28/06/2021

Contrapaso

Aqui ao lado...


Ao contrário de Portugal, a Espanha - os seus autores - tem sabido explorar os duros tempos da Guerra Civil Espanhola - e da II Guerra Mundial - e aqueles - ainda mais duros…? - que se lhes seguiram sob a ditadura franquista.
Directa ou indirectamente, citando de cabeça e apenas obras editadas em português, lembro A Arte de Voar, A Asa Quebrada, Neve nos Bolsos, A Solidão do Executivo, Os Trilhos do Acaso, O Inverno do desenhador, Soldados de Salamina… E, inevitavelmente, mas em castelhano, Paracuellos ou Los Profisionales, de Carlos Giménez.
Este Contrapaso, da (até agora para mim) desconhecida Teresa Valero, vem juntar-se àquela lote (incompleto) - sem qualquer tipo de favor, mesmo olhando aos nomes e aos títulos referidos.


Sinopse

Em pleno franquismo, um romance gráfico de tom policial, sobre censura - institucional e pessoal - e sobre a questionável actuação de grandes médicos do regime, envolvidos no tráfico de bebés e em experiências para descobrir a origem de anormalidades, como a homossexualidade e o comunismo.


Desenvolvimento

A acção decorre na Madrid de 1956 e tem por protagonistas Emílio Sainz, jornalista veterano, marcado pelos anos vividos, e Léon Lenoir, filho de um comunista morto na guerra civil, de regresso a Espanha após alguns anos em Paris.

Juntos pelo acaso na secção de crimes de um jornal, ambos são movidos pelo desejo de denúncia, num tempo em que os crimes não existiam ou eram rapidamente resolvidos - que é como quem diz, abafados.

À experiência cada vez mais revoltada de um, vai juntar-se o idealismo do outro, com a acção a ser espoletada pelo aparecimento do corpo nu de uma jovem mulher afogada.

A investigação iniciada - contra a vontade do director do periódico - vai levá-los a mergulhar no passado e no lado negro d(e algum)a medicina espanhola de meados do século passado, apostada em enriquecer à custa do tráfico de bebés roubados às mães em clínicas ‘especializadas’ e na ascensão social e política assente na investigação neurológica da propensão de certos indivíduos para desvios à norma - católica, franquista... - como a homossexualidade ou o comunismo.

Segredos esconsos, a multiplicação de cadáveres, amores mal resolvidos, o esconder da verdade a todo o custo vão ser obstáculos no caminho dos dois jornalistas - cujos caracteres diferentes e a desigualdade dos passados próprios provocarão inicialmente antagonismo.

Viagem pela História espanhola, solidamente ancorada numa pesquisa profunda que a autora descreve no final do livro, que lhe permitiu ir mais além da imagem global, para nos transmitir com fidelidade a forma de (sobre)viver da população em geral e não apenas dos que estão em destaque no livro, este é um relato denso, muito consistente e credível, assente em diálogos bem construídos, numa planificação sóbria mas dinâmica de centena e meia de pranchas em que acontece sempre algo e nas quais a autora fornece sempre informação importante ao leitor. Seja ela para fazer avançar o relato ou para o contextualizar na época que ela escolheu.

Obra com implicações psicológicas profundas, que opõe como faces de uma mesma moeda o desencanto de um velho e o idealismo de um jovem, Contrapaso - Los hijos de los otros é uma viagem incómoda a um passado (ainda?) recente, de que ainda existem algumas feridas abertas. E que culmina com uma bela ideia, num final optimista que -sabemos hoje - levou décadas a concretizar.

E se este romance pode ser lido como obra fechada em si mesmo - que o é - o par de páginas finais deixa antever um futuro reencontro com Emílio e Léon, de quem ainda temos muito por saber e conhecer, assim Teresa Valero queira e saiba contar(-nos).


A reter

+ A capacidade da BD espanhola de explorar uma época (ainda) contemporânea, (ainda) traumática e complicada;

+ A solidez narrativa deste romance gráfico, na espessura das suas 150 páginas que são garantia de umas boas horas de leitura estimulante;

+ O que me leva à facilidade com que hoje em dia encontramos obras de banda desenhada desta dimensão (150/200/300 páginas), que garantem ao(s) autor(es) um desenvolvimento pleno e sustentado das suas ideias e das suas personagens, como é o caso;

+ O equilíbrio entre a base histórica e a liberdade ficcional, assente no bom trabalho de reconstituição de época…

+ ...e, inevitavelmente, no magnífico trabalho gráfico da autora, com um traço expressivo, uma planificação clássica mas dinâmica, vinhetas de pormenor importantes que pontuam o ritmo de leitura…

+ .. e um conseguido trabalho de cor, em que as belas aguarelas, predominantemente em tons frios, em consonância com os tempos de pobreza e violência vividos no país vizinho na década de 1950, provocam um choque consciente com o tom negro da narrativa.


Menos conseguido

- Aqui e ali, pontualmente, falta expressividade ou movimento em algumas personagens, questão de pormenor num todo muito bem conseguido.


Contrapaso: Los hijos de los otros
Teresa Valero
Norma Editorial
Espanha, Abril de 2021
240 x 320 mm, 152 p., cor, capa dura
ISBN: 978-84-679-4458-7
25,00

(imagens disponibilizadas pela Norma Editorial; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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