Neve nos bolsos é um relato autobiográfico do espaço de cerca de um ano que Kim - hoje autor de BD - passou na juventude, como emigrante ilegal, na Alemanha, no início da década de 1960.
Olhar para as imagens aqui ao lado ou
folhear o livro, trará de imediato à memória, um outro projecto
com a participação de Kim, o díptico constituído pelo poderoso A
Arte de Voar
e o menos emocional A
Asa Quebrada,
pois o registo gráfico utilizado em Neve
nos bolsos
é o mesmo. Um registo de traço realista, detalhado, algo
conservador na forma, sincero
na reprodução dos cenários e baseado numa planificação
tradicional e contida.
O tom
autobiográfico é também comum aos três livros, tal como aliás o
retrato da sociedade espanhola durante a ditadura franquista que lhes
serve de pano de fundo. O que afasta Neve
nos bolsos
dos dois outros livros - que tinham argumento de Antonio Altarriba -
é o facto de estes traçarem a biografia dos pais do argumentista e
aquele ser narrado na primeira pessoa.
Ao
contrário do que se possa pensar, esse facto não dá mais força
emocional à narrativa, que apresenta um tom (quase) monocórdico e
impessoal, quase como um documentário passivo, que
assim surge de certa forma despojado
da maior parte das emoções que Kim, certamente, viveu.
Por
isso, o contraste é grande, especialmente em relação ao magnífico
A Arte de Voar,
homenagem sentida e emotiva de Altarriba ao seu pai.
Este
facto, não esvazia,
no entanto, o
interesse de
Neve nos bolsos,
que se revela um bom documentário de um momento importante da vida
de muitos espanhóis que - por motivos políticos, familiares,
pessoais ou a simples busca de melhores condições para si e para os
seus - na
época tiveram
de abandonar o seu país - como
também aconteceu a muitos portugueses por razões similares.
No caso
de Kim, recém-entrado na vida adulta, o gatilho da partida foi mais
o desejo de se encontrar e a um rumo para o seu futuro. O
livro abre com a sua partida clandestina, abordando depois a sua
estadia de cerca de um ano na Alemanha, onde a sua situação ilegal
apenas lhe possibilitou arranjar empregos temporários e precários. O que lhe
permitiu também dedicar-se à pintura, o que possivelmente terá
sido fundamental para ser o que é hoje.
Não se
centrando exclusivamente sobre si mesmo - longe disso até - Neve
nos bolsos
ganha em interesse quando Kim partilha o
protagonismo das
suas páginas com alguns dos seus conterrâneos, mais velhos e
vividos, retratando
as situações particulares de cada um e o que os levou a deixar
Espanha: a fuga ao serviço militar, uma caso amoroso descoberto pela
esposa (e pelo sogro!), as tendências sexuais… ou a mais básica
das necessidades humanas: a sobrevivência.
E é no
reconto destes
casos reais, de
pessoas que
se cruzaram com Kim, que a obra se torna mais estimulante e rica, ao
partilhar e expor vícios e necessidades, fraquezas e limitações,
violências e opressões que atravessavam transversalmente a
sociedade espanhola, dando
assim
um retrato mais
rico
e multifacetado de uma época específica.
Neve nos Bolsos
Kim
Levoir/Público
Portugal, 19 de Setembro de 2019
170 x 240 mm, 192 p., pb, capa dura
10,90 €
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