18/10/2010

Adèle Blanc-sec , vol. 1

Jacques Tardi (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Setembro de 2010)
225 x 300 mm, 96 p., cor, cartonado


Adèle Blanc-sec é um dos casos estranhos em que a edição de banda desenhada é fértil em Portugal.
Lançada originalmente pela Bertrand, no final da década de 70 do século passado, era uma série que destoava num catálogo em que imperava a BD juvenil de aventuras, o que não impediu a edição dos quatro primeiros tomos (correspondentes aos dois primeiros arcos das aventuras de Adèle Blanc-sec) em apenas dois anos, volumes que durante muitos anos se encontravam com facilidade em livrarias e alfarrabistas.
Anos depois, em 2003, a Witloof acabada de surgir, surpreendia por voltar a apostar numa obra já editada, de um autor que não era propriamente um nome de referência no nosso país e cuja bibliografia nacional praticamente não tivera continuidade (com excepção de “A Sacanice”, surpreendentemente lançada pela Terramar em 2000, e de “Varlot Soldado”, da Polvo, em 2001). Com uma edição ligeiramente maior, com nova tradução e capas pouco diferentes, apenas com a imagem original ampliada, a Witloof ficou-se pela (re)edição dos três primeiros volumes.
Agora, é a ASA que volta a esta obra emblemática de Tardi, à boleia de um filme que - ao que parece infelizmente - não se sabe se e quando vai estrear em Portugal. A tradução e a capa (uma montagem) são novas mais uma vez, surgindo também como novidade a compilação das duas primeiras histórias (Adèle e o Monstro e O Demónio da Torre Eiffel, correspondentes ao primeiro arco) num único volume. E a certeza (tanto quanto é possível assegurá-lo neste momento) de que mais dois volumes, com os tomos 3/4 e 5/6 (estes até hoje inéditos em português) serão editados durante 2011. A faltar, para encerrar o primeiro ciclo de Adèle, ficará o álbum “Tous les Monstres”, bem como duas derivações à série: “Adieu Brindavoine” e “La fleur et le fusil”.
A verdade é que nada do que para trás fica escrito põe em causa o interesse ou a qualidade da obra de Tardi, um dos grandes nomes da BD francófona das últimas quatro décadas, quer com esta Adèle, quer com as suas adaptações de clássicos policiais franceses ou de episódios históricos. Como denominador comum a todas elas, a presença de Paris como local central da acção, uma Paris revisitada e retratada com mestria, rigor e paixão ao longo de várias épocas. Porque mesmo que o traço de Tardi seja semi-caricatural, no que ao tratamento da figura humana diz respeito, revela-se perfeito para pôr no papel os cenários reais que as personagens teriam calcorreado se tivessem realmente existido no tempo em que o autor as coloca.
Mesmo assim, no conjunto da sua obra, Adèle Blanc-sec destaca-se pelo tom fantástico e irónico que perpassa as suas páginas.
Fantástico, porque na origem destas rocambolescas histórias está um pterodáctilo ressuscitado por pseudo-cientistas e uma seita de adoradores de um demónio assírio, em pleno coração da França. E uma trama longa e retorcida (e pontualmente difícil de acompanhar, tantas são as personagens envolvidas e as peripécias apresentadas), repleta de referências, em que abundam conspirações, perseguições e tiros.
Irónico, porque a par daquela trama densa, Tardi diverte-se – nitidamente – a criticar de forma mordaz polícias e políticos, a guerra e a ciência, autores (como ele próprio) e (os seus) heróis, de forma bem conseguida e irresistível. Ao mesmo tempo que brinca com a (sua) história e as situações, numa narrativa que adopta o estilo dos folhetins do início do século XX, o que a torna a um tempo estranha mas também apetecível e, por isso, bastante recomendável, sendo sem dúvida uma bela homenagem à literatura popular!
Como (triste) nota final, fica a confirmação que a edição de “integrais” em Portugal (que, ao contrário da maior parte das edições similares de clássicos francófonos ou americanos, continuam a ter custos relativos a tradução e balonagem e a pagar direitos de autor) é financeiramente pouco vantajosa para o leitor, apesar do preço do actual tomo com dois álbuns (21,70 €) ficar abaixo do que custariam dois livros isolados.

16/10/2010

Dinis Conefrey na Mundo Fantasma

A Galeria Mundo Fantasma inaugura hoje, às 17 horas, a exposição Memórias Topográficas, com a presença do autor Dinis Conefrey, para uma conversa com os visitantes e sessão de autógrafos.
Composta por 22 originais, metade ilustrações soltas de temáticas distintas e a outra metade pranchas do álbum “Arquipélagos”, cujo argumento é baseado em dois textos do poeta Herberto Hélder, a mostra, segundo o autor, é “uma exposição de imagens saídas do tempo em que as ideias tomaram forma; planos interceptados por linhas, texturas, cores que dão corpo e luz à interpretação dos sonhos”.
Nascido em Lisboa, em 1965, Conefrey tem feito ilustração para livros e publicações periódicas e, no que à banda desenhada diz respeito, participou em diversos álbuns colectivos, destacando-se, na sua bibliografia a solo, o já citado “Arquipélagos” (Íman, 2001) e também ”O Livro dos Dias” (publicado pela Devir, em 2003, em Portugal e Espanha) e realizado com uma bolsa de criação literária do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.
Com um estilo muito pessoal, no qual a cor tem um papel fundamental na definição de ambientes, ensações e volumes, nos últimos anos Dinis Conefrey tem dedicado particular atenção ao México, tendo, em 2005, recebido uma bolsa do estado mexicano que lhe permitiu trabalhar por 6 meses naquele país preparando o segundo tomo de “O Livro dos Dias”.
A exposição de Dinis Conefrey estará patente na Mundo Fantasma, no Centro Comercial Brasília, no Porto, até 14 de Novembro. Como é habitual estará à venda um giclée assinado e numerado pelo autor, que reproduz a ilustração que abre este post.

(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 16 de Outubro de 2010)

15/10/2010

Little Nemo in Slumberland - Há 105 anos, na terra em que os sonhos eram a realidade



Com que sonhavam os homens há 105 anos?
Alguns que desejavam voar como os pássaros, sonho acalentado pelo ser humano quase desde que o Homem é Homem, punham no ar os primeiros verdadeiros engenhos voadores a que mais tarde se chamaria aviões. Em muitos países - chamavam-se então colónias - sonhava-se com a liberdade e a independência, mas, nalguns deles, muito tempo teve que passar e muito sangue teve que ser derramado para que esses sonhos se concretizassem. Em Portugal, como também noutras nações, havia quem sonhasse com o fim da monarquia e a implantação da república, o que se tornaria uma realidade entre nós a 5 de Outubro de 1910. Uma outra revolução, a russa, que mergulharia o país na ditadura e num banho de sangue, sabemo-lo hoje, estaria também já na mente de alguns.

Muitas mulheres aspiravam a ser iguais aos homens, no que toca a direitos, deveres, oportunidades e responsabilidades, mas esta é uma luta que hoje ainda tem que continuar em muitas latitudes e não só aos países ditos islâmicos…
Nalguns países, especialmente africanos, ainda havia escravos a sonhar com a liberdade; chegaria oficialmente para todos em 1915, após a assinatura, em St. Germain, de um tratado internacional de abolição da escravatura. Que não impede que continue a existir hoje, umas vezes mais claramente, outras à socapa, sob diferentes nomes…
A outro nível, Júlio Verne morria deixando (d)escritos sonhos sem fim, de viagens por todo o planeta, ao centro da Terra e também à Lua, em engenhos novos e mirabolantes que hoje nos são comuns. E talvez Edgar Rice Burroughs já tivesse na cabeça as bases da história de um homem branco que cresceria entre os macacos - que hoje conhecemos como Tarzan, um dos mitos do século XX - e sonhasse já, também, com viagens espaciais e a descoberta de outros mundos.
Todos estes sonhos, e tantos mais, como todos os sonhos, tinham - e têm - o valor que lhes queiramos dar. O valor que lhes dá quem os sonha; o valor que lhes dá quem os ouve contar, sonhando-os, por isso, também. Entre todos estes sonhos e entre tantos sonhadores, um distinguia-se pela forma como os explanava. Os seus sonhos, que hoje, ainda, podemos também fazer nossos, como tantos puderam, ao longo de 105 anos, mais de um século - um século de mudanças intensas, vividas a uma velocidade cada vez maior - foram transmitidos para o papel, para as enormes folhas de um jornal, o "New York Herald", onde, pela primeira vez, um miúdo, de quem quase nada sabemos, para além do seu nome, Little Nemo - literalmente o Pequeno Ninguém, talvez para que cada leitor melhor se pudesse identificar com ele - sonhou fantásticos sonhos passados na terra deles, Slumberland. Sonhos (re)vividos através duma arte - que ainda não se sabia tal - que dava os primeiros passos, ainda trémulos e inseguros, à procura de suportes, técnicas, estilos e temáticas e que via surgir no seu seio uma obra tão notável.
Uma arte que descobria - viria a descobrir mais tarde - neste fabuloso "Little Nemo in Slumberland", tudo aquilo que ela podia/queria/aspirava ser: um desenho fabuloso, uma planificação variada e dinâmica, uma deslumbrante paleta cromática, uma narrativa onírica, fantástica e absorvente.
O seu criador - soa melhor o seu sonhador? - era Zenas Winsor McCay, nascido nos Estados Unidos, em Spring Lake, no Michigan, a 26 de Setembro de 1867. Filho de emigrantes escoceses que tinham chegado à terra de todos os sonhos, uma outra Slumberland, que para tantos foi de pesadelo, ainda hoje é, ainda é mais hoje, até - McCay, aos 19 anos, foi enviado pelo pai para Ypsilanti, Michigan, para estudar comércio num colégio. Foi lá que conheceu um inglês chamado John Goodison, que decidiu experimentar o método de aprendizagem que criara, com diversos alunos, entre os quais aquele McCay que herdara os nomes próprios do patrão do pai. O professor forneceu-lhe todas as ferramentas necessárias para representar objectos no espaço de forma tridimensional. As lições incluíam o desenho de sólidos geométricos e outros objectos, as suas sombras e reflexos, texturas e perspectivas, ensinamentos que McCay utilizaria mais tarde na sua obra gráfica, onde sempre procurou as perspectivas mais originais e os efeitos mais surpreendentes.
Como surpreendente era a forma como ocupava o seu tempo após as lições, no Wonderland de Detroit, um dime museum, uma espécie de circo sedentário que combinava atracções exóticas com espectáculos cómicos e onde, pela primeira vez, ganharia dinheiro com os seus desenhos, pois entretinha-se a retratar os actores, vendendo essas obras a 25 cents.
No princípio da última década do século XIX, McCay mudou-se para Cincinnati onde conheceu, nas escadas do dime museum de Vine Street, a pequena Maud Leonore Dufour, por quem se apaixonou de imediato, apesar dos seus apenas 14 anos. O que não foi impedimento para que, poucas semanas depois, fossem casados por um juiz de paz.
Ela seria a mãe dos seus filhos Robert Winsor, nascido em 1896, e Marion Elizabeth, em 1897. A estabilidade era palavra desconhecida então e o casal mudava de residência pelo menos duas vezes por ano, o que não impedia McCay de, após sair do emprego, frequentar o mundo muito especial do circo e do espectáculo. A partir de 1886 e durante cerca de uma década, Winsor McCay produziu milhares de desenhos publicitários e cartazes, alguns dos quais painéis gigantes desenhados ao vivo, ao mesmo tempo que, a partir de 1887, colaborava pela primeira vez em jornais, tendo-se estreado no "Commercial Tribune", de Cincinnati. Neste e noutros títulos como a "Life" ou o "Cincinnati Enquirer", deixou magníficas ilustrações de acontecimentos do quotidiano como paradas do exército, engarrafamentos no centro da cidade e outros em que podia dar largas ao seu virtuosismo, ao seu gosto pela espectacularidade e aos seus excepcionais sentidos de perspectiva e de observação. O "Cincinnati Enquirer", no qual também assinou ilustrações humorísticas, viu nascer a sua primeira banda desenhada, "The tales of the Jungle Imps of Félix Fiddle", em 1903. Pouco tempo depois partia para Nova Iorque, onde continuou a ilustrar editoriais, cartoons e caricaturas políticas e também banda desenhada. Assim, a partir de 1904, encontrámos "Mr. Goodenough" e "Dream of the Rarebit Friend", no "Evening telegram", "Sister's Little Sister's Beau", "Phurious Phinish of Phoolish Philipe's Phunny Phrolics" e "Little Sammy Sneeze", no "New York Herald", e, no ano seguinte, "A Pilgrim's Progress by Mister Bunion", no "Evening telegram" e "Story of Hungry Henrietta", de novo no "New York Herald". Destas destacam-se duas protagonizadas já por crianças, antevendo aquele que seria o seu maior sucesso, "Little Sammy Sneeze", as desventuras de um miúdo possuidor de um espirro com uma invulgar potência destruidora que, por isso, acaba invariavelmente expulso, muitas vezes a pontapé, do local das suas devastações, e "Story of Hungry Henrietta", uma menina insaciável que por isso espalha à sua volta o terror, e ainda " Dream of the Rarebit Friend", que tem por base não sonhos mas intensos e estranhos pesadelos, causados pelo recorrente abuso de um fondue de queijo por parte do protagonista.Finalmente, a 15 de Outubro de 1905, os leitores do "New York Herald" descobriam pela primeira vez "Little Nemo in Slumberland", aparentemente uma série tematicamente bastante limitada porque, em cada prancha, encontramos Nemo, numa situação que muitas vezes não sabemos se corresponde à realidade ou ao sonho, para no final o descobrirmos a acordar da fantasia que vivera no seu sono, quase sempre caindo abaixo da cama - muitas nódoas negras deve o pequenote ter coleccionado…!
Assim, na prancha inaugural de 15 de Outubro, vemos Omp, um emissário do rei Morfeus, a acordar Nemo para solicitar a sua presença perante o soberano. Apresenta-lhe um cavalo que Nemo monta de imediato, enquanto é avisado que não o deve forçar a correr demasiado.Começando a cruzar-se com estranhas parelhas, um canguru montado por um macaco, um porco por um coelho ou um cão por um sapo, Nemo entusiasma-se perante o desafio de uma corrida, acabando derrubado pela sua montada numa queda sem fim que termina… no chão do seu quarto, pois tudo não passara de um sonho, concluído com uma queda da cama. Na semana seguinte, o emissário regressa, fazendo a cama de Nemo afundar-se no chão, descobrindo-se este perante um palhaço que o leva po
r uma densa floresta de cogumelos de empilhar que desabam quando Nemo se descuida e se encosta a um deles, desatando aos gritos com medo de ficar soterrado e… acordando mais uma vez na sua cama. Esta situação repetir-se-ia semana após semana, terminando cada sonho com o regresso à realidade palpável da cama ou do chão onde esta assentava.
Mas aquela aparente limitação temática revelar-se-ia enganadora e, convidado primeiro pelo Rei Morfeus e mais tarde pela sua filha a princesa, Nemo, só seis meses e muitas aventuras e desventuras - muitos sonos e bruscos despertares - mais tarde, transpõe os portões de Slumberland, tendo, no entanto, de esperar até 8 de Julho de 1906 para conhecer a princesa. No entretanto, travara conhecimento com o pérfido anão Flip, que por todos os meios o tentara impedir de conseguir os seus objectivos, mas que mais tarde se tornará seu amigo e companheiro inseparável, dele e da princesa, constituindo com o canibal (!) Imp os protagonistas da onírica prancha dominical. As sucessivas visitas do pequeno Nemo à terra dos sonhos revelam-se fonte inesgotável de aventuras e descobertas, recheadas dos mais estranhos e deslumbrantes cenários, seres e personagens. Gigantes e anões, palhaços e saltimbancos, animais falantes, outros mais reais, encarnações de lendas e superstições, dragões, sereias e tudo o mais que poderia encher os sonhos de um miúdo de então. Cenários, seres e personagens de sonho, de puro sonho, apetece escrever. Para começar as histórias - cada sonho - o início é o mais diverso e inaudito possível: pode ser o aparecimento de um emissário de Morfeus, a cama de Nemo a afundar-se no chão ou boiar num mar caseiro, elevar-se a casa no ar engolida por um gigantesco peru, ser soterrada por uma tempestade de neve, aparecer como refúgio de um leão ou de um interminável bando de Nemos, etc., etc.. E, com o passar do tempo, cada vez mais McCay faz da última vinheta de cada prancha apenas uma espécie de "(continua)", porque, se nos primeiros tempos, em cada semana Nemo vive um sonho mais ou menos isolado de todos os outros, progressivamente o leitor aprende que na semana seguinte o sonho de Nemo continuará onde foi deixado - não é com isto que sonhamos todos nós, quando acordamos a meio dos nossos melhores sonhos? Com isto, também, McCay dava ao mundo dos sonhos existência própria, porque este não desaparecia com o final de uma prancha - de um sonho - ficava apenas suspenso até à primeira vinheta da página seguinte, uma semana depois… Um aspecto - as histórias em continuação - em que McCay também foi pioneiro, pois este foi um sistema que levaria muitos anos a estabelecer-se como hábito nas histórias em quadradinhos.
Graficamente, "Little Nemo in Slumberland" é difícil de descrever, pois todos os adjectivos parecem limitados para o qualificarem. Deslumbrante, fabuloso, inovador, único, moderno, são os que primeiro me ocorrem. Mais a mais se considerarmos que a banda desenhada, enquanto forma de expressão não contava ainda dez anos (pela data oficial, estabelecida quase um século depois!), embora as suas primeiras manifestações, com o sentido que hoje lhe atribuímos, tivessem ocorrido há já mais de meio século. Em termos gráficos, no Little Nemo de McCay encontrámos do mais inovador, arrojado e surpreendente que a banda desenhada já nos deu. Artisticamente pode ser considerado exemplo acabado de Art Nouveau. Em termos de banda desenhada pura e dura, é verdade que nos primeiros tempos, McCay parece algo hesitante em relação ao funcionamento da forma de expressão que escolhera. Numera (desnecessariamente) vinhetas para estabelecer o sentido de leitura, explica em cartuchos de texto por baixo das imagens o que estas descrevem na perfeição, mostra alguma dificuldade em gerir os balões de fala. Questões que virão a revelar-se menores e que desaparecerão progressivamente para dar lugar a um autor que demonstra um invulgar à-vontade com a planificação.
Em Little Nemo a disposição das vinhetas pela prancha é sempre imprevisível, sendo poucas as pranchas que surgem divididas da mesma forma. McCay tanto segue um esquema mais tradicional, com sucessivas vinhetas regulares, como utiliza vinhetas horizontais e/ou verticais para dar dimensão aos seus mundos de sonho ou situar as personagens - e com elas o leitor - em relação aos elementos do sonho que se deslocam, utiliza vinhetas adjacentes com uma única imagem de fundo, através das quais as personagens se vão deslocando para dar sensação de movimento. Tem pranchas com duas dezenas de vinhetas enquanto outras explodem em meia dúzia ou menos, transforma as letras do título em alimento para Nemo e os seus amigos, faz de vinhetas caleidoscópios ou desenha-as como se os seus heróis fossem vistos em vulgares espelhos deformadores dos que é comum encontrar nas feiras ou parques de diversões (que tanto o atraíam), representa um palácio de lado e depois de pernas para o ar, obrigando as personagens, tão espantadas quanto o leitor, a escolherem novos "pisos" para colocarem os seus pés, sejam eles janelas, paredes ou o que antes era tecto, usa e abusa (no bom sentido) de perspectivas invulgares, apresentando as suas personagens de quase todos os ângulos possíveis e imaginários, brinca até com os próprios ícones que criou, sendo o exemplo mais evidente a famosa prancha de 26 de Julho de 1908 em que a cama de Nemo ganha vida, levando-o em passeio com as suas longas pernas."Little Nemo in Slumberland" teria diversas vidas. A primeira, iria até 1911, quando terminou o contrato de McCay com o "New York Herald", transferindo-se então o autor com armas, bagagens e heróis para o "New York American", onde a série prosseguiria até 1914, rebaptizada "In the land of Wonderful Dreams". McCay retomá-la-ia entre 1924 e 1926, ficando, pelo meio, um musical inspirado nela, em 1908, e um filme de animação de três minutos, em 1909, outra arte em que Winsor McCay foi pioneiro e mestre - havendo mesmo quem compare a sua importância à de Disney - destacando-se nesta sua faceta artística a curta-metragem "Gertie, the (trained) dinosaur". Nos anos 30, o filho de McCay tentou, sem sucesso público nem capacidade artística, retomar a série, numa experiência de curta duração, já o seu pai falecera, inesperadamente, a 26 de Julho de 1934. As histórias de McCay seriam . pontualmente, recuperados por alguns jornais ao longo dos anos, ou compilados das mais diversas formas e tamanhos, em edições mais ou menos dignas.
Surpreendentemente, "Little Nemo in Slmberland" chegou também a Portugal. Estávamos no princípio dos anos 90 e os Livros Horizonte participaram na co-impressão que reuniu uma dúzia de países, de uma edição organizada e prefaciada por Richard Marschall.
Porque não éramos merecedores de tanto, porque a edição em capa dura, com sobrecapa colorida e bom papel tinha um preço demasiado elevado para os bolsos lusos ou por qualquer uma das outras razões misteriosas que abundam no mundo da edição de banda desenhada em Portugal, a verdade é que dos quatro volumes previstos, apenas dois, correspondentes às pranchas publicadas originalmente entre 15 de Outubro de 1905 e 30 de Agosto de 1908, viram a luz do dia (e se encontram ainda, com alguma facilidade, em algumas livrarias ou em feiras de saldos).
Agora, tantos anos passados, "Little Nemo in Slumberland", umas tantas páginas aos quadradinhos, velhas de 105 anos, fará ainda sentido? Não na obrigatória evocação do clássico, não na defesa e apresentação de uma obra que é intemporal (passe o paradoxo que se segue), mas na actualidade dessa mesma obra, na sua legibilidade, hoje, em 2010? O primeiro impulso é responder sim, claro, qual é a dúvida. Pelo pouco que atrás ficou escrito, por tudo aquilo que a sua leitura revela. Mas, tematicamente, serão os sonhos de Nemo - de McCay - ainda sonhados hoje? Sonharão os mais novos, ainda, com mundos encantados e princesas encantadoras, anões e gigantes, palhaços mil, com mundos maravilhosos, palácios faustosos, com o inenarrável e prodigioso universo com que McCay deslumbrou Nemo e os seus muitos leitores? Serão estes sonhos ainda capazes de encantar as novas gerações? A resposta custa a escrever, mas penso que é não.
Infelizmente - por nossa culpa, também por nossa culpa - o imaginário infanto-juvenil de hoje em dia perdeu muito - tudo? - da pureza, sensibilidade e encanto que tinha há um século e que McCay tão bem soube captar e expor no papel. A violência, a falta de valores humanos, éticos e morais, o orgulho, o preconceito, a omnipresença do sexo pelo sexo, o elogio da imbecilidade, ocupam-no hoje (quase?) na totalidade. Fazem de pesadelo aquele que devia ser um mundo de sonho, na idade dos sonhos. Definitivamente? Não sei. A resposta caberá a cada um de nós, pais, tios, professores, adultos, "escrevinhadores" de jornais e blogs e tantos outros…
Mas acredito que a leitura de "Little Nemo in Slumberland" poderá contribuir para o modificar. Bons sonhos!

(Versão revista do texto publicado originalmente no BDJornal #6, de Outubro de 2005)

14/10/2010

Banksy cria abertura polémica para os Simpsons

Foi mostrada no passado domingo nos EUA, aquela que pode ser a mais polémica sequência da série de animação The Simpsons. O responsável por ela é Banksy, o grafiter britânico que foi convidado para recriar o gag da sequência de abertura do 3º episódio da temporada 22, intitulado “Money Bart”.
Para além de ter assinado o seu nome pela cidade de Springfield, o artista pôs Bart a escrever no quadro (e por toda a sala de aula) a frase “não devo escrever nas paredes”.
No entanto, é quando a família se senta no sofá, que surge a sequência polémica, com um minuto de duração e uma banda sonora triste. Nela, em cavernas sujas, cheias de ossos humanos e ratos, vêem-se crianças e jovens asiáticos a fabricarem o merchandising da série, desde os negativos da animação, até DVD’s, t-shirts e peluches, que são cheios com pêlo de gatos mortos na hora. Estes não são os únicos animais maltra-tados, pois pandas, golfinhos e até unicórnios são utilizados pelos trabalhadores.
No final é revelado que tudo se passa dentro do edifício da própria Fox, a estação que transmite a famosa série de animação. À BBC, Banksy revelou que a abertura deu origem a uma série de discussões e atrasos, tendo havido mesmo ameaças de demissão entre os responsáveis pela animação.

O vídeo está disponível no Youtube.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 12 de Outubro de 2010)

13/10/2010

Amadora BD 2010

A 21ª edição do Amadora BD - Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora - vai decorrer de 22 de Outubro a 7 de Novembro e, a exemplo dos últimos anos, o seu núcleo central, estará localizado no Fórum Luís de Camões, na Brandoa.
Como já tinha sido divulgado o seu tema é “O Centenário da República”, revisitado através de uma viagem cronológica de mais de um século pelas obras dos artistas nacionais que abordaram o tema. “Os Caretos da República”, caricaturas de Pedro Ferreira, Carlos Laranjeira e Ricardo Galvão, e as obras participantes no Concurso de BD, são duas outras visões da República aos quadradinhos, complementadas pelo making of do livro “É de Noite que faço as Perguntas” (a lançar durante o festival), escrito por David Soares e desenhado por Richard Câmara, Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho e Daniel Silvestre Silva, uma narrativa ficcional que segue com rigor a história e cronologia republicanas, tendo início em 1891, na sequência do Ultimato Inglês, e terminando com o desfecho do Golpe Militar de 28 de Maio de 1926.
Fernando Bento, cujo centenário do nascimento se comemora no próximo dia 26, um autor de traço personalizado e original, cujas adaptações literárias marcaram gerações de leitores de revistas como “O Diabrete” ou “O Cavaleiro Andante”, será outro dos grandes destaques do evento.
Como é habitual, haverá mostras dedicadas aos vencedores dos Prémios Nacionais de BD de 2009, os belgas François Schuiten e Benoit Peeters, criadores das “Cidades Obscuras” e os portugueses Luís Henrique e José Carlos Fernandes, distinguidos pelo livro “A Metrópole Feérica”. Richard Câmara, autor do desenho original do cartaz e dos diversos materiais gráficos será o autor nacional em destaque.
O Fórum Luís de Camões acolhe igualmente mostras individuais de Cristina Sampaio, Paulo Monteiro, Korky Paul, autor de “A Bruxa Mimi” e Sean Gordon Murphy, desenhador de “Joe the Barbarian”.
“Lusofonia - A Nona Arte em Língua Portuguesa”, revela como as particularidades da língua portuguesa são utilizadas por Nuno Saraiva (em Portugal), Jô Oliveira (Brasil), Lindomar Sousa (Angola) e Zorito e Machado da Graça (Moçambique). Já “City Stories” aborda os resultados de uma residência artística dinamizada pelo festival de BD de Lodz (Polónia), com Moscovo, Londres, Lyon, Lucca e Amadora.
Como é habitual, o festival, que contará com a habitual feira do livro, sessões de autógrafos e lançamento de diversas obras, vai levar os quadradinhos a diversos espaços da cidade, nomeadamente a Galeria Municipal Artur Bual (com uma mostra de Luís Diferr) e os Recreios da Amadora (Augusto Cid, Vangelis Pavlidis e Jean Plantu).


(Versão integral do texto publicado no Jornal de Notícias de 13 de Outubro de 2010)

12/10/2010

John Cullen Murphy’s Big Ben Bolt Dailies Volume One – Feb 20, 1950 to May 24, 1952

Elliot Caplin (argumento)
John Cullen Murphy (desenho)
Classic Comics Press (EUA, Agosto de 2010)
280 x 215 mm, 250 p., pb, brochado

Resumo
Assinalando os 60 anos da criação de Big Ben Bolt, este álbum compila as primeiras 708 tiras diárias do pugilista, correspondentes a pouco mais de dois anos de publicação.
Nele vamos conhecer o jovem Bolt que nasceu “num país cujo nome não é importante – basta dizer que não são os Estados Unidos da América. Num país de onde gostaria de escapar qualquer homem com um forte amor pela democracia e pelas suas instituições livres”, como se lê logo na primeira vinheta!
Depois, aos poucos, conhece-remos também Spider Haines, antigo pugilista e futuro manager de Bolt; Charity, a mulher por quem se vai apaixonar; os seus tios que o acolherão na América com que ele tanto sonha… E os diversos adversários que vai enfrentar – dentro e fora do ringue.

Desenvolvimento
Conheci Big Ben Bolt – na altura ainda era o “campeão português” Luís Euripo e Spider Haines dava pelo nome de Zé Gomes (!) – nas páginas do Mundo de Aventuras, mas confesso que então esta não era uma série que me enchesse as medidas.
(Re)descobri-la agora, na (longa) (re)leitura sistemática das tiras diárias publicadas ao longo de dois anos foi para mim uma agradável surpresa.
Por um lado, porque sendo o boxe o meio no qual Ben Bolt se move, as histórias vão muito para além dos simples combates em si. De uma maneira geral – a excepção é o entreacto (inacabado, pois o seu final é algo inconclusivo?) no qual Bolt conhece Eve e o seu protector - são histórias bem escritas, construídas e desenvolvidas. Os seus intervenientes são bem humanos, com os seus defeitos e qualidades, raramente correspondendo aos habituais estereótipos de “bons” ou “maus”. O próprio herói tem dúvidas, erra por vezes, hesita nas decisões s tomar. A par do boxe, Bolt tem que “enfrentar” os seus amigos, os seus sentimentos, aqueles com quem se cruza e que de uma forma ou de outra se querem aproveitar dele, seja um manager que quer controlar a sua carreira, uma corista em busca de publicidade, um gansgter em busca de vingança ou uma mulher mimada. Tanto é assim, que os diversos episódios apresentados – alguns deles bem à margem dos combates – não têm repetições nem grandes pontos em comum. Cada história é uma nova história que serve para Bolt, Spider e Charity estreitarem os seus laços e crescerem enquanto personagens credíveis e humanas.
Por outro lado, se são vários os combates mostrados neste primeiro tomo, não há dois que decorram da mesma forma, nem dois que terminem da mesma maneira. É verdade que Bolt vence (quase) todos, mas a forma como o consegue, as motivações que o movem e o levam à vitória são diversos, como diversas são as reacções dos derrotados. Por isso, também, este é um belo retrato do mundo do boxe nos EUA na década de cinquenta do século passado, com todas as suas virtudes e os seus podres. E também um belo retrato de uma época e de um tempo que hoje nos parece estranho em muitos aspectos.
Finalmente, se nunca fui adepto do boxe e me custa a compreender como é considerado um desporto, confesso que vibrei com alguns dos combates, tanto pela forma como estão (d)escritos, quer (especialmente) pela forma como Cullen Murphy os encena com uma plasticidade, uma beleza e uma elegância assinaláveis, transformando-os em algo que é ao mesmo tempo duro e violento, mas também suave e delicado, agradável de ver na graciosidade dos dois combatentes, conseguindo fazer com que cada combate durasse semanas (ou aqui páginas) sem que isso canse ou desmotive o leitor.

A reter
- Mais um “integral” para a minha biblioteca, hoje em dia, sem dúvida, a melhor forma de (re)ler os grandes clássicos da BD. Sejam eles franco-belga ou norte-americanos. Ou de outra qualquer nacionalidade, como demonstrarei em breve aqui.
- A qualidade literária das histórias.
- O magnífico traço de John Cullen Murphy, em especial na composição dos combates de boxe.
- O bom preço de $24,95, que garante várias horas de (muito) boa leitura.

Menos conseguido
- Eu sei que nem todos são como Manuel Caldas e se dedicam de alma e coração à restauração dos originais e que por vezes é difícil encontrar originais/prints/cópias de qualidade para reproduzir, mas a qualidade da impressão das tiras até 30 de Dezembro de 1950 (ou seja até à página 101 da corrente edição) é bastante fraca. Depois – milagre! – volta-se a página e o traço fino e detalhado de Murphy surge em todo o seu esplendor em praticamente todas as restantes páginas da edição.
- A falta de uma capa cartonada que valorizaria muito a edição. Mas que faria o seu preço subir dos actuais $24,95 para valores menos interessantes…
- A existência de 7 (sete) páginas em branco no final do volume que, no mínimo poderiam ter servido para publicitar melhor o próximo tomo ou as outras edições similares da Classic Comics Press: Mary Perkins on Stag e The Heart of Juliet Jones.

Curiosidades
- Eliot Caplin, o argumentista, seria também co-criador de The Heart of Juliet Jones e do Dr. Kildare, duas séries que fizeram sucesso nos jornais portugueses, respectivamente em O Primeiro de Janeiro e no Jornal de Notícias.
- John Cullen Murphy desenhou Big Ben Bolt até 1977, deixando-o para substituir Harold Foster em Prince Valiant.
- As próximas edições previstas pela Classic Comics Press são as compilação das tiras diárias de Rusty Riley, de Frank Godwin, e de outro herói que fez as delícias dos leitores portugueses, o cowboy romântico Cisco Kid, do argentino José Luís Salinas. Os respectivos volumes iniciais, correspondentes aproximadamente aos dois primeiros anos de cada série, estão previstos para o final de 2010 e a Primavera de 2011.

11/10/2010

As aventuras de Spirou e Fantásio #51 – A invasão dos Zorcons

Vehlmann (argumento)
Yoann (desenho)
Hubert (cor)
ASA (Portugal, Setembro de 2010)
218 x 300 mm, 56 p., cor, cartonado


Resumo

De regresso de um festival onde foram representar a revista que publica as suas aventuras (!), Spirou e Fantásio recebem uma chamada urgente do Conde de Champignac, informando que a sua propriedade está cheia de monstros. Dirigem-se de imediato para lá, descobrindo que a pacata localidade foi considerada zona de guerra e está transformada numa floresta com fauna e flora muito estranhas, como se a natureza tivesse de repente endoidecido.

Desenvolvimento
Novos “detentores” da série Spirou, Vehlmann e Yoann tinham uma difícil missão: recuperar os amantes das versões de Franquin e de Tome e Janry e agradar também aos novos leitores, geralmente mais vocaccionados para o manga. Ou seja, ter êxito onde Morvan e Munuera falharam (comercialmente), apesar do sucesso obtido junto de alguma crítica.
Para agradar aos primeiros, foram buscar diversos elementos que fazem parte da “memória Spirou”: o Conde de Champignac e as suas extraordinárias invenções, um ou outro habitante da pacata localidade, o (nem sempre) pérfido Zorglub com o zorglumóvel, a zorgonda e a fixação pela Lua…
Aos outros, os novos, é oferecida uma história com diálogos divertidos e ritmo acelerado, que se adivinha bebido na dinâmica típica do manga, com um traço menos “abonecado”, mais próximo do semi-realista, muito expressivo mas também mais duro e agreste (também devido aos rons mais sombrios que predominam), mas com muitas vinhetas demasiado preenchidas e, por isso, menos legíveis.
Leitor fiel de banda desenhada franco-belga há muitos anos, sempre considerei Spirou um caso à parte num campo em que impera a BD de autor. Porque o eterno paquete de hotel desde tempos (quase) imemoriais (!) foi passando de mão em mão, em minha opinião perdendo qualidades desde o período de Franquin, pese embora um ou outro álbum esporádico bem conseguido. Por isso, e sabendo daqueles pressupostos iniciais, abordei o álbum com algum receio, mas também embalado por algumas críticas positivas que entretanto lera. E confesso que cheguei ao fim da leitura dividido. Entre uma interessante aventura de acção e humor e um Spirou demasiado atípico (se ainda é possível escrever isto).
Por um lado, desiludido por uma intriga demasiado linear, e algumas opções – o uso de uma armadura por Zorglub, o esquema final que resolve o problema do bombardeamento – pouco credíveis, simplistas ou pura e simplesmente irrelevantes. Por outro, tendo gostado bastante do espírito da história e do cenário pré-histórico/pós-apocalíptico em que a maior parte da acção decorre, extrordinariamente bem delineado num número reduzido de pranchas, bem como do ritmo de leitura imposto.
Suficiente para o recomendar a outros? Sim, pela curiosidade de que o álbum se reveste. E porque penso que cada leitor de Spirou é “um” leitor, caberá a cada um formar a sua própria opinião.

A reter
- O piscar de olhos gráfico às soberbas “Ideias Negras”, de Franquin.
- A ironia da utilização por Fantásio e Spirou de um ridículo boneco insuflável gigante com a imagem deste último.
- Os cenários, conforme já descrito atrás.
- Os diálogos bem conseguidos.

Menos conseguido
- A história, demasiado despida de contornos e pormenores que a enriqueçam.
- As duas suecas (!) que acompanham o conde. A sua presença e o seu papel na história são completamente irrelevantes e desnecessários.
- Se as edições com capa especial da FNAC têm sido uma mais valia (têm pelo menos todo o potencial para o serem), Yoann revelou muito pouco inspiração (ou vontade de trabalhar), criando uma capa alternativa que pouca diferença faz da original.

08/10/2010

Maurício de Sousa candidato à Academia Paulista de Letras

Maurício de Sousa, o criador da Turma da Mônica é um dos mais fortes candidatos ao lugar vago existente na Academia Paulista de Letras, devido ao falecimento do poeta e jurista Geraldo Vidigal no final de Agosto. A candidatura foi apresentada pelo pai da Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali no início deste mês, cujas obras são actualmente publicadas em 30 países.
A iniciativa está a dividir opiniões. A favor estão aqueles que reconhecem a Maurício, hoje com 75 anos de idade e meio século de carreira nas “histórias aos quadrinhos” brasileiras, o mérito de ter dado um contributo fundamental para a educação e para o desenvolvimento da leitura no Brasil, através da influência que as suas criações tiveram – e continuam a ter - ao longo de várias gerações, e também pelo apoio que tem prestado a campanhas educativas e sociais, para a Unicef, a Unesco e diversas outras organizações.
Contra, têm-se mani-festado os que não reconhecem valor literário à banda desenhada ou consideram que a obra do desenhador e argumentista tem principalmente intuitos comerciais.
A decisão só será conhecida no próximo dia 2 de Dezembro, quando terá lugar a eleição do novo ocupante da cadeira 24 da Academia, sendo de esperar que a polémica continue até essa data.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 3 de Outubro de 2010)

07/10/2010

Dragon Ball #1 – Son Goku e Dragon Ball #2 – O fim da busca


Akira Toriyama (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Outubro de 2010)
120 x 180 mm, 192 p., pb, brochado


Resumo

Continuando a apostar na edição de manga, a ASA, depois do excelente Astroboy, aposta naquele que foi um dos títulos mais importantes para o estabelecimento da relação entre o manga (e o anime) e os seus seguidores ocidentais: Dragon Ball.
Na sua origem (correspondente aos dois tomos que agora ficam disponíveis) está a busca de 7 bolas – as Dragon Balls ou Bolas do Dragão – que uma vez reunidas permitem ao seu possuidor ver realizado um desejo.
Nessa busca, mais ou menos voluntariamente, mais ou menos juntos, vão encontrar-se Son Goku, Bulma, Oolong, Yamcha e Puar.

Desenvolvimento
Criada nos anos 80 por Akira Toriyama, Dragon Ball é, na sua origem, bastante diferente da série animada que tanta polémica e contestação causou aquando da sua exibição inicial no Ocidente, devido à associação do seu visionamento a alguns casos de violência infantil surgidos então, com legiões de educadores, pedagogos e pais a exigirem o final da sua exibição. Em causa estava a extrema violência dos combates entre os personagens, que se podiam prolongar por diversos episódios (horas, portanto) sem que deles adviessem consequências físicas para heróis e vilões o que, segundo os críticos da série, transmitia a ideia de invulnerabilidade do ser humano, mesmo perante a morte, pois alguns dos protagonistas chegavam a ressuscitar.
No entanto, desengane-se quem tem como modelo a série televisiva, pois a versão em manga é bastante mais suave e divertida, justificando plenamente (pelo menos) a satisfação da curiosidade por parte de quem a desconhece.
O protagonista é Son Goku, um miúdo semi-selvagem, com cauda de macaco, que vive sozinho na montanha, desconhecendo tudo o que diz respeito à civilização, incluindo a existência de mulheres, com as suas especificidades físicas. Este último aspecto dá origem a uma série de situações inusitadas e divertidas, a maioria dos quais envolvendo Bulma, a adolescente de 16 anos que quer reunir as 7 bolas para pedir um namorado.
Pelo meio vão surgi Oolong, um porco que consegue transformar-se no que quiser durante cinco minutos e com uma fixação em cuecas de menina, Yamcha, o lutador que fica atemorizado junta das raparigas, Puar, o seu companheiro, com poderes semelhantes aos de Oolong, e o tartaruga genial, um velho mestre de artes marciais obcecado pela anatomia feminina. Desta forma, vão sendo recorrentes alusões e piadas mais ou menos brejeiras - mas que não deixam de surpreender – embora muito suaves e contidas e há mesmo a exibição (pudica e recatada) de alguns elementos da anatomia feminina.
Durante a sua busca pelas 7 Bolas do Dragão – após cada desejo satisfeito as bolas são de novo espalhadas pelo mundo inteiro, perdendo o seu poder durante um ano – Son Goku e os seus amigos (cada um com um desejo especial em mente) vão encontrar diversos obstáculos e adversários, quase todos vencidos pelo pequeno Goku, que se revela um exímio combatente.
O traço de Toriyama, um japonês nascido em Abril de 1955, em Nagoya, semi-infantil e arredondado, é bem mais agradável do que o traço duro e agreste da série televisiva, e, como é vulgar no manga, utiliza com mestria a planificação e as linhas indicadoras de movimento para dotar de ritmo acelerado e grande dinamismo toda a narrativa, que combina elementos de ficção científica, fantástico e magia e retira alguma inspiração de contos tradicionais infantis.
A história da busca – com um final surpreendente e desconcertante, com mais do que um desejo satisfeito - como já ficou dito atrás conclui-se no final do segundo tomo, embora fique aberta a porta para novas aventuras, que se seguirão ao longo de muitas centenas de páginas, ou não estejamos em presença de um relato manga…!
Deixo um conselho: se não conhece Dragon Ball aos quadradinhos, compre (pelo menos) estes dois tomos. Atreva-se a descobri-lo, pois vai ter uma bela surpresa.

Curiosidade
- Aproveitando o êxito da exibição televisiva, em 2001 a Planeta De Agostini distribuiu em Portugal o manga Dragon Ball, no seu habitual esquema de fascículos disponíveis em quiosques, em 42 volumes semelhantes aos actuais, num formato ligeiramente mais pequeno e com papel mais fraco. Esta edição é muito difícil de encontrar hoje em dia, supostamente porque as sobras foram destruídas. A actual edição da ASA tem cerca de uma dezena de páginas a mais por volume, devido à introdução de índices e de capas e ilustrações publicadas originalmente na revista nipónica “Weekly Shonen Jum” onde Dragon Ball foi publicado pela primeira vez.
- Tal como Astroboy, esta edição de Dragon Ball tem sentido de leitura japonês, ou seja, do fim do livro para o princípio (em relação ao que é normal no Ocidente) e da direita para a esquerda. Se nunca experimentou, não se assuste; para quem está habituado a ler banda desenhada, é mais fácil do que parece!
- Uma vez completa a colecção, o conjunto das lombadas formará a imagem de um dragão.

Informação
- O tomo 1 vai ser vendido com o Diário de Notícias, no dia 9 de Outubro.
- O tomo 1 e tomo 2 começam a ser distribuídos hoje, 7 de Outubro, e deverão estar em todas as livrarias até dia 12. O tomo 3 chega às lojas em Novembro. A partir de Janeiro de 2011 será distribuído um tomo por mês.
- Está garantida a publicação de 16 tomos, correspondentes à saga Dragon Ball; no tomo 17 inicia-se o ciclo Dragon Ball Z.

06/10/2010

Local

Brian Wood (argumento)
Ryan Kelly (desenho)
Delcourt (França, Setembro de 2010)
173x264 mm, 328 p., pb, brochado com badanas


Resumo

Local é um “road-book” que conta as viagens de Megan McKeenan através dos Estados Unidos, de um extremo ao outro do continente. E que, narrando a sua história – excertos dela, pelo menos – narra também a história das personagens com quem a jovem se cruzou.

Desenvolvimento
A vida de Megan é estranha. Reflexo, com certeza, de muitas outras vidas, de muitas outras jovens norte-americanas (ou ocidentais) sozinhas em busca de um futuro e de descobrirem quem são.
Incapaz de criar raízes, de estabelecer relações – profissionais, de amizade ou com o sexo oposto – estáveis e duradouras, colecciona profissões menores e sem futuro, cursos inacabados e locais de vida, uns após outros, à medida que sente o vazio apoderar-se de si. Ou que as histórias que quis viver, começam a aproximar-se demasiado daquilo que geralmente se define como “vida normal”, com a devida dose de responsabilidade, compromisso e dedicação.
Por isso, erra pelos Estados Unidos, mostrando-nos tanto cidades grandes como pequenas, revelando num retrato breve delas os seus estereótipos (menos) e especificidades (mais), cruzando-se com gente normal e outra que nem tanto.
Entre os 20 e os 30, bonita sem deslumbrar, envelhecendo e amadurecendo ao longo do relato, Megan junta, sem dúvida, histórias suficientes. Algumas bem bizarras, para um dia contar aos seus netos. Ou não, porque não parece ser esse um dos seus objectivos de vida e algumas estão longe de ser apropriadas para crianças.
Ela - como nós – parece desconhecer o que procura. Ou aquilo de que foge… Descobri-lo-á, ao mesmo tempo que o leitor – após um longo périplo que a trará de novo ao ponto de partida. Menos jovem, mais madura, com mais certezas e muitas recordações. Boas e más, experiências de vida, umas procuradas outras surgidas do acaso. “Instantâneos de vidas, fragmentos”, define alguém quase no final do relato, que uma vez “organizados sequencialmente, fornecem uma história, maior do que a soma das diversas partes”. A história da vida de Megan, que fomos acompanhando mas que só faz sentido completo para ela.
Através de Megan, da(s) sua(s) história(s), publicadas originalmente ao longo de três anos, o argumentista Brian Wood traça um retrato aleatório de uma certa América e, em especial, da sua juventude. Uma juventude sem regras nem princípios, perdida em busca de orientação e modelos que a sociedade cada vez menos consegue fornecer. Um retrato contido e sensível, mesmo terno pode dizer-se, onde existe realismo e violência (mais psicológica que física, embora nas duas vertentes), amor e sexo, mas tudo de forma contida, sem gratuitidade nem o objectivo de chocar ou de vender, apenas elementos de vida(s) que ajudam a construir e consolidar a narrativa.
Nela, cada episódio, cada momento, se bem que alguns numa primeira leitura possam parecer “anormais” ou pouco credíveis, têm um propósito, um objectivo, fazem parte de um todo, falam de coisas importantes (do quotidiano, das relações e dos sentimentos dos seres humanos), sobre as quais importa reflectir. Sem afirmar que sabe tudo ou que detém verdades incontestáveis, antes de forma humilde e humana.
Falta falar do desenho de Ryan Kelly, contido, pormeno-rizado e agradável, feito não para deslumbrar mas posto ao serviço da extensa narrativa, pela qual nos leva – nos embala – sem quase darmos por isso.
Até aos episódios finais – que coincidem com o final da busca de si própria por Megan – magníficos, fortes e de grande impacto, notáveis na forma como aplicam no lugar todas as peças do puzzle que foram sendo fornecidas, congregando e moldando tudo o que ficou para trás, fornecendo o justo final para a tal “história de vida”.
Que aconselho vivamente a descobrir.

05/10/2010

Os Meninos Kin-Der

Lyonel Feininger (argumento e desenho)
Libri Impressi (Portugal, Maio de 2010)
330 x 440 mm, 40 p., cor, brochada


Resumo
Os meninos Kin-Der (o letrado Daniel Webster, o comilão insaciável Bocadetorta e o forte Teddy Enérgico), na companhia do seu bassset Sherlock Bones e do autómato Japansky, partem em viagem a bordo de uma banheira (sic). No seu encalço, utilizando um aeróstato, seguem a Tia Jim-Jam e o Primo Gussie, com o objectivo de lhes darem a dose diária de óleo de rícino.

Desenvolvimento
Num mundo ideal não seria preciso dizer que esta é uma obra datada de 1906 - não, não é gralha” – e que o seu autor, Lyonel Feininger, é um célebre artista ligado ao Cubismo e à Bauhaus, de que alguns elementos já podem ser encontrados nesta sua curta (muito curta, para quem gosta de BD…) incursão pelas histórias aos quadradinhos. Todos o saberiam.
Num mundo ideal, não seria necessário falar da história simples e ingénua, ao ritmo de um episódio por pranchas semanal, nem dos episódios de uma simplicidade desarmante, embora com um interessante e conseguido sentido de humor e um ritmo narrativo muito assinalável. Todos os conheceriam.
Num mundo ideal, faria parte do senso comum que o deslumbramento provocado por “Os meninos Kin-Der” se deve essencialmente à sua componente gráfica. Por isso, seria desnecessário referir que cada prancha, embora encaixada na necessária sequência narrativa, funciona como um todo. Ou que a sua planificação varia de semana para semana, entre pranchas de imensa vinheta única aquelas multi-divididas, com vinhetas horizontais e/ou verticais.
Num mundo ideal, seriam por todos reconhecidas pranchas mais experimentais, como a da página 27 em que a acção decorre a dois tempos, no telhado da casa e no seu interior, funcionando a janela do edifício como uma segunda (mini-) prancha integrada no conjunto maior das vinhetas típicas, com formas regulares (quadrados, rectângulos). Ou a divisão da terceira tira (e da respectiva acção) da página 32 em duas vinhetas para prolongar o tempo em que decorre.
Num mundo ideal, o experimen-talismo, a liberdade gráfica, o sentido de composição da prancha de Feininger seriam atributos desta banda desenhada que alimentariam as conversas de todos.

A reter (tanto neste mundo como no ideal)
- A originalidade e modernidade da obra que hoje, mais de um século após a sua criação, se lê com o mesmo prazer e sentimento de descoberta.
- A magnífica restauração dos originais levada a cabo por Manuel Caldas.
- O imponente tamanho da edição e a gramagem do seu papel.
- A excelente e completa introdução de Rubén Varillas que dificultou sobremaneira a escrita deste texto.
- A reprodução de uma prancha em tamanho original incluída na edição para quem a encomendar directamente ao editor, o que aconselho vivamente.

Menos conseguido
- Num mundo ideal, este texto já teria sido escrita e publicada aqui há mais tempo. As minhas desculpas, ao Manuel Caldas e aos leitores de As Leituras do Pedro, em especial àqueles que só após a lerem vão comprar o livro.
- Num mundo ideal, Lyonel Feininger não teria alimentado esta série durante uns poucos meses apenas, mas teria feito dela – e de outras que se lhe seguiriam – o trabalho de toda a sua vida. - Num mundo ideal, a edição incluiria também o integral de Wee Willie Winkie’s World, outra série de Feininger, e teria uma bela capa cartonada em vez de ser uma edição agrafada.
- Num mundo ideal, os jornais norte-americanos (e os dos outros países também…) teriam continuado a publicar bandas desenhadas estimulantes e graficamente arrojadas como esta, neste mesmo imenso formato.
- Num mundo ideal, uma edição como esta não seria uma excepção mas sim a regra nas livrarias portuguesas.
- Num mundo ideal, os exemplares desta edição não seriam apenas umas poucas centenas; ela seria um autêntico “best-seller”. Como não estamos num mundo ideal, longe disso, mas num país chamado Portugal, a única hipótese que temos de nos aproximarmos daquele é comprar e desfrutar desta soberba edição. Futuras edições ideais, como esta, também dependerão disso.
- Num mundo ideal, haveria muitas edições como esta e, por isso, também estantes à sua medida. No nosso mundo real, este é um livro bem difícil de arrumar!

Curiosidade
- Apesar dos seus 33 x 44 cm, maior do que o A3 (!), esta edição reproduz as pranchas apenas a 68 % do seu tamanho original.
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