Gil
Vicente (texto original)
Laudo
Ferreira (desenho)
Omar
Viñole (cor)
Colecção
Clássicos em HQ
Editora
Peirópolis (Brasil, Agosto de 2011)
200
x 270 mm, 56 p., cor, brochado com badanas
R$
35,00
1.
Confesso que
não sou fã da utilização do texto integral de uma obra original numa adaptação
em banda desenhada.
3.
Porque
literatura, teatro, cinema ou banda desenhada são géneros narrativos díspares,
com regras e códigos próprios – apesar de alguns pontos de contacto.
4.
Por isso, a
transposição do texto integral de uma obra em qualquer daqueles géneros para
outro, implica sempre a quebras das tais regras e códigos, provocando – no mínimo
– estranheza e prejudicando a sua legibilidade.
5.
No caso do
álbum presente, a situação agrava-se pois estamos a falar de um texto –
magnífico! - com cerca de 5o0 anos, com todas as diferenças de significado e de
grafia que facilmente se imaginam.
6.
Não quero com
isto dizer que não entendo o conceito – que até pode ser louvável – que preside
a esta opção: chamar a atenção dos leitores actuais para obras clássicas.
7.
Mas, mesmo tendo
isso em conta, não me parece que a opção tomada seja a mais indicada. Passo a
explicar porquê:
8.
Primeiro,
porque o esforço a que obriga a leitura do português antigo, facilmente
desencorajará o leitor de hoje. O ganho seria evidente, se a linguagem fosse
actualizada e adaptada ao género narrativo escolhido, respeitando o espírito e
os princípios do magnífico original de Gil Vcente.
9. Depois, porque
se um leitor comum tiver o desejo de descobrir o original videntino,
dificilmente o procurará numa edição aos quadradinhos.
10. Feito este preâmbulo, que já vai demasiado
longo, passemos então à obra em si, a meu ver demasiado penalizada pela opção
editorial de base, uma vez que, graficamente, Laudo Ferreira desenvolveu um
trabalho que (quase) só merece elogios.
11.
Desde logo pela
dinâmica e pela cadência de leitura impostas que – a espaços – conseguem contrariar
as limitações de ritmo provocadas pelo português arcaico.
12. Assente na expressividade física e gráfica
das personagens, na planificação diversificada e no bom trabalho de cor de Omar
Viñole.
13. Também - e muito - porque o seu estilo
caricatural se adequa às mil maravilhas ao tom mordaz e crítico do original de
Gil Vicente, acentuando as características, qualidades e defeitos de cada uma
das personagens-tipo – fidalgo, onzeneiro, parvo, sapateiro, padre, Brísida Vaz,
judeu, etc. - falecidas que buscam a barca que as conduzirá ao paraíso (ou, na
maior parte dos casos) ao inferno.
14. Na verdade, vale a pena perder – ganhar, sem
dúvida – algum tempo a apreciar com mais pormenor cada uma das personagens, com
especial destaque para o barqueiro diabólico.
15.
Veja-se o seu
olhar trocista e malévolo, o ar com que contesta as razões daqueles que recusam
entrar na sua barca, a sua figura imponente, distinta e enganadoramente
acolhedora, o ar triunfal após cada embarque no seu navio…
16. O que no seu conjunto faz dele – bem como de
muitos dos outros - uma personagem extremamente conseguida e que encarna na
perfeição – acredito eu – o que o mestre português tinha em mente quando
escreveu a sua peça teatral.
17.
E esse é outro
trunfo desta adaptação, a forma como Laudo Ferreira conseguiu “encenar” no
palco que são os quadradinhos da sua história, o texto teatral vicentino…
18. … conferindo à BD um invulgar mas estimulante
tom teatral – no excesso dos gestos, na pose declamatória tantas vezes assumida,
na importância dada às expressões, na sua divisão em “actos”...
19. Por isso, apesar do texto integral original,
confesso que foi um prazer recordar desta forma o “Auto da Barca do Inferno”,
embora reste a sensação de que, tendo sido outra a opção, esta adaptação poderia
ter-se tornado uma obra de referência…
20. Por
isso, acredito que o aplauso à obra expresso por Gil Vicente, no final da “peça
encenada” a que assiste ao lado de Laudo Ferreira, tem toda a justificação e
teria certamente lugar se ele a tivesse podido ler, assim existissem já
histórias aos quadradinhos quando escreveu a sua peça.
21. A finalizar, fica a estranheza pelo facto de,
num tempo em que (supostamente) existe um Acordo Ortográfico que (supostamente)
serve para uniformizar a escrita entre os países lusófonos, uma obra baseada
num clássico da literatura portuguesa, apoiada pela Direcção-Geral do Livro e
das Bibliotecas portuguesa e pelo Ministério da Cultura português, não esteja disponível
em Portugal…
22. (A exemplo do que acontece, a outro nível, com
outros contornos, com a ausência, no
Brasil, das edições portuguesas de BD (da ASA) do grupo Leya, e na ausência, em
Portugal, das edições de BD da filial brasileira da Leya…)