Em mais uma
colaboração com o Tex Willer Blog, As Leituras do Pedro participaram numa
entrevista a Alfredo Castelli, a propósito dos 30 anos de Martin Mystère, na qual ele aborda diversos aspectos
relacionados com a sua principal criação.
A longa conversa
que poderão ler já a seguir, com perguntas minhas, de José Carlos Francisco e Giampiero Bellardinelli, traduzida para italiano por Gianni Petino e para português por Júlio Schneider - e para todos fica aqui o meu agradecimento por a terem tornado possível - é apenas um segmento de uma
entrevista bem mais extensa, que poderá ser lida integralmente aqui.
As Leituras do
Pedro - A personagem de Allan Quatermain antecipou, no conteúdo, Martin
Mystère. Fale um pouco disso.
Alfredo Castelli - Allan Quatermain
foi a primeira encarnação de Martin Mystère e surgiu em 1975. Nesse ano eu
apresentei o projeto da série a Il
Giornalino, uma revista para a qual no início dos anos 70 eu tinha escrito
duas séries (Gli Astrostoppisti – algo como Os Boleeiros do Espaço – e Mister Charade)
e histórias livres. Não foi aceite.
Na época uma recusa não era um drama: como eu disse, o mercado funcionava
muito bem, e tinha várias revistas que publicavam séries em episódios; se uma
coisa não era aceite, era só apresentar outra, sem muitos problemas. A ideia
descartada poderia ser tirada da gaveta na hora certa, como aconteceu com Allan
Quatermain, que saiu em 1979 em SuperGulp.
Depois do fecho da revista semanal, eu apresentei-o à Bonelli na fórmula actual,
em 1980. Seguiram-se dois anos de preparação de um pacote de histórias e assim
chegámos a 1982.
ALP – Vamos então deter-nos
no Detetive do Impossível. A personagem que chegou aos quiosques em Abril de
1982, era muito diferente da sua ideia inicial?
AC - Não era muito
diferente, excepto pelos nomes, pelo tamanho das histórias e pelo facto de que
Quatermain morava em Londres e não em Nova Iorque.
AC - Ele esperava uma
série mais agitada. Ficou muito perplexo ao ver uma personagem de BD que usava
um computador – um aparelho que
estava há pouco no mercado mas que já na época Bonelli detestava, como tudo que
era electrónico. Ele disse toda a vida – a brincar, mas não de todo – que eu o tinha enganado ao desenvolver uma série
diferente da que tinha sido proposta.
Com relação ao computador, parece que Martin Mystère foi a primeira
personagem de BD a possuir um personal
computer. Não sei se é verdade, mas eu não encontrei exemplos precedentes.
Eu tinha um daqueles que na época eram chamados home computer, aparelhos não muito caros que eram ligados ao ecrã
da TV. Era um Atari 800, programado em basic
e com os ficheiros gravados num gravador de cassetes. Fazer isso demorava
vários minutos e não havia garantia de que a gravação seria suficientemente boa
para permitir abrir novamente os arquivos. O Personal Computer era praticamente exclusividade da IBM e era muito
caro (fazendo as devidas comparações, eu diria algo em torno de 25 000 euros atuais
para um aparelho com 128K de RAM!). Como eu não podia comprar, fiz com que a
minha personagem tivesse um.
ALP - Um dos temas
dominantes da série – pelo
menos nos primeiros dez anos – foi o
dos continentes perdidos. O que o fascinava neste assunto?
AC - Eu não diria
genericamente continentes perdidos,
eu diria mais especificamente continentes
perdidos de Atlântida e Mu.
Na saga de Martin Mystère eram duas civilizações mais ou menos como a nossa
e que, por puro desejo de expansão e de poder, se tinham defrontado numa guerra
que, há cerca de 10.000 anos, tinha culminado com a destruição total de ambas e
tinha arrastado na catástrofe o resto do mundo, fazendo os sobreviventes
regredir a um nível de semibarbárie. Um acontecimento que uma antiga seita, a
dos Homens de Preto, desde sempre
busca manter em segredo, destruindo tudo o que poderia provar que aconteceu:
sim, porque se hoje nós nos déssemos conta do que ocorreu no passado remoto,
provavelmente tentaríamos não cometer os mesmos erros de quem nos antecedeu, e
isso abalaria mecanismos de poder consolidados.
Durante um certo período essa tese – que, em minha opinião, possui um fascínio ameaçador – constituiu a base sobre a qual assentaram
cerca de 30% das aventuras de Martin Mystère. Depois a temática começou a
tornar-se repetitiva e deixei-a um pouco de lado.
Nos seus trinta anos de vida Martin Mystère ocupou-se de mysteri (mystérios) de todo tipo. A propósito, mistérios em italiano diz-se misteri
e mysteri (com y) é um neologismo que eu criei e que se difundiu também fora do
âmbito Bonelli, usado para diferenciá-los daqueles de caráter policial ou
político (infelizmente muitos, na Itália). Então, mystério é tudo o que é incomum e curioso, que estimula a
curiosidade e o desejo de saber mais; não só Atlântida, o Graal ou os OVNIS,
mas a História, as artes, a literatura, as ciências exactas (O mystério do último
teorema de Fermat).
ALP - Qual é a
principal diferença entre escrever histórias de Martin Mystère ou de Diabolik?
AC - Escrever histórias
de Martin Mystère ou de Diabolik (ou Tex) apresenta dificuldades de carácter
oposto.
Ninguém se escandaliza se Diabolik rouba pela enésima vez um diamante
exposto no museu ou se Tex caça pela enésima vez uma quadrilha de assaltantes
de diligências. A dificuldade para essas duas personagens não é tanto a de encontrar
novas ideias, mas a de criar infinitas variações para os mesmos temas.
Com Martin Mystère este problema, graças aos céus, não existe, visto que se
pode passear sobre inumeráveis argumentos, mas em compensação, ao contrário de
Tex e Diabolik, ele não pode enfrentar duas vezes a mesma situação: se Martin encontra
o Graal na Basílica de San Nicola, em Bari, não pode descobri-lo de novo nos
subterrâneos do Castelo de São Jorge: a ideia está queimada para sempre.
É evidente que, nos primeiros dez anos de vida, o trabalho do Detetive do Impossível era só escolher o
tema, mas hoje, depois de tanto tempo e de tantos mystérios variados, tudo é muito mais difícil, embora eu acredite
que as ideias não se esgotarão. Hoje que, depois do sucesso do Código Da Vinci,
as histórias mysteriosas estão na
moda (na Itália e na Espanha todo mês saem dezenas de romances sobre esses
assuntos e, francamente, eu me pergunto como é que vendem), eu gostaria de
retomar, de um modo diferente, certos temas usados nos anos 80. Qualquer dia
descubro uma forma engenhosa de o fazer.
ALP - Quais foram,
na sua visão, as mudanças que a série sofreu nesses trinta anos de vida
editorial?
AC - Nenhuma mudança
traumática como, por exemplo, as dos super-heróis americanos.
Como eu disse, mudaram um pouco os mystérios,
o BVTM (Bom Velho Tio Martin)
envelheceu um pouquinho (não trinta anos, como o autor: digamos que para as
personagens de BD – sorte delas – só se passa um ano a cada cinco dos
nossos), tornou-se mais caseiro, casou-se com Diana e está decididamente mais
humano e simpático que o Martin das origens.
Os seus leitores chamam-no afectuosamente de BVZM (Buon Vechio Zio Marty, ou BVTM, Bom Velho Tio Martin, em português),
consideram-no um amigo e gostam de acreditar que é uma pessoa real. Sinto um
orgulho realmente grande pelo relacionamento de Martin com os seus leitores.
ALP - A propósito de
relacionamentos, o modelo herói-assistente-noiva
eterna (Martin Mystère-Java-Diana) seria o mesmo se Martin Mystère tivesse
sido criado actualmente?
AC - Eu diria que sim.
Com as adaptações devidas, sempre funciona, desde Platão a Goldoni, e também a
Cervantes e aos protagonistas de dois filmes muito mysteriosos: O Tesouro e O Tesouro 2
– Livro
dos Segredos, da Disney. (N.T.: no Brasil, A
Lenda do Tesouro Perdido e A Lenda do Tesouro Perdido – Livro dos Segredos).
ALP - E se criasse
Martin Mystère hoje, modificá-lo-ia? E como?
AC - É uma pergunta à
qual é impossível responder, as variáveis são muitas. Se Martin Mystère não existisse,
mas o resto do mundo (inclusive e sobretudo o editorial) fosse exatamente o de
hoje, eu não tentaria sequer criar Martin Mystère: ele não seria mais uma
personagem original como era em 1982 e, principalmente, teria muita
concorrência entre livros, filmes, programas de televisão.
ALP - A
bimestralidade, em nossa opinião, fez bem à serie, mas como é que o público
reagiu a essa inovação?
AC - Transformar a série
mensal em bimestral foi uma decisão que alguns interpretaram erroneamente como
um sinal de que as coisas não iam bem e de que se tentava salvar o salvável.
Não foi isso: tratou-se de uma escolha precisa que permitiria publicar edições
mais volumosas, verdadeiros livros com 160 páginas, e elaborar histórias
completas sem ser preciso comprimi-las em 96 páginas. Eu contava que os
leitores entenderiam e assim foi. A mudança de periodicidade aconteceu a partir
do n° 279, de junho de 2005, e teve efeitos positivos imediatos nas vendas.
O próprio Sergio Bonelli, que era contrário à operação mesmo após ter
permitido que eu a levasse em frente, admitiu publicamente e com muito fair play que estava errado e que ficou
contente com seu erro.
ALP - Acreditou muitas
vezes nas respostas que Martin Mystère obteve?
AC - Geralmente as tramas
do Detetive do Impossível têm uma precisa base histórica, literária ou de outro
tipo, mas Martin Mystère é uma personagem de fantasia que conta histórias de
fantasia. Eu faço questão de destacar esse detalhe e, não por acaso, em cada edição
há um artigo que explica o que há de verdadeiro e de inventado nas histórias,
porque eu não pretendo fazer que os leitores acreditem em coisas
não-verdadeiras.
Estabelecidas estas premissas, posso responder que acredito nas respostas obtidas por Martin em cada caso. Algumas
respostas são fantásticas demais para que eu acredite nelas, outras mais ou
menos plausíveis – embora não
comprovadas –, o que me faz pensar
um pouco na sua veracidade.
Mas se a pergunta é sobre como eu me coloco diante de uma matéria controversa
enfrentada por Martin (como fenômenos paranormais, OVNIS, magia e coisas do género),
eu digo que sou bastante céptico. E, a seu jeito, o Detetive do Impossível
também o é, visto que nunca aceita nada no impulso, documenta-se e investiga do
modo mais objectivo possível. É óbvio que Martin vive num mundo que, embora
bastante parecido com o nosso, é de fantasia, e nele certos fenômenos podem
tranquilamente acontecer.
ALP - Há alguma
história de Martin Mystère que ainda não conseguiu contar?
AC - Existem histórias
que eu gostaria de contar mas que decidi não o fazer, para seguir a filosofia
da Editora com a qual, em linhas gerais, eu concordo.
O objectivo das nossas edições de série (as regras podem não valer para os one shot, volumes isolados) é um
entretenimento, tanto quanto possível inteligente e, no caso de Martin Mystère,
com um fundo educativo.
Os protagonistas podem – aliás, devem – possuir uma componente política (por
exemplo, Martin Mystère é um democrata liberal, o que na Itália nós
definiríamos de esquerda, e seus atos
mostram isso) mas não um posicionamento de partido, o que descambaria para a
propaganda.
Martin admite que não é muito religioso no sentido tradicional do termo,
mas respeita todas as escolhas desse campo enquanto isso não tolhe a liberdade
de terceiros. Nesse sentido – do respeito – deve-se enquadrar a escolha de evitar
histórias sobre mystérios religiosos
ou milagres. As aparições de Fátima, por exemplo, com o sol que dança e o Terceiro Segredo, poderiam ser uma ótima
inspiração e ser interpretadas de modos muito interessantes, mas tais
interpretações poderiam chocar a sensibilidade de quem acredita.
Nas edições Bonelli também é difícil abordar a actualidade em sentido
estrito, visto que, do momento da primeira ideia para uma história até o
lançamento da BD, passa-se no mínimo (mínimo mesmo) um ano. Como Martin Mystère
actua num mundo real, em alguns casos clamorosos (por exemplo, o derrube das
Torres Gêmeas) nós retocámos os diálogos e mudámos algumas vinhetas pouco antes
de mandar o material para a impressão, mas é o máximo de actualidade que
podemos nos permitir. As histórias ligadas a temas do momento provocariam,
justamente, reações positivas ou negativas e, em razão dos prazos de confecção
das edições, não seria possível o contraditório, uma explicação, e isso seria
pouco correcto.
ALP - Como é o
seu método de trabalho para escrever as histórias de Martin Mystère?
AC - O pior de todos, que
não aconselho a ninguém.
O método correcto para escrever uma
história, seja uma BD, um romance ou um filme, é elaborar um esboço, fazer os
ajustes e, quando estiver bom, fazer o argumento ou, de algum modo, elaborar a
trama completa. Mas eu muitas vezes começo sem sequer saber qual será o tema
central da história, eventualmente porque o desenhador ficou sem argumento e
precisa de trabalhar. Depois de enviar algumas páginas boas para qualquer
situação, eu vou em frente à base de dez ou quinze páginas de cada vez, quando
eu mesmo descubro aos poucos do que estou a falar, e, várias vezes, acabo em
situações terrivelmente complicadas.
Até hoje eu consegui fazer funcionar, mas – apesar de estar acostumado – é um sistema muito trabalhoso, inseguro e gerador de stress.
ALP - Foi fácil
entregar Martin Mystère a outros autores? Como é o seu relacionamento com eles?
AC – Nem por isso. Saber
que eu teria ajuda deu-me mais tranquilidade. Os autores escrevem ou desenham
segundo a própria personalidade, assinam as histórias e recebem os direitos de
autor assim como eu. Mas confesso que sou um pouco despótico, como as irmãs
Giussani eram com Diabolik ou como Sergio era com Zagor ou Tex. Muitas vezes eu
refaço os diálogos do modo que me parece mais correcto, e, em caso de
discussões – inclusive sobre os
desenhos – se não se chega a
uma solução de consenso, a última palavra é minha por ser o criador e,
sobretudo, o editor responsável pela série. Apesar disso, espero e acredito que
sou bastante querido pelos meus colegas.
ALP - Qual a
história de Martin Mystère feita por outro autor que gostaria de ter escrito?
Qual é o desenhador com quem gostou mais de trabalhar em Martin Mystère?
AC - A essas duas
perguntas, sobre os muitos outros bons autores que se alternam em Martin
Mystère, eu prefiro não responder. Não sou hipócrita a ponto de fingir que não
tenho preferências, como faz um amoroso pai com seus filhos: é óbvio que eu
tenho os meus preferidos, mas por respeito com quem não o é, não pretendo
revelar quem são. De qualquer forma (isto é verdade), todos contribuíram para
que, depois de trinta anos, a série ainda esteja viva e saudável.
ALP - Há algum
desenhador não-bonelliano que gostaria de ver a ilustrar uma história de Martin
Mystère?
AC - Desenhador, eu não
faço ideia. Existem vários que são muito bons, eu não saberia escolher. Mas eu
gostaria que Neil Gaiman e Alan Moore escrevessem uma história. Ou todas.
Escritas e desenhadas de modo completamente não-bonelliano são as aventuras da
TV do jovem Martin Mystère (em Portugal, Martin
Mystery, desde 2011 no canal Panda Biggs).
Antes falávamos de mudanças, e aqui, com a minha aprovação, a personagem
foi radicalmente transformada para uma série de 66 desenhos animados dedicada a
um público de 10/12 anos. Eu vejo que muitas vezes a versão animada de
histórias aventurosas (como, por exemplo, Diabolik)
que não são carne, nem peixe: não são
suficientemente semelhantes ao original para contentar os leitores, e nem
suficientemente diferentes para contentar outros públicos. Não é o caso de Martin Mystery, que também não é nem
carne, nem peixe mas ainda é outra coisa (fruta? doce?) que pode agradar ou
não. A mim, particularmente, a série não desagrada, embora eu seja, como é
evidente, condicionado pelo original e, ainda mais evidente, não tenho 10 ou 15
anos. Foi como ver um filho crescer e desenvolver-se sozinho.
ALP - Conhece
Portugal? Já houve alguma história de Martin Mystère ambientada aqui?
AC - Eu conheço
Portugal, já estive aí várias vezes (inclusive de férias, no Algarve) e gosto muito
de Lisboa. Mantenho contacto com Leonardo de Sà (eu sei que o a deve ter acento agudo, mas isso não
tem no teclado italiano e deve-se procurar o caracter sabe-se lá onde) (N.T.: para comodidade do entrevistado,
resolvemos o problema na tradução: Leonardo de Sá :-), grande conhecedor de
BD, com quem há anos troco correspondência, e tenho muitos livros e revistas
dedicados à produção portuguesa, dentre os quais bastante material sobre o precursor Rafael Bordalo Pinheiro
(fiquei positivamente admirado que um jornal de grande circulação como Expresso tenha lhe dedicado um volume
colateral).
Há vários anos que planeio ir ao festival da Amadora mas, infelizmente, ele
coincide com o de Lucca, no qual sempre tenho algum compromisso. Fico triste
que Martin Mystère nunca tenha tido uma edição portuguesa (foi importado do
Brasil por algum tempo); Qualquer dia faço-o viver uma aventura em Lisboa, na
esperança de que seja descoberto.
Leonardo sugeriu-me alguma coisa ligada à reconstrução após o terremoto de
1755, mas depois eu esqueci. Esta entrevista me fez o facto voltar à memória e eu
agradeço.
Fotos de José Carlos Francisco