14/04/2021

Peter Pan #1: Londres

Como um murro no estômago...



Como já referido noutro caso equiparável, os que pertencem à minha geração - bem como à geração anterior e à(s) seguinte(s) - descobriram muitos dos clássicos da literatura nas versões animadas ou aos quadradinhos de Walt Disney.
Peter Pan, para mim, é um dos exemplos, por isso (re)descobri-lo nesta versão crua e psicologicamente violenta de Regis Loisel, foi como um autêntico murro no estômago.

Voltemos um pouco atrás. O autor original desta obra foi J. M. Barrie (1860-1937) e a personagem que hoje conhecemos como Peter Pan surgiu numa peça teatral intitulada The Boy Who Wouldn't Grow Up (1904), que originaria mais tarde o romance Peter and Wendy (1911).

Na base da história, está um rapaz que não quer crescer e que consegue o seu intento num lugar maravilhoso conhecido como Neverland (Terra do Nunca) povoado por piratas, fadas, (outros) meninos perdidos e índios. Ou seja, um local onde tem lugar a materialização dos sonhos de infância de qualquer rapazinho. , com a ajuda dos pós mágicos da fada Sininho, Peter e os seus amigos vão poder voar e viver diversas aventuras, enfrentando os piratas e outros perigos inesperados, num mundo de sonho infantil.

Walt Disney, partiu deste romance para criar o filme animado de 1953, no qual, como era habitual, forneceu uma visão leve, açucarada, dinâmica e divertida da obra original.


Regis Loisel, é um autor com sucessivas obras fundamentais para quem gosta de banda desenhada: Em busca do pássaro do tempo ou Armazém Central são dois exemplos perfeitos disso, podendo também ser citado, a outro nível, a sua (re)visão da BD Disney no surpreendente Mickey Mouse: Café "Zombo".

No caso presente, o autor francês alimentou-se na obra de Barrie e situou a acção da sua banda desenhada - neste primeiro álbum, pelo menos - num dos bairros mais sórdidos da capital inglesa, em plena época vitoriana. É lá que vive o pequeno Peter, filho de uma mãe alcoólica e violenta, alvo da chacota terna das prostitutas e (quase) vítima de um pedófilo potencial... Se escrito assim já choca, descobrir em imagens a vida de Peter (futuro Pan) antes de chegar à Terra do Nunca, é ainda mais chocante e perturbador.

O que não impede que Loisel - de certa forma de modo cínico, pelo contraste apresentado - não aborde igualmente as componentes do imaginário e do sonho infantil, por exemplo através das histórias que o pequeno Peter conta às crianças que vivem no orfanato. E, principalmente, através dos sonhos que, mesmo naquelas condições, este último tem.

A transição entre este mundo e a sonhada Terra do Nunca, por via da intervenção de uma pequena fada, rechonchuda e sumariamente vestida, dá de imediato o mote para as perversões que lá aguardam Peter: a violência realista dos piratas, a sensualidade e nudez das sereias e um certo fauno chamado... Pan.

O traço do autor, extremamente nervoso, absurdamente ágil e impregnado de uma dinâmica imparável que confere vida e movimento às cenas, saltando de visões de conjunto, para planos médios ou grandes planos de pormenor, muito reveladores, é ainda servido por um magnífico trabalho de cor em que, neste primeiro volume, abundam os tons sombrios que vincam a atmosfera global da obra.

Quero realçar que, se esta visão de Loisel subverte tudo o que existia no nosso imaginário, nada nela é gratuito nem forçado, numa narrativa tensa, nervosa e incómoda que a ASA em boa altura decidiu reeditar/completar.


E isto leva-nos ao terceiro ponto deste texto. Este Peter Pan de Loisel, lançado originalmente entre 1990 (!) e 2004, teve os dois volumes iniciais - este Londres e também Opikanoba - lançados pela Bertrand Editora, em 1993 e 1994. Oito anos depois, em 2002, foi uma das apostas iniciais da Booktree, de novo em dose dupla - A Tempestade (edição aumentada com um caderno de esboços no final) e Mãos Sujas. A continuação e conclusão, chega agora, quase duas décadas depois, nos dois derradeiros volumes: Gancho e Destinos.

Mais uma vez - tal como aconteceu com o aconselhável Rio, embora agora a opção editorial seja completamente diferente (aquele era uma obra contemporânea, este é um clássico da BD franco-belga) - a ASA e o Público optaram pela periodicidade quinzenal para o lançamento. E de novo por uma série curta - são apenas 6 volumes - garantidamente fechada. Uma segurança para os compradores e, num tempo de pandemia, algum alívio para as suas carteiras.

O preço - 10,90€, para álbuns de capa dura, formato franco-belga grande (240 x 320 mm) e 56 a 64 páginas está dentro dos moldes habituais destas parcerias e é sem dúvida um atractivo extra.

[Ressalvo que escrevi este texto com base na leitura da edição portuguesa da Bertrand de 1993 e nas informações disponibilizadas pela ASA, por isso uma análise dos volumes físicos só será feita numa próxima oportunidade, embora deixe já uma nota positiva para as capas, que perderam a inestética barra verde original a toda a volta ].


A fechar, sendo uma obra completamente diferente mas com alguns pontos contactos com esta abordagem de Loisel, por razões que não vou explanar, aconselho vivamente a leitura de Lavennder, um especial da colecção Le Storie, da Sergio Bonelli Editore, que justificava bem uma edição portuguesa... Garanto que não se vão arrepender, se a curiosidade vos levar a tal, mas preparem o estômago, para mais um murro bem aplicado.


Peter Pan #1: Londres
Regis Loisel
Segundo o romance original de J. M. Barrie
ASA/Público
Portugal, 15 de Abril de 2021
240 x 320 mm, 56 p., cor, capa dura
10,90 €


(imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)

11 comentários:

  1. Parece interessante mas já que é uma série já fechada eu teria preferido um tratamento como fizeram com o Largo Winch há 2 anos, volumes duplos a um preço convidativo.

    Assim vou passar.

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    1. Preço convidativo??? 10,90 por um album de luxo grande (32cm), é oferecido! Estou a ver que o Público/ASA tem de começar a pagar às pessoas para ficarem com os livros...

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    2. O Largo tinha o dobro das páginas e o mesmo preço.

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  2. Espero que um dia editem o Murena em volumes duplos, desta estaria comprador.

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    1. Murena suponho que será difícil, a ASA reeditou o primeiro o ano passado, e tem no plano para este ano os #10 e #11.
      Boas leituras!

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  3. Tenho os 2 volumes editados pela Bertrand e, francamente, faria mais sentido terem optado pelo album duplo, ou mesmo pela edição integral, com materiais extra para aliciar o cliente, ficando tudo numa obra única. Dito isto gostaria de ver editado por cá a magnífica e pouco politicamente correcta obra de Max (ver a obra "Vapor"), Peter Pank - quem comprou a a excelente revista brasileira "Animal" nos final dos anos 80 princípio dos 90, sabe do que falo...

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    1. Alguém que me percebe! Já aqui referi o Largo Winch, dobro das páginas e valor semelhantes, em 3 compras a colecção ficava papada...

      A saudosa Animal, comprei as que sairam cá, algumas não sairam, e tinha aquelas edições especiais de número único, e fabuloso encarte MAU - Feio, Forte e Formal, que saudades.

      O MAX é de reler, fora o Peter tinha histórias estranhas, uma ambientada na Ruíssia sobre o Rasputine, depois acabei por comprar as continuações do Peter na lingua original, cortesia da Livraria Linhares, perto do elevador da Glória.

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  4. Nas colecções com o Público, o volume duplo não compensa em colecções curtas e edição integral então nem falar!
    Quanto ao Peter Pank, que tenho todo (?) em espanhol, parece-me difícil vê-lo editado por cá...
    Mas é bem lembrado neste contexto!
    Boas leituras!

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    1. O click do Manara e as aventuras de Erma Jaguar do Varenne também não devem ser possível.

      Vuillemin? só em saco fechado, o homem é chanfrado mas tem algumas histórias irreverentes.

      Que tal colocar uma secção para as obras mais adultas e underground por aqui? :)

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  5. Numa de saudosismo gostava de ver o Martin Milan publicado, nestas coisas do confinamento aproveitei para rever antigos Tintins, algumas histórias encontrei datadas, outras banais mas ha sempre trabalhos que se destacam, as do Martin Milan são assim, intemporais, com o seu tom agri-doce mais o seu sarcasmo contaminado com muita humanidade, histórias bem escritas, mas acho que o facto de fumar cachimbo já o coloca um bocado de parte nestes tempos PC.

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    1. Também gosto muito do Martin Milan, que nem tempo útil completei em francês. Infelizmente, porque agora poderia comprar os integrais que estão a sair por lá.
      Para os nossos dias, parece-me pouco vendável... Espero estar enganado.
      Boas leituras!

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