21/10/2019

Eu, louco

Loucura a granel

Precisamos de perfis ambíguos que abranjam uma larga franja da população… e temos de os dramatizar de forma a encorajar o seu tratamento psiquiátrico...”
In Eu, Louco

E o louco sou eu?”, apetece citar, perguntar, repetir, após a leitura de um livro sobre a normalização da loucura. Ou, melhor, após a leitura de um livro sobre o enlouquecimento da normalidade.
Vamos lá tentar explicar, mas cuidado porque o texto pode dizer um pouco mais do que aquilo que desejam saber…
Ángel Molinos, ex-dramaturgo sem sucesso, acabou a trabalhar numa sucursal de uma empresa farmacêutica. O seu papel - sim, termo provocatoriamente adequado - é criar novos perfis psicológicos de distúrbios mentais que possam ser catalogados e documentados.
Perturbações evidentes a olho nu na nossa sociedade - entendam a ironia - como neofilia, a obsessão por tudo o que é novo ou, em contraste, sempre aconselhável, o misoneísmo, a rejeição do novo e a permanência no passado. Ou, ainda, a nomofobia, a dependência do telemóvel… Com um senão, ele - as ordens superiores são essas - baseia-se em comportamentos normais, quotidianos, massificados num mundo cada vez mais globalizado, para tornar anormal a normalidade, para classificar como loucos os que levam uma vida vulgar. O objectivo? Criar novos medicamentos, novas drogas, que possam ‘tratar’, ‘normalizar’ quem não sabe sequer que está doente - quem não está sequer doente. A Pfizin, a empresa farmacêutica, será grata (?) pelos (muitos) lucros daí advindos…
Atormentado por pesadelos, angustiado com o que faz, Ángel vai quebrar no momento em que um dos seus colegas mais próximos desaparece. A investigação que vai levar a cabo - para poder denunciar ao mundo o que a empresa em que trabalha faz - vai mergulhá-lo numa espiral de (verdadeira) loucura - ou em algo próximo dela - com as intrigas, as ameaças, os jogos sujos e os truques de bastidores a multiplicarem-se e a levá-lo a duvidar de si próprio e da sua sanidade. A engrossar, afinal, o número daqueles que precisam urgentemente de uma droga qualquer… Qualquer, mesmo...

Segundo tomo de A Trilogia do eu - depois do (também) muito recomendável Eu, assassino (disponível em edição portuguesa da Arte de Autor), uma reflexão cínica sobre a morte enquanto forma de arte - este novo livro de Antonio Altarriba - do mesmo modo argumentista do emocionalmente muito forte A Arte de Voar e de A Asa Quebrada - é mais um mergulho incómodo e inquietador no âmago do ser humano, dos seus comportamentos - os naturais e os provocados pelo meio em que vive - que nos obriga a questionar muito mais do que queremos - ou estamos dispostos a fazer.
Em paralelo, há uma denúncia, crua e sem subtilezas - que será tão exagerada quanto isso? - dos motivos e formas de agir da indústria farmacêutica, desde há muito uma das mais ricas e poderosas - e, sim, eu sei, são características que andam (quase?) sempre lado a lado - devido ao seu controlo sobre a vida e/ou a morte de tantos - todos nós? - que dependem dos seus produtos.
Graficamente, o relato foi entregue a Keko, veterano de traço largo e eficaz e uso recorrente de fortes contrastes de negro e branco, aqui e ali salpicados com toques de amarelo forte que destacam ou dão relevância a pormenores que se assumem importantes, e lhe conferem, no seu todo, um tom sombrio e lúgubre.

Antonio Altarriba vai estar presentes no 30.º Amadora BD, entre 25 e 27 de Outubro, e Keko entre os dias 24 e 28 do mesmo mês.

Eu, louco
Antonio Altarriba (argumento)
Keko (desenho)
Ala dos Livros
Portugal, Outubro de 2019
213 x 275 mm, 136 p., pb+1 cor, capa dura
22,90 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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