Com as devidas cautelas, vou mesmo escrever que este álbum - o mítico Transperceneige originalmente publicado na revista (A Suivre) mais do que uma banda desenhada, representa um conceito.
E a prova, se necessário fosse, são
as abordagens tão díspares que permitiu, neste livro que abre a
colecção Novela Gráfica 2020;
no seu segundo volume,
já no próximo sábado;
no filme de Bong
Joo Ho,
de 2013; e
na série televisiva da
Netflix, cuja primeira temporada terminou há poucas semanas.
O tal conceito que referi acima - praticamente o único ponto comum às quatro abordagens - explica-se rapidamente: as alterações climáticas transformaram toda a superfície terrestre num imenso deserto gelado e o que resta da humanidade está confinada a um imenso comboio - com as tais '1001 carruagens'... - que roda sem parar, numa linha circular.
O tal conceito que referi acima - praticamente o único ponto comum às quatro abordagens - explica-se rapidamente: as alterações climáticas transformaram toda a superfície terrestre num imenso deserto gelado e o que resta da humanidade está confinada a um imenso comboio - com as tais '1001 carruagens'... - que roda sem parar, numa linha circular.
Se
bem que seja imenso, o comboio, para lá do aspecto claustrofóbico
que representa - pelos limites espaciais que implica e que devem ter
sido um bico de obra, quer para os autores de BD, quer para os
realizadores de cinema e TV - está dividido por zonas: os dirigentes
e os mais abastados na frente do comboio, juntamente com os vagões
com hortas, aquários, gado e tudo o necessário à sobrevivência
dos passageiros; nas zonas seguintes, vai-se descendo na escala
social, até aos últimos compartimentos onde vivem em condições
degradantes aqueles que na hora da partida, sem bilhete para
entrarem, tomaram de assalto o comboio.
A
partir daqui, as abordagens variam.
O original
O
volume que a Levoir agora apresenta, é o original onde o conceito
foi apresentado e explorado pela primeira vez. Datado de 1982, quando
começou a ser pré-publicado na
revista
(À
Suivre)
-
naquele que alguns
consideram o
período áureo da publicação
-
espelha de
forma evidente as questões sociais que o Maio de 1968 levantara na
sociedade francesa e que continuavam latentes - ou bem mais do que
isso.
A
abordagem de Jacques Lob centra-se nas questões sociais
no interior da composição,
nas injustiças praticadas em nome da ordem e da estabilidade, na
repressão policial e militar que mantém os
extremos a bordo do comboio, da sua cumplicidade com o poder
religioso, fazendo deste relato uma alegoria evidente, não
displicente e em tom acusatório,
do que (um olhar extremado de esquerda) via na sociedade ao seu
redor.
Com
uma certa crueza gráfica - o que está longe de ser sinónimo de
menor qualidade e até surge como um reflexo da desolação branca
que rodeia o veículo e cobre todo o planeta - este livro contém
alguns dos aspectos mais violentos das
diversas
abordagens
- alguns deles plasmados nas versões seguintes.
De
forma algo desencantada, no entanto, Lob dá-nos como
protagonista um fugitivo da cauda do comboio, mais interessado em si
próprio do que em melhorar as condições daqueles com quem habitava
ou em
tornar
mais justa e equitativa a vida a bordo do expresso.
E - em tempo de pandemia - torna-o (ainda?) mais desprezível aos
(nossos)
olhos
(e
aos) da
elite e dos que dela dependem, como origem de um foco de contaminação
que o torna (ainda mais) um alvo...
A
companheira que encontrará no seu percurso, pelo contrário,
revela-se uma verdadeira activista e a conciliação difícil -
impossível? - das suas posturas e motivações
é um dos pontos de interesse da obra, apenas suplantado pelo
pioneirismo do conceito.
E,
atrevo-me a escrevê-lo em tom de ponto final
nesta análise de uma obra que merece ser lida,
pela forma como o argumentista 'resolve' tudo, num final com muita
força, sobre o qual não escreverei (mais) nada.
O
Expresso do Amanhã I
Jacques
Lob (argumento)
Jean-Marc
Rochette (desenho)
Levoir/Público
Portugal, 22 de Agosto de 2020
190
x 260
mm, 128
p., pb, capa dura
10,90 €
(imagens disponibilizadas pela Levoir;
clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Sem comentários:
Enviar um comentário