17/06/2021

Afghanistan

BD póstuma



Desde que a banda desenhada alcançou o estatuto de arte ou a ele foi elevado por pessoas com notórios intuitos comerciais, bem distantes e distintos de critérios artísticos - a discussão destes pontos de vista opostos mas nem sempre conflituosos poderia ser interessante mas levar-nos-ia longe do propósito desta crónica, cujo tema é, como eu pretendia escrever antes deste longo desvio, a edição póstuma de obras inacabadas.

Ou seja, refazendo o parágrafo acima tal como o tinha pensado inicialmente, temos: Desde que a BD alcançou o estatuto de arte, tem-se tornado comum a edição de produtos que fogem ao perfil habitual no meio em causa, sejam álbuns de tiragem limitada ou os chamados produtos derivados (posters, postais, serigrafias) ou ainda - o tema deste artigo - a edição póstuma sob diversas formas de obras que não foram concluídas devido à morte dos seus autores.

(…) O caso presente, protagonizado por um autor menos conhecido, é Afghanistan, a obra póstuma de Attilio Micheluzzi. O seu visual fica a meio caminho entre o esboço e a prancha terminada, já que as 45 páginas que a compõem alternam entre a vinheta ainda em branco (poucas) ou como o traço a tinta definitivo, passando pelo esboço incompleto e por outras em que a tinta e o lápis coexistem, como indicador de obra inacabada.

O resultado final é, para o leitor, uma fonte rica em pormenores sobre a forma como o autor italiano trabalhava, permitindo conhecer melhor as suas potencialidades e truques. O produto posto à disposição dos leitores mostra um Micheluzzi que, nascido tardiamente para a BD, continuava em evolução, ainda em busca de uma completa definição do traço, mas já senhor de um estilo próprio (ainda que influenciado por mestres como Milton Caniff) e uma técnica a preto e branco bem interessante.

O guião de Afghanistan, uma história passada durante o período que opôs a guerrilha daquele país às tropas soviéticas, revela um autor que traça um retrato pouco abonatório dos ‘invasores’ e das suas posições militaristas e belicistas, quando comparadas com a coragem, a bravura e o patriotismo dos afegãos, o que não o impede de construir um manifesto anti-belicista bem estruturado e plausível.

Um último aspecto a destacar no argumento, é a intervenção directa de Micheluzzi na história, mais uma vez, como comentador em off, para adicionar ao relato as sua posições, ideias (e ideais) que enriquecem a obra e criam uma curiosa cumplicidade com o leitor.

Micheluzzi, falecido em Novembro de 1990, com apenas 60 anos, chegou tardiamente à BD, quase por acidente, após uma carreira de arquitecto em África, e tem em Titanic e Sibérie as suas obras mais marcantes, nas quais se destaca o guião de concepção clássica, sempre complementado por um desenho rigoroso onde é bem patente a sua admiração por Caniff.


[Esta é uma versão retocada e com supressões de um texto publicado no jornal O Primeiro de Janeiro, em Setembro de 1991. Foi escrito na altura a propósito da leitura que fiz de Afgahnistan na revista espanhola Zona 84 #87, da Toutain Editor, e surge agora devido à leitura recente da obra na versão em álbum, das edições Mosquito.]


Afghanistan
Attilio Micheluzzi
Mosquito
França, 2004
230 x 305 mm, 52 p., pb, capa dura

(imagens recolhidas nos sites BDGest e das Edizione NPE; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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