Há cerca de
11 anos, aquando da passagem da iraniana Marjane Satrapi pelo XI Salão
Internacional de Banda Desenhada do Porto, de que foi uma das convidadas e onde
os originais de “Persépolis”
estiveram expostos, tive oportunidade de
conversar com ela.
A propósito
da recém-edição portuguesa, pela Contraponto, daquela obra de referência,
aproveito para recordar essa entrevista com Satrapi, originalmente publicada no
Jornal de Notícias de 7 de Outubro de 2001.
Jornal de Notícias – Como é que decidiu
fazer banda desenhada?
Marjane Satrapi – A banda desenhada é um
meio de narração muito específico e muito especial, a meio caminho entre o
mundo das imagens e o mundo das palavras. Na literatura tudo funciona ao nível
da imaginação e, por exemplo, no cinema, ao nível visual. A banda desenhada
fica a meio do caminho entre ambas e funciona a nível visual, mas exige também o
uso da imaginação para entender a sequência da narrativa. Gosto de desenhar e
de contar histórias e, por isso, a BD é o meio de expressão que me convém.
JN – Não leu BD quando era pequena,
pois ela não existia no Irão. Como é que descobriu esta arte?
MS – Descobri a banda desenhada quando
cheguei a França há sete anos [1994]. A primeira obra que me marcou, lembro-me
bem, foi “L’ascension du haut mal”, de David B., uma obra muito específica,
muito gráfica, auto-biográfica, para adultos. Até então, a minha visão da BD
limitava-se a Astérix, Tintin, Lucky Luke, muito caricaturais, humorísticas…
Com “L’ascension…”, vi que se podiam fazer coisas diferentes, que se podia
fazer BD para adultos. Depois encontrei pessoas como [Christophe] Blain, [Joann]
Sfar, David B., [Emmanuel] Guibert, e a proximidade com eles e com as suas
obras deu-me vontade de fazer BD. Embora inicialmente os achasse malucos. Eu
fazia ilustrações para livros infantis e 13 ilustrações eram um livro. Em BD,
13 desenhos são uma ou duas páginas. Não percebia porque tinham tanto trabalho.
Depois, descobri as possibilidades narrativas da BD e senti que era aquilo que
eu queria fazer.
JN – Normalmente, diz-se que quem não
leu banda desenhada em pequeno não sabe como a ler quando é adulto. Isso
aconteceu consigo?
MS – Sem dúvida. Quando comecei a ler
BD, primeiro, via todas as imagens, depois lia o texto todo, e depois é que
olhava para o conjunto! Ler BD é uma coisa que é preciso aprender a fazer. Mas
é como tudo.
JN – “Persépolis” é a sua primeira BD?
MS – Sim. Antes tinha sido grafista,
tinha feito desenho de imprensa, algumas ilustrações para livros infantis, mas
nunca tinha vendido nenhuns, porque tinha pouca autoconfiança e apresentava-me
muito mal aos editores, desvalorizava as minhas próprias obras…
JN – “Persépolis” recebeu em Angoulême
o “Alph-Art” para o melhor primeiro álbum. Isso foi importante?
MS – Foi muito importante num só
aspecto: credibilizou-me aos meus próprios olhos. Fez-me acreditar em mim.
Depois dele ganhei confiança e vendi facilmente os trabalhos que tinha feito
anteriormente.
JN – Porque é que há tão poucas
mulheres a fazer BD?
MS – A BD foi durante muitos anos uma
leitura de distracção e era suposto as mulheres aprenderem a tocar piano e a distraírem-se
e a cozinhar e não distraírem-se. Por outro lado, as heroínas apresentadas não
eram mulheres com quem as leitoras se gostassem de identificar. A primeira
heroína francesa, Bécassine, por exemplo, era um pouco pobre de espírito. As
outras heroínas tinham grandes seios e pernas longas e também não eram
personagens com quem as mulheres se identificassem. Portanto, a BD não era uma
leitura que se destinasse a nós. E ainda há outro aspecto: a BD é um trabalho
obsessivo e eu acho que os homens têm uma obsessão criativa maior do que as
mulheres, que desde sempre tiveram de se preocupar com outras coisas, como
tratar das crianças, etc.
JN – As mulheres trazem uma sensibilidade
diferente À BD?
MS – Acho que não. A discussão é a
mesma que em relação à literatura feminina. Acho que não há razão para fazer
essa diferenciação. Alguém disse que a literatura não tem sexo e com a BD
passa-se o mesmo.