Estranheza
Estranha-se
desde logo a capa. E depois também um título (aparentemente) tão revelador
sobre o
conteúdo do livro - a exemplo do que acontecia, aliás, em O
Homem que Matou Lucky Luke...
embora no
caso presente
seja bem mais assertivo.
E
num caso e noutro, estranha-se que tão 'depressa' essa morte ocorra.
Num caso e noutro, o morto era uma celebridade: uma lenda do Oeste,
num caso, o mais famoso sniper americano, no outro... Um sniper, um
herói...? Que estranho.
Sim, o Chris Kyle do título, é o sniper Navy SEAL que se distinguiu como recordista do exército norte-americano, com 160 'mortes confirmadas' e outras 95 'não-confirmadas', durante as suas comissões no Iraque - bem como por conta própria, em território dos EUA, por exemplo durante as pilhagens que se seguiram ao furacão Katrina.
Chris Kyle, nascido em 1974, foi assassinado por outro ex-combatente, em 2013. L'Homme qui tua Chris Kyle é um longo documentário que nos apresenta o protagonista e o seu assassino - os protagonistas... - e também o que se passou depois: o choque nacional, a homenagem pública ao herói de guerra, o percurso da sua viúva, Taya Renae Kyle, o julgamento do assassino, o filme de Clint Eastwood inspirado no acontecimento...
Obra inevitavelmente polémica - dada a personagem controversa em que se baseia - é um retrato da América real, do seu fascínio pelas armas e pela vida à medida de Hollywood, que os autores, logo a abrir, definem como a sua 'visão pessoal sobre as mortes de Chris Kyle e Chad Littlefield'. Um álbum demonstra - mais uma vez - a potencialidade da BD para uma faceta pouco explorada: o género documental.
Há uma tentativa dos autores para se restringirem à apresentação dos factos em termos formais mas, a sua escolha, a escolha dos 'factos' mostrados, inevitavelmente 'trai' o seu posicionamento sendo igualmente inevitável 'as apreciações diferentes dos protagonistas representados'.
Tenho seguido o percurso de Nury e Brüno, primeiramente devido ao traço deste último, uma linha clara hiper-estilizada, extremamente depurada que aparentemente não seria o mais indicado para uma obra assumidamente realista. No entanto, esse despojar de pormenores, faz com que o leitor não se perca neles, mas se concentre naquilo que os autores querem destacar: Chris Kyle e o que lhe sucedeu.
Com uma planificação relativamente clássica, onde abundam as tiras com uma única vinheta horizontal, há alguma falta de dinamismo no relato e uma preferência pela repetição de planos - nas várias entrevistas televisivas, especialmente, mas também no julgamento - que servem para reforçar o tom documental adoptado.
Apesar disso - para quem possa aproximar-se da leitura à espera de um outro ritmo narrativo e/ou de um tom mais ficcional - a progressão faz-se em bom ritmo, graças também aos sucessivos avanços e recuos temporais, reduzindo cada cena a duas ou três páginas de BD, com o leitor sempre à espera da surpresa, do volte-face ou de qualquer coisa que seria expectável naquele tipo de BD - mas que na vida real não acontece(u).
Mas, na verdade, só no final, no epílogo que encerra o livro - de uma forma forte e marcante - é que os autores 'escapam' ao papel (aparentemente) isento assumido para, numa sequência de 7 páginas - já usadas no relato e aqui reposicionadas, com texto diferente - nos apresentarem a versão do assassino.
O que, por estranho - pois... - que pareça, permite uma releitura de todo um livro povoado de personagens ambíguas...
...livro que, em termos pessoais, se não implicou mudança de opinião, me levou a reexaminar a questão do uso de armas pessoais na América e algumas das razões invocadas pelos que as defendem.
L'Homme
qui tua Chris Kyle
Fabien
Nury (argumento)
Brüno
(desenho)
Dargaud
França,
Abril de 2020
214
x 284
mm, 164
p.,
cor,
capa dura
EAN:
9782205084672
22,50
€
(imagens disponibilizada pela Dargaud; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
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