel da verdade (Panini Comics), de Brian Vaughan e Pia Guerra

30/11/2011

o pEQUENO dEUS cEGO

David Soares (argumento)Pedro Serpa (desenho)
Kingpin Books (Portugal, Outubro de 2011)
155 x 220 mm, 48 p., cor, brochado com badanas

Resumo
A vida da pequena Sem-Olhos é uma tragédia sucessiva: nasceu cega, foi submetido a um rito iniciático atroz e continua a sofrer às mãos do mais insuspeito dos algozes.
Desenvolvimento
Um dos mais interessantes argumentistas nacionais, David Soares imprime sempre uma marca bem pessoal nas suas obras que, mesmo quando parecem simples e lineares – como, em certa medida, se passa com este livro – apresentam sempre uma segunda (e às vezes terceira) leitura mais profunda e exigente, pelas mensagens (subliminares) e alegorias de que se alimenta a sua escrita.
É o que acontece com o pEQUENO dEUS CEGO, apresentado como uma pequena fábula situada numa China ainda presa a violentos costumes ancestrais, mas que pode bem ser entendido como uma história actual sobre o que fazemos – ou não – com o que os nossos sentidos nos transmitem.
Porque se a trama base, inscrita numa certa tradição de terror, se apresenta linear e directa, a leitura cuidada dos diálogos aporta ao leitor muito em que reflectir, deixando um incómodo semelhante – mas diferente – ao que aquela leitura superficial transmite.
Porque, convém referir, o pEQUENO dEUS CEGO é uma história trágica e terrível, de uma grande violência visível – e invisível – que em vários momentos choca e incomoda o seu leitor. Que até pode mergulhar no livro “enganado” pela agradável linha clara de Pedro Serpa, servida por cores planas e agradáveis também da sua autoria, numa combinação equilibrada entre o manga e o franco-belga, mas que se revela muito eficaz na transmissão do horror já citado, até pelo contraste que entre desenho e argumento acaba por existir.

E se o talento e competência de David Soares, visível também na planificação diversificada, pontuada por vinhetas de página inteira ou mesmo página dupla para acentuar os momentos-chave da narrativa, já não são surpresa para quem se habituou a lê-lo, este álbum revela Pedro Serpa, um desenhador até agora apenas com uma única experiência aos quadradinhos – o institucional e ainda algo incipiente Sete histórias em busca de uma alternativa - com muito potencial, que justifica um acompanhamento futuro, assim possa ter outros projectos para o expressar.
 A reter
- A bem conseguida capa (e contra-capa) do livro, pela dupla leitura das silhuetas.
- A confirmação do talento narrativo de David Soares.
- A descoberta do talento gráfico de Pedro Serpa.

Menos conseguido
- A realidade do país em que vivemos – bem anterior à malfadada crise que hoje em dia serve de desculpa para tudo - que eclipsa esta obra numa tiragem pouco mais que residual…


 

29/11/2011

BD pela saúde

Que a banda desenhada é um género narrativo com imenso potencial didáctico e pedagógico – o que não implica que não seja frequentemente mal utilizado com aqueles objectivos – é inegável.Curiosamente, por coincidência, acredito eu, intervalados por um curto espaço de tempo, foram lançados entre nós dois projectos que, de forma conseguida, encaixam no propósito acima descrito, com a particularidade de ambos versarem sobre questões relacionadas com a saúde.

A liga dos 4
#1 – O estranho caso das 3 professoras
#2 - Festival de Verão em risco
Maria Inês de Almeida (argumento)
Pedro Afonso (desenho)
Liga Portuguesa Contra o Cancro (Portugal, Outubro de 2011)
170x240 mm, 32 p., cor, brochado
5,65 €

O primeiro, de origem nacional, o que é de destacar, assenta a sua estrutura no modelo de séries juvenis protagonizadas por heróis da faixa etária dos leitores a quem se dirige – como os Cinco, os Sete, uma Aventura, etc. – para abordar questões relacionadas com o cancro.
No caso, são quatro amigos, dois rapazes e duas raparigas – André e Pedro, Margarida e Rita - estudantes do mesmo liceu que, num registo com um ligeiro tom policial, de mistério e suspense, investigam “casos” ligados ao seu quotidiano: no primeiro tomo, um cancro do colo do útero que afecta ao mesmo tempo duas professoras gémeas e cuja origem urge descobrir para que o mal não se propague; no segundo, uma cantora afectada por um cancro da mama, o que põe em risco a realização de um festival de verão. Temas actuais e presentes, que ajudam os leitores a identificarem-se com as situações descritas e a prender a sua atenção.
Partindo destes pressupostos, os leitores são introduzidos às possíveis origens, tratamento e consequências de doenças que ainda são vistas em muitos casos como bichos-papões e mostram como conviver com as pessoas afectadas por elas. Tudo de uma forma leve e até agradável, pois o tom didáctico/pedagógico está bastante diluído nas tramas, servidas por um traço simples e acessível.
À venda na FNAC, estas edições assinalem os 70 anos da Liga e contam com o apoio da Sanofi Pasteur MSD.

O que se passa com a Leonor?
Medikiz explica a AIJ
Dr. Kim Chilman-Blair (argumento)
Shawn de Loache (desenho)
Roche Farmacêutica (Portugal, Outubro de 2011)
170x260 mm, 32 p., cor, brochado

O mesmo propósito preside a este livro, embora aqui o estilo – narrativo e gráfico – adoptado, directo e apelativo, esteja mais próximo – a meio-caminho talvez – entre o comic de super-heróis e o manga juvenil.
O que se passa com a Leonor?, na origem inserido numa colecção que conta já quase duas dezenas de títulos, parte do mundo do desporto, mais exactamente do quotidiano de uma equipa liceal de basquetebol feminino, para abordar a Artrite Idiopática Juvenil (AIJ), que afecta cerca de 1 em cada 1000 jovens de idade inferior a 16 anos em Portugal.
Se neste caso a carga didáctica/pedagógica é mais evidente, pois são bastantes as explicações “técnicas” incluídas, ela é, mesmo assim, aligeirada pelos apartes humorísticos que recorrentemente vão sendo introduzidos na narrativa.
Nela, Leonor, a protagonista que sofre de AIJ, o que a impede de jogar basquetebol, parte numa viagem pelo interior do corpo humano, juntamente com a equipa de super-heróis da Mediland, constituída pelo Bomba (ligado às questões do coração), Chi (pulmões), Cindepele (pele), Gastro (barriga e rabo – sic!) e Axon (cérebro). Ao longo do trajecto é explicado o seu funcionamento bem como diferentes particularidades da doença como sintomas, diagnóstico e tratamento.
A obra, que foi apresentada em Portugal a 12 de Outubro, Dia Internacional das Doenças Reumáticas, destina-se a ser distribuída gratuitamente aos doentes e familiares através dos médicos especialistas e da Associação Nacional de Doentes com Artrites e outros Reumatismos da Infância (ANDAI).
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